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O fim da análise: a realidade polimorfa.

Os desenvolvimentos do sentido de realidade

6.4 O fim da análise: a realidade polimorfa.

Acreditamos que as considerações a respeito do problema do sentido de realidade em sua relação com o final de análise mereceria um trabalho paralelo. No entanto, ensaiaremos algumas conclusões a partir do material que apresentamos no capítulo três.

Pudemos acompanhar, no item final do capítulo três, como alguns psicanalistas propuseram como um dos principais objetivos para do tratamento orientar o paciente na conquista de uma visão não ilusória da realidade. Esta era, por exemplo, a proposta que estava indicada no artigo de Michael Balint The Final Goal of Psycho-Analytic Treatment (1936), que, como vimos, além de considerar o tratamento psicanalítico “como sendo um processo natural de desenvolvimento do paciente” (p. 206), propunha como objetivo final que se alcançasse o acesso à realidade e à capacidade de amar. Ao final do processo, supunha-se que a crença na onipotência dos desejos, as projeções e a fantasia não mais poderiam determinar as relações deste com a realidade. A realidade, que parece ser entendida como um bloco monolítico composto por coisas, poderia ser desvelada e, finalmente, apresentada ao analisante para além dos limites impostos por suas ilusões. Como afirma Lacan, seria como se a maturação do desejo, representada pelo desenvolvimento pulsional, enfim permitisse o “mundo se completar em sua objetividade” (Lacan, 1959, p.07).

Já demonstramos acima a organização para o desenvolvimento pulsional que Freud apresentou em Análise terminável e interminável (1937), de modo a retificar sua proposta anterior de desenvolvimento linear e teleológico. Nesse mesmo texto, após apresentar a sua hipótese de que o desenvolvimento psíquico comporta quase sempre fenômenos residuais do que um dia já teve existência psíquica, Freud procura concluir quais as relações entre essa concepção de desenvolvimento para a clínica psicanalítica e em como poderia refletir no final de análise:

“Aplicando essas observações a nosso presente problema, penso que a resposta à questão de como explicar os resultados variáveis de nossa terapia analítica bem poderia ser a de que nós também, esforçando-nos por substituir repressões, que são inseguras, por controles egossintônicos dignos de confiança, nem sempre alcançamos nosso objetivo em toda a sua extensão – isto é, não o alcançamos de modo bastante completo. A transformação é conseguida, mas, com frequência, apenas parcialmente: partes dos antigos mecanismos permanecem intocadas pelo trabalho da análise.” (Freud, 1937/1996, p. 245).

Em nossa leitura da passagem acima, a hipótese freudiana iria contra a concepção de que um dia fosse possível acessar a realidade de forma pura, em sua plena objetividade perceptual, sem a influência dos desejos e da fantasia. Ao contrário, a passagem parece indicar que, ao final da análise, restaria o polimorfismo nos modos de relação com a realidade.

Apenas para ficar nas teses apresentadas no Projeto, não encontramos na obra de Freud qualquer indicação de que o eu poderia finalmente deixar de ser imparcial na sua avalição da realidade. Bem ao contrário, as concepções a respeito da divisão do eu em seu modo de considerar a realidade apenas se ampliam com o passar dos anos e atingem seu ápice nos anos 30. Além disso, não encontramos qualquer comentário de Freud que nos levasse a afirmar a possibilidade de que julgamento da realidade um dia ou em alguma etapa do desenvolvimento do eu poderia vir a ser capaz de julgar não apenas os predicados de uma coisa, mas a coisa mesma, que permanece até o fim sendo a parte “constante e incompreendida” dos fenômenos.

Entretanto, não acreditamos que a proposta de um desenvolvimento parcial do sentido de realidade, que implica o acesso não totalmente perfeito e objetivo à realidade, signifique que Freud estivesse propondo uma indiferença com os modos anteriores do princípio de prazer e da alucinação primordial, mas apenas a aceitação da presença constante dos restos atuantes de suas fases anteriores e a presença constante das

fantasias influenciando na interpretação dos fatos. A realidade humana seria construída por esses elementos conjuntamente. Como afirma Soria (2010) ao comentar um dos termos utilizados por Freud para se referir à realidade:

“Devemos notar que Wirklichkeit (efetividade) deriva do verbo

wirken, que significa, entre outras coisas, tecer. A efetividade do

mundo que nos cerca deve ser atribuída, desse modo, a um ato completo de tessitura dos traços mnêmicos, ou ainda, ao tipo de comunidade representacional que se tece. Podemos dizer que o que de efetivo (wirken) se produz é a modificação dos sistemas psíquicos e o seu enlace em uma malha mnêmica. A representação se fixa então ao psiquismo de forma efetiva, verdadeira, ou ainda, com valor de realidade”. (Soria, 2010, p. 89).

Reiteramos que não acreditamos que essa forma de interpretação seja um incentivo às tentativas de satisfazer os desejos aos modos do princípio de prazer ou a uma posição de passividade em relação ao mundo uma vez que não se poderia ter acesso à realidade puramente objetiva. A posição de Freud não seria algo como: já que estamos alucinando parcialmente, vamos delirar. Na passagem abaixo de O mal estar na civilização, Freud não afirma que a saída delirante de negar a realidade e recriá-la ao seu modo fosse a melhor alternativa, mas sim o convite a alterar o mundo, para adaptá- lo a seus desejos.

“A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta força sente a sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias externas.” (Freud, 1930 [1929]/1996, p. 91).

É dentro desses limites na relação com a realidade, na impossibilidade de se despojar os restos de ilusão e fantasia que sempre estarão presentes, que se poderia tentar alterar o mundo a fim de adaptá-lo aos seus desejos.