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Um desenvolvimento teleológico para o sentido de realidade

Os desenvolvimentos do sentido de realidade

6.2 Um desenvolvimento para o sentido de realidade.

6.2.1 Um desenvolvimento teleológico para o sentido de realidade

Há duas passagens no texto das Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, que indicam que, ao menos ao que se refere à relação entre as pulsões sexuais e a instalação do princípio de realidade, haveria possibilidade de encontrar um termo para seu desenvolvimento.

Quando Freud versa a respeito do retardamento desse desenvolvimento, ele menciona que para muitas pessoas pode nunca chegar a ocorrer. Logo, estava suposto que o desenvolvimento na esfera das pulsões e que as levasse ao sentido de realidade era algo esperado, que poderia ocorrer. Lembramos que isso estava fundado na concepção que Freud tinha do desenvolvimento pulsional, que deveria chegar a um fim ao se atingir o amor objetal. No texto das Formulações, Freud afirmava que, quando as pulsões sexuais passassem “(...) de seu auto-erotismo original, através de diversas fases intermediárias, ao amor objetal a serviço da procriação” (p.243), seria possível então ocorrer a finalização do percurso que levaria ao predomínio do princípio de realidade no aparelho psíquico.

Essa hipótese de desenvolvimento libidinal, parecia indicar a possibilidade da realização das metas de desenvolvimento do sentido de realidade que levariam ao fim das interferências da fantasia uma vez que as pulsões sexuais que, antes estavam sob domínio estrito do princípio de prazer, passariam a considerar a realidade, submetendo- se ao princípio que organiza essa outra forma de relação.

Além disso, também estava presente nas Formulações a tentativa de estabelecer o sentido de realidade em paralelo à classificação da psicopatologia, quando se afirmava que essa meta de desenvolvimento não seria alcançada pela neurose, que apresenta fixações em pontos específicos no curso do desenvolvimento do eu e da pulsão. Para Freud, a escolha da neurose estava relacionada à “fase específica de desenvolvimento do ego e da libido na qual a inibição disposicional do desenvolvimento ocorreu” (p.243).

Ao menos essas passagens do texto permitem supor que haveria um momento possível em que o desenvolvimento do eu e das pulsões faria com o desenvolvimento do sentido de realidade atingisse seu fim e assim afirmar que, de fato, uma escatologia estava presente. Isso demonstra que havia uma consideração de que a concepção de desenvolvimento do sentido de realidade poderia se dar nos moldes da epigênese.

Dessa forma, os espaços que ficaram fora, seriam falhas, problemas no desenvolvimento.

No terceiro capítulo de nossa pesquisa, pudemos acompanhar como a concepção de desenvolvimento linear e perfectibilista esteve na base de muitos dos modelos de desenvolvimento do sentido de realidade que foram propostos por comentadores e autores da psicanálise. Ainda que todos os autores considerem a participação e importância das experiências vividas para que haja transformações no aparelho psíquico, e não concebam que o desenvolvimento estivesse determinado geneticamente, é possível verificar como, na maioria dos textos apresentados, existe a hipótese do desenvolvimento do sentido de realidade dentro dos moldes da epigênese. Não por acaso, a tentativa de Ferenczi (1913), Edward Glover (1933) e Frumkes (1953) em estabelecer séries de etapas desenvolvimentistas ou critérios que pudessem servir como balizas do processo de transformação no sentido de realidade rumo à adaptação ou o abandono das ilusões de onipotência. No texto de Ferenczi, observamos como o autor procurava estabelecer as etapas do desenvolvimento do sentido de realidade em acordo com o desenvolvimento do eu. No texto de Glover, Ferenczi é criticado por não ter conseguido estabelecer, junto à serie de desenvolvimento do eu, também uma série do desenvolvimento libidinal, todos em paralelo. Além dessas séries, o texto de Glover revelava sua insistência na tentativa de encontrar também um serie psicopatológica que acompanhasse o desenvolvimento do sentido de realidade.

Entretanto, há uma modificação na hipótese em relação ao desenvolvimento das pulsões sexuais na obra de Freud que transforma as conclusões deduzidas acima. Em seu texto Análise terminável e interminável (1937), é possível encontrar declarada a reconsideração dessa posição inicial que permitia uma interpretação epigenética para o desenvolvimento pulsional:

“Nossa primeira descrição do desenvolvimento da libido foi a de que uma fase oral original cedia caminho a uma fase anal sádica e que esta, por sua vez, era sucedida por uma fase fálico-genital. A pesquisa posterior não contradisse essa opinião, mas corrigiu-a acrescentando que essas substituições não se realizam de modo repentino, mas gradativamente, de maneira que partes da organização anterior sempre persistem lado a lado da mais recente, e que mesmo no desenvolvimento normal a transformação nunca é completa e resíduos de fixações anteriores podem ser mantidos na configuração final.” (Freud, 1937/1996, p. 244).

A concepção, expressada na passagem acima, da existência de uma transformação que nunca é completa e que é entendida agora como uma qualidade e não mais como circunstancia patogênica, em nossa opinião, indica uma outra forma de interpretação dos fatos do desenvolvimento do sentido de realidade quando relacionado às pulsões sexuais.

