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O sentimento de realidade em Freud

2.2 Um fenômeno insólito

Em A Psicopatologia da vida cotidiana (1901), na seção intitulada Determinismo, crença no acaso e superstição, Freud destina alguns parágrafos à tentativa de elucidar os fenômenos do déjà vu e da fausse reconnaissance, definidos por ele como sendo sensações de que algo na situação vivenciada é uma repetição uma ocorrência anterior. Esse falso reconhecimento, que pode ocorrer diante de eventos, lugares, pessoas, falas, causa estranheza por seu caráter paradoxal, já que, ao mesmo tempo em que se está certo de estar diante de algo pela primeira vez, ao mesmo tempo, tem-se a sensação de que esse algo, que parece ser inédito, é algo que um dia já foi conhecido. Além disso, há mais um dado no fenômeno que também causa estranheza. Trata-se do fato de que aquele que sente a sensação de já ter vivido anteriormente a situação, como se estivesse repetindo a mesma cena, não consegue se lembrar da suposta cena original. Ele apenas sente que ela já lhe é familiar. Freud descreve assim o fenômeno:

“Na categoria do milagroso e do ‘insólito’ devemos também incluir a peculiar sensação que se tem, em certos momentos e situações, de já ter vivenciado exatamente aquilo um dia, de já ter estado antes naquele mesmo lugar, sem que se consiga, apesar de todos os esforços, recordar claramente a ocasião anterior que assim se manifesta. Sei que estou apenas seguindo o uso linguístico descompromissado ao chamar de ‘sensação’ aquilo que brota na pessoa nesses momentos; trata-se sem dúvida de um juízo e, mais exatamente, um juízo perceptivo, mas esses casos têm um caráter inteiramente peculiar e não se deve desconsiderar que aquilo que se procura nunca é lembrado.” (Freud, 1901/1996, p. 260).

O esquecimento da situação primeira, que poderia revelar ao sujeito o que haveria nela de familiar e assim, finalmente, conseguir explicar a sua sensação de repetição, torna-se um indício para Freud da presença da operação de recalque atuando como um dos mecanismos psíquicos que levam à sensação déjà vu. Cabe lembrar aqui que Freud inicia seu livro apresentando uma explicação sobre o mecanismo de esquecimento de nomes próprios que, segundo ele, envolve não apenas o esquecimento de um nome como também a lembrança de um nome errado. Ele afirma que além de um nome ser recalcado, outro nome substituto aparece como resultado da operação de

deslocamento. Vejamos como essa indicação é utilizada por ele na interpretação de um relato de déjà vu feito por uma paciente em análise.

Agora na idade de trinta e sete anos, a paciente conta que, quando tinha doze anos, foi visitar algumas amigas em uma casa de campo e que, ao chegar ao local e passar pelo jardim da casa, tivera a sensação de já ter estado ali. Ela conta que, não apenas com o jardim, mas com os cômodos da casa, teve a sensação de déjà vu tão intensa que pensou que conseguiria descrever de antemão como seria a casa inteira. No entanto, adverte Freud, “a possibilidade de que esse sentimento de familiaridade devesse sua origem a uma visita anterior à casa e ao jardim, talvez na primeira infância, foi absolutamente excluída e refutada pelas indagações que ela fez a seus pais” (Freud, 1901/1996, p. 261).

Na análise a respeito do fenômeno, a paciente relata que sabia que as amigas, a quem fora visitar, tinham um irmão que estava doente. Ao vê-lo, na situação da visita, pensou que ele logo iria morrer. A seguir, a paciente declara que ela mesma também tivera o irmão doente meses antes da visita, e que ele conseguiu se recuperar. Freud afirma que “para o conhecedor não haverá dificuldade em concluir desses indícios que, naquela época, a expectativa de que o irmão morresse desempenhara um papel importante nos pensamentos da menina” (ibid., p.262). Ao chegar à casa das amigas, sabendo que estas tinham um irmão doente e que ela própria já havia passado pela mesma situação, o reconhecimento dos pensamentos sobre a doença do irmão foi recalcado. No lugar de surgir uma sensação de reconhecimento em relação à situação com o irmão, que, por algum motivo, estava recalcada, a sensação de reconhecimento e de familiaridade foi deslocada para o reconhecimento do ambiente externo a sua volta, como se ela já houvesse estado naquela situação. Freud considera que a presença do recalque e o deslocamento da sensação de familiaridade permitem supor que algum pensamento a respeito da situação com o irmão estaria recalcado. Além disso, outros dados de sua análise permitiam supor que o conteúdo afastado da consciência era uma fantasia desejante da morte do irmão, para que ela finalmente pudesse vir a ser filha única:

“Pelo fato de ter ocorrido o recalcamento podemos concluir que sua expectativa anterior da morte do irmão não estivera muito afastada do caráter de uma fantasia desejante. Nesse caso, ela teria ficado como filha única. Em sua neurose posterior, ela sofria com a mais extrema intensidade a angústia de perder os pais, por trás da qual, como de

costume, a análise pode revelar um desejo inconsciente com o mesmo conteúdo.” (Ibid., p.262).

