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A realidade em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento

O sentido de realidade em Freud

1.2 A realidade em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento

mental

Após essa passagem por dois outros textos anteriores de Freud, poderemos agora retornar ao texto de 1911. Como veremos agora, nesse texto alguns dos pontos a respeito da teoria da realidade que são apresentados no Projeto reaparecem, mesmo que de modo mais condensado, e também são apresentas as considerações teóricas a respeito do funcionamento do princípio de prazer e do princípio de realidade.

Como afirmamos anteriormente, com o texto intitulado Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud retorna a muitas das questões anunciadas e teorizadas no Projeto. Ainda que o vocabulário neurológico tenha sido abandonado e a concepção de aparelho psíquico tenha sido transformada, a ideia de regulação dos processos primários pelos processos secundários ainda se faz presente na estrutura da argumentação do texto.

Havíamos deixado em suspenso o texto de 1911 no momento em que Freud anunciava que iria expor sua teoria da realidade. É justamente nesse ponto que ele expõe o que será o tema principal dessa obra: as características dos dois princípios de funcionamento mental, denominados princípio de prazer e princípio de realidade.

Os processos psíquicos mais antigos de nossa mente, os processos inconscientes, seriam processos regulados por um tipo de preceito de funcionamento que visaria unicamente à obtenção de prazer e que evitaria qualquer elemento que provocasse desprazer. Tal funcionamento encontra-se organizado nessa disposição devido à submissão desses processos a um regime de funcionamento denominado Princípio de Prazer e do Desprazer que, tal como descrito no texto anterior, traduz o excesso de energia pulsional no interior do aparelho como desprazer e sua eliminação como prazer. Freud retoma a ideia de que haveria uma tendência no aparelho psíquico que, quando em estado de urgência das necessidades internas e em busca de obtenção de prazer imediato, acaba por investir as representações psíquicas dos objetos que outrora puderam trazer satisfação ao organismo. Esse reinvestimento seria uma tentativa de se satisfazer de maneira alucinatória e que apenas cessa devido à frustração em alcançar seus objetivos.

“Retorno a linhas de pensamento já desenvolvidas noutra parte quando sugiro que o estado de repouso psíquico foi originalmente

perturbado pelas exigências peremptórias das necessidades internas. Quando isto aconteceu, tudo o que havia sido pensado (desejado) foi simplesmente apresentado de maneira alucinatória, tal como ainda acontece hoje com nossos pensamentos oníricos a cada noite. Foi apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento experimentado, que levou ao abandono desta tentativa por meio da alucinação.” (Freud, 1911/1996, p. 238).

Assim, diante do insucesso de sua tarefa, o aparelho precisaria começar a levar em conta a realidade externa para só então conseguir investir um objeto real, realizar uma ação específica adequada no mundo externo e finalmente alcançar a descarga que leva à satisfação pulsional. Mas, para que toda essa operação seja possível, um novo princípio deve ser instituído: o princípio de realidade. Os processos psíquicos a ele submetidos seguem agora um método para obterem satisfação e exigem uma adaptação no aparelho psíquico para que seu funcionamento possa ocorrer. Ou seja, como a realidade externa terá que ser considerada, isso exigirá do aparelho uma série de transformações sem as quais a aplicação desse novo regimento não seria possível. Assim como estava anunciado no Projeto, aqui também Freud insere o desenvolvimento do eu, a inibição, os mecanismos de atenção, memória, julgamento, atividade de consciência para as qualidades sensoriais, todos como formas de ajustes do aparelho para operar em acordo com o princípio de realidade. Além disso, também frisa a necessidade de modificações da atividade motora. Durante o predomínio do princípio do prazer, ela consiste apenas em uma atividade de pura descarga, funcionando dentro do mecanismo de arco-reflexo. Agora, no entanto, precisará estar apropriada para operar com a realidade, tornando-se de fato uma ação para alcançar seus fins, e não apenas uma pura descarga motora.

