• Nenhum resultado encontrado

A psicanálise como reeducação para realidade.

O debate para além de Freud

3.5 A psicanálise como reeducação para realidade.

Ainda que nem todos os autores se refiram à existência de um desenvolvimento do sentido de realidade é possível constatar que sua afirmação está presente na maior parte dos textos. Além disso, foi possível constatar no capítulo anterior que ela está também presente na obra de Freud, ainda que sem maiores elucidações a respeito de como ela se daria.

Em ao menos dois artigos, de Frumkes e Abend, foi possível encontrar relações mais diretas entre a concepção de desenvolvimento do sentido de realidade e a proposta de uma aplicação clínica correspondente. No texto de Frumkes, não apenas o autor afirma que o sentido de realidade é uma função do eu que se desenvolve

progressivamente, como também afirma que a conquista do funcionamento integral dessa capacidade poderia servir como um dos critérios principais para se determinar o final de uma análise.

Quanto a Abend, embora não faça muitas considerações a respeito da existência ou não de um desenvolvimento do sentido de realidade e não estabeleça a diferença com o sentimento de realidade, é possível perceber que sua proposta clínica correspondente seria bastante diferente da existente em Frumkes. Isso porque sua interpretação sugere que as ocorrências de falhas no sentimento e no teste de realidade não resultariam de problemas no desenvolvimento dessas funções, mas seriam sintomas.

Em outros termos, a proposta de Abend levaria a analisar essas manifestações nos distúrbios do sentimento de realidade apenas como mais um dos sintomas do paciente. Por sua vez, a proposta de Frumkes para a condução da análise poderia ser a de encaminhar progressivamente esse paciente à conquista de uma função integral do sentido de realidade, como se a análise fosse uma espécie de educação para a realidade e de correção das percepções ilusórias do paciente.

Entretanto, a concepção assumida por Frumkes não se limitou a ele mesmo, e tampouco esteve limitada a uma aplicação do que poderia ser o final de análise. Ao contrário, essa concepção esteve presente na obra de outros psicanalistas e foi aplicada a outros elementos da clínica, como, por exemplo, o entendimento do que seria o fenômeno da transferência. De acordo com Maurice Dayan (1985), muitos foram os analistas que sublinharam a oposição entre a transferência e a realidade (p.75), ao assinalar o caráter irreal do amor de transferência, que deveria ser consertado pelo analista ao longo do tratamento. Essa concepção da transferência não deixou de ter efeitos sobre a concepção de final de tratamento, uma vez que era proposto que o processo de análise devesse terminar com a compreensão do caráter irreal da transferência pelo analisante (p. 75).

O primeiro texto comentado por Dayan, de autoria de Herman Nunberg, intitula- se Transference and reality (1951). Na concepção de Nunberg, a transferência é a projeção de uma relação de objeto pertencente ao passado para um objeto atual, baseada em um equívoco na identidade das percepções, e caberia ao analista apontar esse equívoco ao paciente ao longo do tratamento.

“Eu ainda concordo com o Dr. de Saussure que a transferência é uma projeção. O termo ‘projeção’ significa que as relações internas e

inconscientes do paciente com seus primeiros objetos libidinais são externalizadas. Na situação de transferência o analista tenta desmascarar as projeções e externalizações onde quer que elas apareçam durante o tratamento.” (Nunberg, 1951, p. 01, tradução nossa).

Segundo essa concepção, a transferência seria uma forma de o paciente tentar substituir os objetos reais de sua vida atual (por exemplo, o analista) por objetos que pertencem ao passado do paciente e para os quais destinava sentimentos que precisaram ser recalcados. Uma vez que esses objetos, e os sentimentos a eles relacionados, pertencem ao passado e a infância do paciente, a transposição desses afetos para os objetos atuais seria uma espécie de equívoco que poderia levar o paciente a confusões e novas frustrações e, portanto, deveria ser corrigido (p. 01). Para Nunberg, na situação transferencial, o modelo de relação de objeto pertencente ao passado do paciente “obscurece a percepção consciente de um evento atual e produz uma ilusão” (p. 04). Nunberg também se refere à situação transferencial como uma realidade artificial (p.05), que deve ser revelada ao paciente, no sentido mesmo de uma “reeducação” (p.05).