Assim, para Freud, a explicação para o fenômeno do déjà vu poderia ser encontrada nas fantasias inconscientes. Embora elas nunca tenham sido conhecidas pelo sistema da consciência, são eventos psíquicos conhecidos de outras instâncias, por isso a sensação de familiaridade e repetição. O que aconteceria é que, em uma situação nova e que está, de algum modo, relacionada à fantasia inconsciente, a fim de que esse conteúdo recalcado mantenha-se afastado da consciência, o sentimento de se estar diante de algo familiar é deslocado para outros elementos presentes. Dessa forma, Freud faz questão de afirmar que o sentimento de repetição que ocorre nos casos de déjà vu não está baseado em um julgamento errado, um equívoco da memória. Ele é apenas um sentimento que está deslocado de seu conteúdo original para a manutenção do recalque.

“No meu entender, é errôneo chamar de ilusão o sentimento de já se ter vivenciado alguma coisa antes. É que nesses momentos realmente se toca em algo que já se vivenciou antes, só que isso não pode ser lembrado conscientemente porque nunca foi consciente. Dito em termos sucintos, a sensação do déjà vu corresponde à recordação de uma fantasia inconsciente.” (Ibid., p. 261).

Não deixa de chamar a atenção o fato de que o juízo perceptivo de familiaridade possa advir de uma situação vivenciada apenas no pensamento e não como um fato da realidade externa. Nesse ponto, poderemos nos remeter ao que fora estabelecido por Freud desde o Projeto para uma psicologia científica quando afirmava que: “Também as indicações de descarga por meio da fala são, de certo modo, indicações da realidade – mas da realidade do pensamento, e não da realidade externa (...)”. (Freud, 1950 [1895]/1996, p.428). O exemplo do déjà vu deixa claro como é possível derivar juízos perceptivos corretos a partir da realidade de pensamento, a realidade psíquica, e não apenas da realidade externa.

Aqui retornamos aos nossos problemas de origem.

Primeiramente, se retomarmos a definição de sentido de realidade que derivamos ao final do capítulo anterior, quando o classificamos como uma espécie de juízo perceptivo consciente, fundado também nas sensações corporais, e aproximarmos ao que está sendo explicado aqui a respeito do fenômeno de déjà vu, poderemos afirmar que o sentido de realidade não está apenas referido à realidade externa, mas a qualquer realidade, também aquela referente aos eventos da realidade psíquica.

Quanto ao que poderíamos derivar dessas conclusões a respeito do sentimento de realidade, acreditamos que algumas analogias entre os fenômenos podem ser feitas, de modo a trazer elucidações a nossa questão.

Acompanhando as explicações de Freud para o déjà vu, vimos se tratar de um sentimento, um juízo perceptivo, que havia sido deslocado de seu conteúdo original, por isso a sensação de familiaridade ocorreria com elementos não familiares, mas não era um erro.

No caso do sentimento de realidade também existe um sentimento de reconhecimento, mas, aqui, é o conteúdo a que ele está ligado que sofre condensação e deslocamento e fica irreconhecível devido às ações da revisão secundária dos sonhos. Ainda que os processos sejam diferentes, os dois fenômenos envolvem algo que precisa ser recalcado, ainda que os sentimentos de familiaridade, repetição e realidade os denunciem. Se no caso do sentimento de realidade o conteúdo a que esse sentimento está associado apenas pode ser relembrado através dos mecanismos de distorção dos sonhos, poderíamos afirmar que, de algum modo, esse sentimento também está relacionado a algo recalcado, apenas possível de ser acessado após a interpretação. Assim, não é por acaso que, na grande maioria dos exemplos analisados por Freud, o sentimento de realidade se originava de sonhos angustiantes, cujos conteúdos, após interpretação, revelavam estar conectados a questões sobre castração e sexualidade. Mesmo que Freud considere que os conteúdos que causam o sentimento de realidade não sejam apenas uma fantasia inconsciente, as cenas a que eles estavam ligados poderiam remeter ao conteúdo dessas fantasias e, por essa razão, só podem ser relembrados mediante a atividade onírica.

Em meio às explicações a respeito dos fenômenos do déjà vu e da fausse reconnaissance, encontramos uma contribuição de Ferenczi sobre o tema, considerada por Freud como sendo uma contribuição valiosa. A princípio inserida por Freud em uma nota de rodapé em 1910, em 1924 a passagem do texto de Ferenczi será integrada ao corpo do texto. Não há indicação da origem da referência citada, Freud apenas afirma que Ferenczi lhe escreveu as seguintes considerações sobre o assunto:

“Tanto em mim mesmo como em outras pessoas, convenci-me de que o inexplicável sentimento de familiaridade deve ser rastreado a sua origem em fantasias inconscientes, dentre as quais uma é inconscientemente lembrada numa situação atual. Num de meus pacientes aconteceu algo aparentemente diferente, mas, na realidade, inteiramente análogo. Esse sentimento retornava nele com muita

frequência, mas mostrava regularmente ter-se originado de um fragmento esquecido (recalcado) de um sonho da noite anterior. Portanto, parece que o déjà vu não só pode derivar-se dos sonhos diurnos, como também dos sonhos noturnos.” (Ferenczi,1910 apud Freud, 1901/1999, p.262).

A última frase de Ferenczi parece reforçar as inferências que nos levam a aproximar os fenômenos do sentimento de realidade e o déjà vu. Assim, a nossa hipótese é que é possível estender as conclusões de Freud a respeito do déjà vu e o sentimento de familiaridade para o que ocorre nos fenômenos de sentimento de realidade, de modo que esse também tenha como explicação causal os desejos inconscientes.

O sentimento de realidade seria a denominação aplicada ao sentido de realidade quando o julgamento perceptivo, fundado não apenas na cognição, mas também nas sensações corporais, está voltado para eventos que mantém relação com a realidade psíquica e aos desejos inconscientes.

Capítulo 3