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A realidade em Sobre as afasias

O sentido de realidade em Freud

1.1 Freud e a função do real.

1.1.1 A realidade em Sobre as afasias

Começaremos por Sobre as afasias: um estudo crítico, de 1891, texto bastante remoto mas importante para a compreensão da teoria da representação da realidade. As formulações freudianas do funcionamento do aparelho de linguagem ali descritas já rompem com um postulado importante, ao dissociar a apreensão da realidade da percepção da realidade enquanto fruto de processos fisiológicos do organismo.

Apesar de não publicado na organização de suas obras completas por tratar-se de um texto neurológico, esse escrito de Freud, a dar razão a alguns comentadores (Forrester, 1983; Garcia-Roza, 1991; Rudge, 1998), já anuncia algumas questões psicanalíticas fundamentais, ainda que de modo incipiente tais como: a teoria do lapso, chiste e ato falho; a superação da distinção entre normal e patológico; um ensaio sobre o funcionamento das representações no psiquismo a partir da descrição do aparelho de linguagem. Além disso, o fato de Freud retomar muitos pontos discutidos em Afasias vinte e quatro anos depois em O inconsciente (1915), artigo central da metapsicologia, também é índice da pertinência dos temas de seu estudo para além do campo da neurologia.

Em 1891, Freud já havia ido à Paris para seu estágio na Salpêtrière. Ele também já havia traduzido para o alemão a obra de Charcot sobre a histeria (Neue Vorlesungen über die Krankheitendes Nervensystems, insbesondere über Hysterie) e escrito o verbete sobre histeria para a Enciclopédia Villaret. Desse modo, os problemas da clínica e da teorização da neurose já lhe eram familiares. Segundo Simanke (1994), o texto das afasias pode ser lido como uma tentativa de Freud de fornecer uma teoria neurológica que fundamentasse a existência objetiva dos fenômenos da neurose, não apenas como epifenômeno de lesões no sistema nervoso, como pretendiam as teorias localizacionistas da época.

“Com sua viagem de estudos à França, em 1885, Freud entrara em contato com uma psiquiatria que se afastava do mecanicismo estrito da academia alemã, do qual Meynert, seu antigo professor, era um dos principais defensores. Contudo, se o ensino de Charcot permitiu o surgimento do conceito de neurose (...) encontrava-se ainda demasiadamente comprometido com uma psicologia abstrata das faculdades mentais, que tendia mais a uma tipologia dos indivíduos do que à produção de categorias objetivas de análise. É, pois, como um esforço no sentido de prover a clínica da neurose de um fundamento conceitual mais sólido, que pode ser entendido o trabalho desenvolvido por Freud em Zur Auffassung der Aphasien.” (Simanke, 1994, p. 02).

Serão as teses localizacionistas de explicação das afasias as primeiras a receberem as críticas de Freud, especialmente os escritos de Wernicke, uma vez que ali estavam reunidos os pressupostos principais da vertente anato-patológica de interpretação das patologias, quais sejam: a afasia resultaria da destruição dos centros cerebrais da linguagem (o centro motor, o centro sensorial ou o sistema de fibras associação que os une); as representações estariam localizadas no interior das células neuronais; os processos de associação e percepção ocorrem em lócus separados.

Após passar em revisão diversos casos clínicos e explicações na literatura sobre afasias, Freud anuncia: “(...) repetimos para nossa segurança que fomos obrigados a abandonar a explicação da localização na medida em que ela foi contraditada pelas verificações de autópsia.” (Freud, 1891/2003, p. 17). Segundo Freud, a tese da localização da atividade psíquica da linguagem em diferentes áreas cerebrais deveria ser substituída por uma abordagem funcionalista que, sem deixar de referir-se à anatomia, daria mais ênfase aos processos globais de funcionamento neuronal.

Essa mudança de perspectiva na abordagem do fenômeno deve-se à segunda hipótese teórica de Freud em seu entendimento do fenômeno estudado: o pressuposto de que os processos psíquicos não são causados pelos processos fisiológicos. Ou seja, os fatos psíquicos resultam, mas não são o efeito mecânico do processo fisiológico, de modo que seria impossível deduzir um processo do outro, na forma de um decalque. Nos dizeres do autor:

“(...) a cadeia de processos fisiológicos no sistema nervoso não está em relação de causalidade com os processos psíquicos. Os processos fisiológicos não cessam mal se iniciam os psíquicos, pelo contrário, a cadeia fisiológica prossegue, só que, a partir de um certo momento, a cada seu elemento (ou a cada um dos elementos isoladamente) corresponde um fenômeno psíquico. O psíquico é assim um processo paralelo ao fisiológico (“a dependent concomitant”)”. (Freud, 1891/2003, p. 31).