Essa reeducação do paciente deveria ser feita da seguinte forma: o analista deveria, no decorrer do tratamento, auxiliar o paciente a se conscientizar dessa ilusão que é a transferência enquanto fenômeno de projeção dos objetos do passado para os objetos do presente; assim que essa conscientização ocorresse, o paciente se tornaria cada vez mais capaz de distinguir entre os objetos do passado e do presente e além de ser capaz de “testar a realidade melhor do que fazia antes” (p.04). Desse modo, o analista, ao desvendar para o paciente o que ocorre na situação transferencial, poderia auxiliá-lo a desfazer essa ilusão, a discernir melhor entre os sentimentos do passado infantil das percepções atuais, através de um teste de realidade mais aprimorado. O processo analítico funcionaria, então, como uma reeducação do paciente para a realidade e um aprimoramento de seu teste de realidade.

Dayan (1985) afirma que outros autores, após a publicação do texto Nunberg, continuaram a tematizar esse caráter irreal da transferência, mas agora opondo à “irrealidade e o absurdo da transferência à realidade reassegurada do analista” (p.77). Ele apresenta um artigo de Sacha Nacht intitulado A Presença do Psicanalista (1963), no qual o autor sugere que a presença do analista poderia ter uma função reparadora e realista para o paciente. Para isso, o analista deveria renunciar à regra da neutralidade para ser presente, deixando de ser apenas uma tela em branco ou uma escuta neutra a

fim de servir como uma espécie de orientação para o paciente em direção ao mundo real. Isso o auxiliaria a abandonar seus fantasmas e seu mundo infantil, podendo então se situar na realidade. Quanto mais estiver inserido na realidade com sua presença, mais o analista poderá orientar o paciente a ter contato com a realidade, que seria “para Nacht como para Nunberg e muitos outros, o objetivo principal do empreendimento terapêutico” (Dayan, 1985, p. 78).

Em seguida, Dayan (1985) aborda a proposta de Maurice Bénassy, apresentada em Fantasy and Reality in Transference (1960). A questão em jogo aí consiste em saber como poderia funcionar a presença do analista para que o paciente pudesse ter acesso à realidade e pudesse perceber a ilusão da transferência. De acordo com Dayan (1985), o programa de cura para Bénassy seria o analista conseguir permanecer invariável diante dos fantasmas do paciente e assim permitir ao analisante ir medindo a realidade, já que o analista real não muda de acordo com seus desejos. Segundo Bénnassy, a transferência é uma experiência sem sentido e só haveria uma forma de o paciente entender isso: “o analista não pode ser modificado pelos pensamentos, desejos ou sentimentos do paciente” (p. 387).

Para isso, o paciente deveria perceber a presença do analista, mas Bénassy, comentando o artigo de Nacht, faz questão de salientar que, em sua leitura, a presença do analista não deve ser entendida como uma variação na técnica da psicanálise. A técnica que deveria ser empregada consistiria em o analista se tornar real para o paciente, o que, em sua concepção, apenas significa que “o paciente estará ciente que seus pensamentos não podem modificar o analista” (Bénassy, p. 397). Ele afirma que, se por acaso, o analista vier a responder inconscientemente os desejos de seu paciente, “ele se torna parte do mundo fantástico do seu paciente, ele não mais é real” (p.397). Desse modo, para que o analista pudesse auxiliar o paciente a perceber a realidade, ele deveria manter-se invariável (p.398), no sentido matemático do termo, funcionando como um representante da realidade para o paciente.

Como é possível constatar, os textos sobre a transferência e sobre a realidade também já indicavam, de alguma maneira, uma proposta para o término da análise.

Para outros analistas que procuraram relacionar as linhas de desenvolvimento do sentido de realidade com o desenvolvimento da libido, a proposta de final de análise derivada normalmente envolverá, junto ao alcance da realidade, também o alcance da capacidade total para amar. É o que indica o artigo de Michael Balint, The Final Goal of Psycho-Analytic Treatment (1936). A afirmação logo no início de texto de Balint é que

“pode-se descrever com segurança o tratamento psicanalítico como sendo um processo natural de desenvolvimento do paciente” (p. 206). Ele então se pergunta, no entanto, se a experiência clínica até aquele momento era suficiente para definir o objetivo final da análise, ou ao menos “a direção final desse desenvolvimento natural” (p. 206) e propõe que esse final pudesse ser justamente o acesso à realidade e à capacidade de amar.

Como afirma Lacan, ao comentar os estranhos paradoxos da prática clínica a que essas concepções poderiam levar, seria como se a maturação do desejo fosse o fator que permitiria “ao mundo se completar em sua objetividade.” (Lacan, 1959, p.07). Tentaremos na próxima seção de nossa pesquisa investigar se existe essa hipótese em Freud.

Parte II

Os sentidos de desenvolvimento