Todas essas modificações levariam o aparelho psíquico a obter a satisfação almejada com uma margem maior de segurança e algum planejamento. Lacan, no livro 2 do seminário, comenta do seguinte modo esse novo princípio:

“O princípio de realidade é em geral introduzido por este simples reparo que, quando se busca demais o prazer, acontecem acidentes de todos os tipos – queimam-se os dedos, apanha-se gonorreia, quebra-se a cara. É assim que nos descrevem a gênese daquilo que se chama aprendizagem humana. E nos dizem que o princípio de prazer se opõe ao princípio de realidade. Na perspectiva que é a nossa isto adquire, evidentemente, um outro sentido. O princípio de realidade consiste em fazer com que o jogo dure, ou seja, que o prazer se renove, que o combate não termine por falta de combatentes. O princípio de realidade consiste em resguardar nossos prazeres, estes prazeres cuja

tendência é justamente atingir o cessamento”. (Lacan, 1954-55/1985, p. 112).

Mas, além dessas modificações já descritas, há mais uma transformação importante no aparelho para alinhar-se ao princípio de realidade e retificar o princípio de prazer que envolve especificamente a atividade do pensamento. Esta atividade que, até então, era provavelmente inconsciente e apenas se dirigia às representações de objeto, agora conta com representações de palavras para atingir a consciência, conseguindo tolerar o aumento de energia pulsional enquanto espera para poder satisfazer a pulsão. Freud afirma que o pensamento passa, desse modo, a ser uma atividade “experimental de atuação acompanhado por quantidades relativamente pequenas de catexia” (p. 240). É como se agora, podendo suportar a tensão advinda do aumento de quantidade pulsional, o aparelho, mediante a atividade do pensamento, conseguisse operar uma espécie de cálculo e estimativas para só então se encaminhar para a ação.

Todavia, Freud considera nesse texto, como já o fizera no Projeto, a existência de um tipo do pensamento que permanece apartado dessas transformações que foram operadas no aparelho para funcionar de acordo com os métodos do princípio da realidade. Essa parcela de pensamento que permanece funcionando de acordo com as leis do princípio de prazer foi denominada como o fantasiar. Ela revela a tendência do aparelho psíquico em manter, ao menos em alguma parte de seus domínios, a forma de prazer no modo como este era alcançado anteriormente. Dessa maneira, ao fantasiar, o aparelho “abandona a dependência de objetos reais” (p.241) e se satisfaz de acordo com os princípios de seu modo mais antigo de funcionamento.

Em uma passagem das Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1917), Freud apresenta uma imagem que ilustra muito bem essa concepção da fantasia como atividade do pensamento apartada das modificações posteriores.

“A criação do reino mental da fantasia encontra um paralelo perfeito no estabelecimento das ‘reservas’ ou ‘reservas naturais’, em locais onde os requisitos apresentados agricultura, pelas comunicações e pela indústria ameaçam acarretar modificações do aspecto original da terra que em breve o tornarão irreconhecível. Uma reserva natural preserva seu estado original que, em todos os demais lugares, para desgosto nosso, foi sacrificado à necessidade. Nesses locais reservados, tudo, inclusive o que é inútil e até mesmo nocivo, pode crescer e proliferar como lhe apraz. O reino mental da fantasia é exatamente uma reserva

desse tipo, apartada do princípio de realidade.” (Freud, 1917b/1996, p. 374).

Novamente, no trecho acima, podemos sublinhar a característica do aparelho descrito por Freud, a qual apontamos ao início dessa seção, quando afirmamos que não há uma adaptação desse organismo ao meio. A descrição do “estado original” de Freud é o terreno no qual o inútil e o nocivo podem ser reeditados continuamente sem necessitarem das modificações posteriores, essas sim destinadas à criação. No texto de 1911, encontramos uma descrição de Freud para esses processos e suas qualidades:

“A característica mais estranha dos processos inconscientes (reprimidos), à qual nenhum pesquisador se pode acostumar sem o exercício de grande autodisciplina, deve-se ao seu inteiro desprezo pelo teste de realidade; eles equiparam a realidade do pensamento com a realidade externa e os desejos com sua realização – com o fato – tal como acontece automaticamente sob o domínio do antigo princípio do prazer.” (Freud, 1911/1996, p. 243).