Essa tese freudiana vai implicar duas consequências importantes na teoria da representação elaborada então por ele, de modo a operar duas modificações essenciais quando comparadas à teoria anterior. Se o processo psíquico não equivale ao processo fisiológico, a representação não equivale à sensação. Ainda que esteja ligada à percepção, a representação psíquica não será um correspondente, de ponta a ponta, dos dados físicos da percepção. Abandona-se, portanto, a concepção da representação como uma projeção do mundo externo. A segunda derivação do abandono das teses localizacionistas consiste no postulado de que a representação não está isolada dentro das células nervosas e apartada das vias onde ocorreriam as associações. Em acordo com a concepção funcionalista, representação e associação não serão entendidas mais como processos separados espacialmente e, tampouco, temporalmente.

A divisão estanque entre esses processos será totalmente refutada com a disposição do aparelho de linguagem tal como desenhada por Freud. Nesse modelo, a própria representação será um complexo associativo de imagens mnêmicas acústicas, visuais, motoras, tácteis que se relaciona a outros complexos representacionais, formando uma “superassociação”, na expressão de Freud. Ele estabelece dois tipos de complexos representacionais no aparelho de linguagem – representação-palavra (Wortvorstellung) e representação-objeto (Objektvorstellung) – que, quando articulados, produzem a significação. É fundamental ressaltar que a representação-objeto não é o objeto nele mesmo (Ding), apenas a sua representação imagética. Segundo Simanke,

“Fica claro como a linguagem, nesta concepção, não representa o mundo da percepção: o objeto da representação de palavra é uma outra representação – a de objeto -, ambas configurando complexos cujos elementos são de origem perceptiva, mas não pertencem, enquanto tais, à esfera representacional.” (Simanke, 1991, p.05).

De certo modo, parece que estamos diante de uma variante do kantismo, no sentido de que a representação-objeto tem semelhanças com o conceito kantiano de fenômeno. Embora resulte de uma afecção da coisa sobre o aparelho sensível do sujeito, o fenômeno não coincide, segundo Kant, com a própria coisa, pois ele, ou essa afecção, é determinado pelas condições da natureza cognitiva do sujeito.

Portanto, pode-se concluir que já de início, em Freud, o problema da realidade é marcado por pelo menos dois hiatos. Um hiato que diz respeito à representação da realidade e a realidade em si mesma4 – nesse aspecto, é visível a aproximação com a abordagem kantiana do problema da coisa em si. Mas também um hiato já no campo representacional, visto que a representação se diferencia do elemento sensorial dada a sua composição como um complexo associativo.

De outro lado, os elementos para investigar a questão dos modos de desenvolvimento dessa estrutura são, é verdade, escassos, mas vale lembrar que eles são ainda assim bastante frutíferos. Pois, em primeiro lugar, em nenhum momento do texto encontramos uma avaliação do funcionamento representacional escalonado em etapas de desenvolvimento, ou seja, ele parece ser independente de um estágio maduro ou imaturo. Ainda que utilize a Teoria da Evolução de Hughlings Jackson na explicação das afasias, a estrutura do aparelho de linguagem, bem como seu modo de funcionamento, parece independer da passagem do tempo.

Em segundo lugar, de uma maneira mais positiva, Freud recusa a teoria de Wernicke, segundo a qual os centros da linguagem estariam separados por vazios livres de funções, de modo “que não só o desenvolvimento infantil mas também a aquisição de ulteriores conhecimentos (...) se baseiam na ocupação de um terreno até então vago do córtex, mais ou menos como uma cidade que se estende pela ocupação de terrenos

                                                                                                                          4

Esse hiato permanece até o fim. Em Esboço de Psicanálise: “Em nossa ciência, tal como nas outras, o problema é sempre o mesmo: por trás dos atributos (qualidades) do objeto em exame que se apresenta diretamente à nossa percepção, temos que descobrir algo que é mais independente da capacidade receptiva particular de nossos órgãos sensoriais e que se aproximam mais do que se poderia supor ser o estado real das coisas. Não temos esperança de poder atingir esse estado em si mesmo visto ser evidente que tudo de novo que inferirmos deve, não obstante, ser traduzido de volta para a linguagem das nossas percepções, da qual nos é simplesmente impossível libertar-nos. (...). A realidade sempre permanecerá sendo “incognoscível”.” (Freud, 1940[1938]/1996, p. 210).  

fora das muralhas” (Freud, 1891/2003, p. 34). Ao contrário disso, Freud considera que todas as novas aquisições estão localizadas nas mesmas áreas da primeira língua aprendida.