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A incorporação do conceito de desenvolvimento pelas ciências.

e o conceito de desenvolvimento.

4.2 A incorporação do conceito de desenvolvimento pelas ciências.

“Desenvolvimento é, agora, a palavra mágica por meio da qual solucionaremos os enigmas que nos circundam, ou pelo menos caminharemos ao longo da estrada em direção a sua solução.” Haeckel (apud. Ritvo, 1992).

Nesse breve percurso no interior dos debates no campo da biologia, vimos como não há unicidade na indicação do sentido do conceito de desenvolvimento, de seu fundamento e realização, podendo significar: crescimento das medidas iniciais, passagem do homogêneo ao heterogêneo, transformação estrutural, estar ou não dirigido para um fim, dar-se por conflito ou de modo harmônico, ser progressivo ou não.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

lagarta. Em certos casos, porém, o animal adulto costuma ser considerado como situado numa escala inferior à da sua larva, como se vê com determinados crustáceos parasitas, por exemplo.” (Darwin, 1859/1985, p. 335).  

Possivelmente devido à importância do paradigma do progresso na modernidade, ao longo do século XVIII e XIX, o conceito de desenvolvimento foi gradualmente sendo incorporado como uma espécie de esquema padrão, modelo de entendimento e arranjo lógico das matérias em diversos outros campos de conhecimento para além da Biologia. Assim, Sociologia, Economia, História, Pedagogia, Psicologia começaram a conceber seus objetos, justificar teorias e organizar suas práticas conforme esse esquema27. São representativos dessa tendência nomes como os de Auguste Comte, Herbert Spencer, James Baldwin e John Fiske.

Os modelos desenvolvimentistas também conquistaram ascendência sobre as teorias da neurologia, cujo representante inglês de maior relevo é Hughlins Jackson e sua teoria sobre evolução e dissolução no sistema nervoso que resistiu às críticas de Freud, tornando-se um dos alicerces de sua teoria das afasias. Jackson anuncia logo no início de sua palestra, proferida no Royal College of Physicians, em 1884, que o evolucionismo passou a ter cada vez mais abrangência na aplicação sistemática ao entendimento dos diversos âmbitos da realidade, agora não mais se limitando aos modelos explicativos darwinistas e reconhecendo no modelo de Herbert Spencer uma nova possibilidade metodológica. Em seguida, ele afirma: “Penso, há muito tempo, que seria de grande ajuda nas investigações das patologias do sistema nervoso, se as considerássemos como reverso do processo de evolução, ou seja, como dissoluções. Dissolução é o termo que empresto de Spencer para designar o reverso do processo de evolução” (p. 155, 2003).

Antes de definir as patologias do sistema nervoso com os modelos de dissolução, Jackson antes deixa claro aos ouvintes o que entende por evolução, esse “desenvolvimento ascendente, dentro de uma ordem particular”. O autor utiliza a figura da passagem em suas três definições do conceito, ou seja, é a passagem do automático para o mais voluntário, do menos para o mais organizado, do mais simples para o mais complexo, “colocando-se de outra forma, o progresso ocorre de centros comparativamente melhor organizados ao nascimento em direção aos centros superiores que, continuamente, se organizam ao longo da vida” (p. 155, 2003).

                                                                                                                         

27 No caso da Sociologia, Lévi-Strauss (1950) chama a atenção para o fato de que os modelos de evolução importados da biologia apenas serviram como justificativa para um problema já existente na disciplina. Ele afirma que o evolucionismo sociológico já era teoria presente e apenas fez uso das teorias evolucionistas da biologia para justificá-lo. Nos dizeres do autor “é a maquiagem falsamente científica para um velho problema” (1950/1976, p.62).

Assim, é possível afirmar, mediante uma breve visada sobre definição de evolução que Jackson admite, que a diferenciação e a opção por ele feita de saída entre o evolucionismo de Spencer e o de Darwin não é ocasional ou indiscriminado. Como visto acima, a teoria darwinista de evolução é oposta aos termos da definição de Jackson. Enquanto esta equivale a uma passagem com direção definida e progressiva, dentro de uma hierarquia valorativa do menos organizado para o mais organizado, do automático para o voluntário, do simples ao complexo, as diretrizes darwinistas apontam para um processo indeterminado em sua direção, cujo surgimento de novas formas não está condicionado por um programa de aperfeiçoamento a ser cumprido percorrendo um caminho composto por etapas de uma escala valorativa de aperfeiçoamento.

No entanto, essa importante discriminação entre os modos de pensamento evolucionista feita por Hughlins Jackson ao estabelecer as bases de sua teoria sobre as patologias do sistema nervoso não foi o que se viu de modo geral na incorporação do evolucionismo nas demais ciências. De modo geral, no movimento mesmo de migração para outras áreas do conhecimento, toda a querela existente em torno conceito de desenvolvimento e evolução que existia nos debates da Biologia parece sido deixada para trás. Na amplitude de significação que outrora existiu, uma delas parece ter sido elidida dos debates, restando apenas a que equivale desenvolvimento, evolução e progresso.