Além dessa cisão que ocorre nos domínios do pensamento em relação ao processo de instauração do princípio de realidade, Freud declara que há mais uma objeção a ser colocada em sua explicação. Ainda que tenha tentado fazer uma apresentação esquemática para o leitor a respeito do processo de instauração do princípio de realidade, é preciso assumir que esse processo não ocorre em um só momento e tampouco em todas as regiões da mente. Além da exceção representada pelo fantasiar, Freud admite que também há uma ressalva a ser feita em relação às pulsões. Segundo ele, há uma diferença de estabelecimento do princípio de realidade para as pulsões de Eu e para as pulsões sexuais, não ocorrendo um processo equivalente nas duas vertentes pulsionais.

De fato, o processo que foi descrito de substituição e modificação operado pelo princípio de realidade é inicialmente válido apenas para o que passa a ocorrer com pulsões do Eu. Quanto às pulsões sexuais, Freud afirma que elas desligam-se desse desenvolvimento “de modo muito marcante” (p. 241). Essa diferenciação ocorreria devido ao fato de, por sua característica auto-erótica inicial, as pulsões sexuais ficariam, por um longo período, sem deparar-se com a frustração da satisfação pulsional que reclama ao aparelho operar modificações para considerar a realidade e poder alcançar sua meta. Quando finalmente a pulsão sexual encontra um objeto, ela é interrompida

pelo período de latência, o que retardaria ainda mais a modificação em funcionamento. Desse modo, o processo de substituição de um regime por outro na esfera das pulsões sexuais fica retardado e, acrescenta Freud, para muitas pessoas pode nunca chegar a ocorrer. Segundo Freud, surge assim uma relação estreita entre as pulsões sexuais e a fantasia e de outro lado as pulsões do eu e a consciência, mas que trata-se apenas de uma vinculação de menor valor para as explicações sobre os destinos dessas pulsões. O que se mostra ser de fato relevante é a possibilidade de satisfação auto erótica das pulsões sexuais. É esse o fator determinante para que elas se desprendam das exigências que são impostas para as pulsões do eu, que requerem adiamento e modificações no modo de operar a fim de alcançar a satisfação.

Até aqui, parece que estamos pisando em um campo bem demarcado. De um lado o pensamento racional e as pulsões do eu submetendo-se ao regimento do princípio de realidade, de outro lado a fantasia e as pulsões sexuais permanecem sob domínio do antigo regime. No entanto, nesse momento do texto, Freud faz uma observação importante que embaralha essa divisão que parecia, até então, estar muito bem estabelecida. Ele considera que o pensamento da fantasia interfere no modo de pensar racional. Pois o pensamento fantasmático, por ainda dar um tratamento ao pensamento nos modos do princípio de prazer, tende a recalcar qualquer pensamento que seja desprazeroso, impedindo o acesso das representações que possam gerar desprazer à consciência. Ainda que algumas passagens do texto levem à interpretação de que o pensamento racional e o pensamento da fantasia seriam dois campos apartados devido a seu modo de funcionar distinto – interpretação que encontra bastante fundamento na metáfora das fantasias como reservas naturais – a seguinte passagem do texto freudiano indica que não é isso que de fato ocorre, e que esses modos de pensamento continuam em comunicação, influenciando um ao outro:

“No campo da fantasia, a repressão permanece todo-poderosa; ela ocasiona a inibição de ideias in statu nascendi antes que possam ser notadas pela consciência, se a catexia destas tiver probabilidade de ocasionar uma liberação de desprazer. Este é o ponto fraco de nossa organização psíquica; e ele pode ser empregado para restituir ao domínio do princípio de prazer processos de pensamento que já se haviam tornado racionais.” (Freud, 1911/1996, p. 241).

Assim, o que até então parecia ser um texto destinado a versar sobre a progressiva instalação do princípio de realidade em um aparelho que funcionava apenas

considerando o prazer, mesmo que este fosse inútil e nocivo, começa a sofrer uma inversão em seus objetivos. É possível constatar que Freud passa, aos poucos, a descrever como os espaços do princípio de realidade vão sendo novamente invadidos pelo princípio do prazer. Como observado, Freud foi pouco a pouco inserindo as ressalvas: primeiramente uma parcela do pensamento fica apartada, em seguida ele acrescenta que uma parte das pulsões também, e, por último, é o próprio domínio do pensamento racional que naufraga. Tem-se a impressão de que estamos situados em um campo de soberania instável e não em uma cidade bem delimitada, com o tranquilo funcionamento de sua agricultura, indústria e comunicações e apenas com uma reserva natural, nociva e inútil, em seu centro. Como o próprio texto indica, as fronteiras entre esses espaços são bastante móveis, mesmo no que se refere aos domínios do eu: “Tal como o ego-prazer nada pode fazer a não ser querer, trabalhar para produzir prazer e evitar o desprazer, assim o ego-realidade nada necessita fazer senão lutar pelo que é útil e resguardar-se contra danos.” (Freud, 1911/1996, p. 241).