Se pudermos comparar a passagem acima ao que havia sido afirmado por Freud no texto das Formulações, poderíamos inferir que estarão presentes no sistema, mesmo nas fases posteriores de organização libidinal, as formas que o sentido de realidade apresentava quando a satisfação ainda era unicamente auto-erótica. A existência dos resíduos no desenvolvimento do sentido de realidade seria fato inerente e esperado, não mais significando atrasos e fixações. Dessa forma, acreditamos ser possível considerar que, ao menos ao que se refere às pulsões sexuais, o desenvolvimento do sentido de realidade não seguiria o modelo da epigênese.

Além disso, a continuidade do texto de Freud permite ampliar essa hipótese para além do campo das pulsões sexuais:

“Ao estudar desenvolvimentos e mudanças, dirigimos nossa atenção unicamente para o resultado; desprezamos prontamente o fato de que tais processos são geralmente mais ou menos incompletos, o que equivale a dizer que são, de fato, apenas alterações parciais. Um arguto satirista da antiga Áustria, Johann Nestroy disse certa vez: ‘todo passo à frente tem somente a metade do tamanho que parece ter a princípio’. É tentador atribuir uma validade bastante geral a esse ditado malicioso. Há quase sempre fenômenos residuais, uma pendência parcial.” (Freud, 1937/1996, p.244).

As considerações de Freud apresentadas nessa citação estão longe da compreensão do processo de desenvolvimento enquanto uma transformação gradual e regular, guiada por um telos predeterminado, e no qual se espera que, ao final do processo, esteja-se diante de uma estrutura mais perfeita e completa que a sua forma inicial, tal como preconiza a epigênese.

Ao contrário disso, acreditamos que a formulação apresentada acima por Freud, segundo a qual o desenvolvimento não está dirigido para um fim pré-estabelecido e que há uma transformação que se completa, ao ser comparada aos três modelos fornecidos pela biologia, estaria mais próxima das teses darwinistas que afirma a ausência de um plano de desenvolvimento voltado para uma meta de perfeição.

A modificação que Freud apresenta no texto Análise terminável e interminável evidencia que não há mais um plano pré-estabelecido de desenvolvimento para o sentido de realidade que acompanharia o desenvolvimento das pulsões do eu e sexuais. Talvez não possamos nem ao menos afirmar que Freud descreva a existência de um desenvolvimento incompleto, já que sua completude não é mais sequer suposta como esperada.

Desse modo, a presença dos fueros e das reservas naturais durante os processos de retranscrições do sentido de realidade, é imanente a sua constituição e não acidental na sua formação.

Desse modo, tendemos a concordar com Abend (1982) em sua hipótese de que os modos de negação da realidade não ocorrem devido a falhas no desenvolvimento, uma vez que, como estamos acompanhando na argumentação desse capítulo, para Freud o desenvolvimento do sentido de realidade contaria sempre com os desarranjos provenientes dos modos residuais que permanecem.

Já no texto das Formulações, Freud explicava de que forma os modos residuais, os fueros e as reservas naturais, poderiam ter peso nas atividades dos conteúdos que já foram transcritos e retranscritos. Essa explicação de Freud está no trecho desse texto de 1911, quando descreve a interferência que o modo de pensar racional poderia sofrer do fantasiar, ilustrando bem como a forma residual continuaria presente e atuante nas formas de funcionamento já desenvolvidas. Segundo Freud, por ainda funcionar nos moldes do princípio de prazer, o pensamento característico do fantasiar, na tentativa de recalcar qualquer representação que pudesse implicar desprazer para a consciência, influenciava o fluxo do pensamento racional:

“No campo da fantasia, a repressão permanece todo-poderosa; ela ocasiona a inibição de ideias in statu nascendi antes que possam ser notadas pela consciência, se a catexia destas tiver probabilidade de ocasionar uma liberação de desprazer. Este é o ponto fraco de nossa organização psíquica; e ele pode ser empregado para restituir ao domínio do princípio de prazer processos de pensamento que já se haviam tornado racionais.” (Freud, 1911/1996, p. 241).

Esse processo de influência entre as formas atuais e residuais também foi demonstrado ao longo de nosso segundo capítulo, nos exemplos do que Freud denominou como sendo o sentimento de realidade. Lembramos ao leitor como nesses exemplos relatados por Freud, o paciente tinha a sensação de realidade após despertar

de um sonho, no entanto, esse sentimento não significava um erro de julgamento. Em uma formação de compromisso, os conteúdos julgados como sendo reais apenas puderam ter acesso à consciência após sofrerem a distorção onírica. Desse modo, o sentido de realidade, já desenvolvido, pode julgar como real um conteúdo que, por estar ligado ao conteúdo do pensamento fantasmático residual, apenas surgiu após a revisão secundária do sonho, e pode então ser reconhecidos como real.

Nesses dois casos, é possível notar de que modo esses processos novos e antigos convivem e se influenciam mutuamente, sem que um elimine o outro.