“O desenvolvimento não consegue se desassociar das palavras com as quais foi criado: crescimento, evolução, maturação. Da mesma forma, os que hoje usam a palavra não conseguem libertar-se de uma teia de significados que causam uma cegueira específica em sua linguagem, pensamento e ação (...). A palavra sempre tem um sentido de mudança favorável, de um passo do simples para o complexo, do inferior para o superior, do pior para o melhor. Indica que estamos progredindo porque estamos avançando segundo uma lei universal e inevitável e na direção da meta desejável.” (Esteva, 2000 apud Ribeiro, 2003, p. 161).

Desse modo, constata-se que o sentido excluído, ou ao menos recalcado nos debates sobre desenvolvimento e evolução, é aquele que foi dado por Darwin, principalmente no que se refere à questão da teleologia. Parece haver restado, sobretudo, apenas a divulgação de Darwin feita por Ernst Heinrich Haeckel, amplamente aceita pelas outras ciências no início do século passado, mas cujo resultado

e impacto sobre a concepção de desenvolvimento utilizada estão longe das possibilidades oferecidas pelas teses darwinistas.

Professor de zoologia em Iena a partir de 1865, Haeckel foi não apenas um dos principais divulgadores das ideias de Darwin na Alemanha, como também um dos primeiros teóricos a fazer a junção das teorias darwinistas com outras ciências e com a epistemologia da época, criando um sistema filosófico delas derivado que denominou monismo (Assoun, 1983). Em 1866, na obra intitulada Generelle Morphologie der Organismen, eleapresenta uma concepção de desenvolvimento denominada Lei biogenética fundamental, também conhecida como teoria da recapitulação28, segundo a qual a ontogênese repete a filogênese. Baseada no resultado das pesquisas de Fritz Müller sobre embriões de crustáceos (biólogo que, por sua vez, tentava confirmar uma hipótese de Darwin), a teoria da recapitulação formalizada na lei biogenética fundamental pretende-se ser uma lei de causalidade universal, passível de ser estendida para a natureza inteira, e considera a existência de uma isomorfia entre o desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento da espécie a qual ele pertence. Nas palavras desse biólogo e naturalista alemão: “devemos traduzir essa breve fórmula como segue: a série de formas pelas quais passa o organismo individual, a partir da célula primordial até seu pleno desenvolvimento, não é mais que uma repetição em miniatura da longa série de transformações sofridas pelos ancestrais do mesmo organismo, desde os tempos mais remotos até os nossos dias” (Haeckel apud Canguilhem et. al., 2003, p. 82). Assim, o indivíduo representante da espécie no tempo presente, ao longo de sua existência, tem a potencialidade de repetir as etapas das formas finais dos processos de desenvolvimento já ocorridos na espécie. Esse programa desenvolvimentista seria o legado dos ancestrais conferindo uma sequência de transformações simétricas e previsibilidade ao desenvolvimento do indivíduo. Embora tenha sido criticada e acusada de fraude em seus dados fundamentais, tal teoria se manteve vigente até a década de 1930 aproximadamente.

Ainda que a teoria da recapitulação tenha sido entendida como uma espécie de apoio às teses darwinistas e uma confirmação para elas, muitos autores apontam suas diferenças. Canguilhem, por exemplo, enfatiza que um dos extravios da teoria da                                                                                                                          

28 Segundo Bolens (2001/2) e Gould (1977), Haeckel não foi o primeiro autor a teorizar sobre a recapitulação. As primeiras concepções dos biólogos alemães sobre o assunto advêm das ideias do romantismo e da Naturphilosophie, e começam a surgir nos últimos anos do sec. XVIII e primeiros anos do século seguinte. Para uma visão mais aprofundada do assunto, a referida obra de Gould contém um capítulo dedicado a esse tópico intitulado Origens Transcendentais1793-1860.

recapitulação em relação à teoria darwinista – quando supostamente deveria ser sua promotora (Canguilhem et. al., 2003) –, refere-se à desconsideração da importância do meio. Segundo essa crítica, a ideia de recapitulação da filogênese, ao condicionar o devir do organismo ao trajeto percorrido pelos seus ancestrais, desconsideraria o presente, o seu meio atual e a importância da interação entre esses dois termos para o desenvolvimento.

Outro ponto de dissensão entre as teorias, apontado por Bolens (2001/2) e Canguilhem (2003), refere-se à noção de desenvolvimento nelas implicadas. Enquanto para Darwin o curso da evolução é imprevisível, para Haeckel a recapitulação significa passar por estágios das formas ancestrais adultas em ordem correta, hierárquica e progressiva. As variações pelas quais o organismo recapitulativo irá passar ao longo de sua vida estão preformadas pelo passado de sua espécie, no curso de uma ortogênese.

Desse modo, é possível constatar que o abandono da ideia de desenvolvimento darwinista em favor de uma concepção progressista de transformação, já constatada anteriormente nas outras ciências, também ocorreu no interior dos estudos da biologia. Ritvo (1992), em seu estudo A influência de Darwin sobre Freud, cita também os nomes de Karl Ernst von Baer e Karl Wilhelm von Nägeli dentre os biólogos que não abriram mão da concepção de evolução “com base em uma tendência inata para a perfeição” (p.56). Na passagem abaixo, Ritvo deixa isso evidente:

“(...) Nägeli, von Baer e outros que preferiam uma força ortogenética interna no sentido da perfeição à operação cega da seleção natural sobre as variações casuais. O primeiro tradutor alemão de Darwin, Bronn, achava uma força ortogenética interna de mais fácil compreensão que a seleção natural.” (Ritvo, 1992, p. 251).