Mas, ainda que as fronteiras sejam instáveis, isso não significa que se esteja em um campo de batalhas quando se trata da relação entre os dois princípios. A hipótese de Freud é de que não haveria oposição entre os princípios do funcionamento mental, e sim que o princípio de prazer é protegido pelo princípio de realidade, que consiste apenas em um modo de obter os objetivos de prazer por meios mais seguros e eficazes.

“Na realidade, a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade não implica a deposição daquele, mas apenas a sua proteção. Um prazer momentâneo, incerto quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo caminho, um prazer seguro.” (Freud, 1911/1996, p. 242).

Essa citação de Freud levou alguns comentadores de sua obra, como Perres (1989), a afirmar que, se tomarmos o termo princípio em seu sentido de lei e fundamento, o princípio de realidade, no modo como está apresentado nessa passagem, não poderia ser considerado um princípio na plena acepção do termo. Pois este consistira apenas em ser um ajuste, uma transformação, do princípio de prazer. O princípio de realidade visaria à mesma meta (evitar desprazer através da diminuição da quantidade de energia livre presente no aparelho psíquico) que o princípio de prazer e apenas faria alterações no método por meio do qual poderia alcançá-la.

Portanto, se considerarmos que o princípio de prazer nunca é suplantado no aparelho psíquico e que o princípio de realidade estaria funcionando a serviço de seus

interesses, poderíamos pensar na hipótese de que as características de funcionamento do fantasiar e do recalcado seriam não apenas a reserva natural apartada do território ocupado pela civilização transformada pelo princípio de realidade no aparelho, mas sim o que esse aparelho teria de mais fundamental. Ou seja, talvez essas atividades não sejam a exceção dentro do psiquismo, mas sua própria prerrogativa.

No entanto, há uma passagem do texto de Freud que indica ser possível uma mudança nessa configuração, ao afirmar que, em paralelo ao desenvolvimento do eu- prazer em eu-realidade, as pulsões sexuais também estão em um processo de desenvolvimento que as leva “(...) de seu auto-erotismo original, através de diversas fases intermediárias, ao amor objetal a serviço da procriação” (p.243). Parece ser possível supor, então, a partir dessa concepção, que no momento em que essa meta de desenvolvimento é alcançada, as interferências da fantasia e das pulsões sexuais que antes estavam sob domínio estrito do princípio de prazer possam finalmente passar a considerar a realidade, submetendo-se ao princípio que organiza essa outra forma de relação.

Entretanto, essa meta de desenvolvimento não seria alcançada pela neurose, que apresentará fixações em pontos específicos no curso do desenvolvimento do eu e da pulsão. Freud afirma que a escolha da neurose estará relacionada à “fase específica de desenvolvimento do ego e da libido na qual a inibição disposicional do desenvolvimento ocorreu” (p.243). Ao menos essa passagem do texto permite supor que haveria um momento possível em que o desenvolvimento do eu e das pulsões poderia um dia alcançar seu termo, restando apenas os neuróticos no meio do caminho dessa evolução.

Ainda a respeito das considerações sobre o desenvolvimento e a instalação do princípio de realidade, há uma nota de rodapé no texto na qual é possível encontrar mais uma indicação para seu término: “(...) o predomínio do princípio de prazer só pode realmente terminar quando a criança atingiu um completo desligamento psíquico dos pais” (p.239). Há duas especificações a respeito do desenvolvimento nessa passagem. Primeiramente, percebe-se que realmente parece não haver formas de eliminar o princípio de prazer, mas apenas seu predomínio. A segunda delas é a de que não há um parâmetro cronológico ou já programado naturalmente, uma vez que não há nenhum critério de idade para definir quando esse desligamento psíquico em relação aos pais será conquistado.

Passaremos agora a investigação do texto Totem e Tabu e veremos como conseguir desligar-se dos pais pode ser considerada uma das tarefas inconclusas da humanidade.