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Zilboorg e Frumkes: dois modelos de desenvolvimento para o sentido de realidade.

O debate para além de Freud

3.3 Zilboorg e Frumkes: dois modelos de desenvolvimento para o sentido de realidade.

despersonalização, mas apresenta uma hipótese que parece estar relacionada com o artigo de Glover, ainda que não o mencione. Em uma das considerações sobre a despersonalização, Obendorf declara que muitos pacientes com esses sintomas elegeram alguns objetos ou situações que teriam a capacidade de funcionar como recursos para “manter a realidade” (p. 140). Esses objetos, que seriam sempre inofensivos, segundo Obendorf, ainda não tiveram sua função simbólica profundamente estudada, mas poderiam levar a esclarecer as causas que levaram à despersonalização.

3.3 Zilboorg e Frumkes: dois modelos de desenvolvimento para o sentido de realidade.

O artigo de Gregory Zilboorg, The Sense of Reality, publicado no

Psychoanalytic Quarterly em 1941, consiste em uma comunicação feita à Sociedade Psicanalítica de New York. Ele tece aí comentários a respeito do rumo das pesquisas sobre o tema da realidade, apresentando alguns textos freudianos e expondo sua concepção de desenvolvimento do sentido de realidade. Na avaliação do autor, embora a psicanálise tivesse feito progressos nos últimos anos nas pesquisas a respeito das funções do eu e seus mecanismos de defesa, pouco havia avançado em termos de conhecimento sobre a relação entre o eu com a realidade. O autor tampouco se atém a essa questão a respeito do estado atual das pesquisas, e passa a revisar alguns textos de Freud sobre a questão da realidade, como Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental e Totem e tabu. Seu argumento ao longo da comunicação se fundamenta essencialmente sobre o segundo texto freudiano, uma vez que irá traçar paralelos entre a questão do sentido de realidade e as fases do pensamento animista e científico, nos quais tocamos indiretamente quando analisamos, no primeiro capítulo, as relações entre os sistemas de pensamento e os princípios de prazer e o de realidade.

Em sua definição, o sentido de realidade não é um resultado estático derivado de um desenvolvimento psicológico, mas uma qualidade do aparelho psíquico que é fluida, mutável e inconstante, uma qualidade que nos permite dominar e modificar o que é factual e concreto a nosso favor. Essa qualidade dependeria dos elementos pulsionais que geram a realidade psíquica e que se tornam uma parte integral de cada nova

representação de objeto formada. Ele afirma que as imagens dos objetos que estão presente no aparelho aparato psíquico não são equivalentes às imagens fotográficas estáticas, mas sim representações do objeto que estão investidas de libido e correlacionadas ao nosso sistema sensório-motor. Além disso, a capacidade de fazer representações não seria um resultado primário e espontâneo da atividade psíquica, mas um processo que levaria tempo – nos níveis filogenético e ontogenético – para se estabelecer.

Zilboorg afirma que no estágio animista, em que se encontrariam os primitivos e as crianças, as imagens do mundo externo não produziriam representações psíquicas e seriam apreendidas como se fossem os objetos eles mesmos. Nessa etapa, o sonho e as fantasias teriam o mesmo peso que a realidade, uma vez que, nesse período, o psiquismo, além de apreender o fenômeno externo apenas por suas aparências, também projetaria para o mundo externo as próprias imagens que produziu.

Na etapa seguinte, que o autor denomina “fase de realidade objetiva”, ainda se realizariam, de alguma forma, projeções animistas características da fase anterior, apesar de já se demonstrar uma nova forma de percepção, capaz de diferenciar as ideias e as percepções. Segundo o autor, essa nova fase se caracteriza pela percepção melhor da realidade e pelo estabelecimento de diferenciações com a fantasia. Porém, quando uma imagem concreta é percebida e incorporada, ela ainda estaria envolvida em uma luta de combinações de impulsos destrutivos, de identificações, de reações de auto- preservação e projeções mágico animistas, todos esses elementos influenciando na representação dos objetos. Dessa forma, embora o ser humano aprimore sua visão da realidade ao passar da fase animista para a fase realista, nunca haveria uma representação puramente objetiva da realidade. Zilboorg enfatiza que, para que fosse possível haver esse estado ideal de apreensão da realidade, seria preciso que não houvesse fantasias, desejos, sentimentos ou contradições na mente humana.

Assim, de acordo com a concepção de Zilboorg, o ser humano estaria localizado em um ponto entre dois estados absolutos representados pelo pensamento animista e realista. Existiriam diversas gradações entre os estados, transições imperceptíveis, misturas de elementos dos dois em várias proporções. Ele afirma que uma mistura harmônica de elementos dos dois estados constituiria a saúde do aparelho psíquico, impedindo a ocorrência dos distúrbios de apreensão de realidade – distúrbios estes que, segundo ele, não seriam necessariamente patológicos.

Segundo as considerações do texto de Zilboorg a respeito dos modos de disposição das fases do pensamento, mesmo o pensamento científico apresentaria traços heterogêneos de pensamento anímico e realista. O autor dedica boa parte do artigo a ilustrar, através de dados biográficos de cientistas e também através das próprias teorias científicas, sua hipótese de que as duas formas de pensamento estariam sempre enlaçadas. Para ele, as dificuldades básicas que a ciência encontra para atingir seu objetivo de conhecer o mundo seriam as mesmas dificuldades encontradas no desenvolvimento do sentido de realidade. Trata-se para ele dos seguintes obstáculos: a constante pressão do hedonismo, que faz com que o homem veja-se como o fenômeno mais singular da natureza; as tendências animistas que sempre ameaçam invadir o eu; as projeções animistas e fantasias antropocêntricas que sempre levam o eu a perceber o mundo externo de um modo narcísico. Ele conclui afirmando que o sentido de realidade, embora tenha um desenvolvimento da fase animista para a fase científica e realista, por sofrer as ações de fantasias e pulsões, nunca será totalmente uma percepção objetiva da realidade, sendo sempre um sentido incerto devido ao seu “estado eterno de equilíbrio instável” (p.209).

Ao final do artigo de Zilboorg, o que resulta mais importante de suas afirmações não parece ser propriamente um desenvolvimento do sentido de realidade, mas uma espécie de combinação harmônica de elementos das duas fases que deve se manter estável para que os distúrbios não ocorram. Na maneira como está exposto, o desenvolvimento do sentido de realidade envolveria algumas modificações para o aparelho psíquico, mas manteria os elementos da fase animista inicial e não formaria uma estrutura totalmente inovadora.

Uma concepção bem diferente será delineada no texto de Frumkes, intitulado Impairment of the Sense of Reality as Manifested in Psychoneurosis and Everyday Life (1953). Nele o autor procura fazer uma apresentação da relação de dez pontos que poderiam servir como indicações para a avaliação de um sentido de realidade maduro. Novamente, os textos freudianos mais aludidos serão Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911) e Totem e Tabu (1913), os quais analisamos no primeiro capítulo.

A definição que encontramos para o termo sentido de realidade na concepção de Frumkes é apenas aquela que pode ser deduzida do catálogo de suas dez funções. Logo, o sentido de realidade será a presença de um eu forte; a diminuição do poder dos instintos; a capacidade de conseguir estabelecer boas relações de objeto; a inexistência

de perdas das fronteiras do eu. Quanto a esta última definição, o texto indica que seria a demonstração mais clara do alcance do sentido de realidade: a capacidade plena de diferenciação entre o eu e o ambiente externo.

Na concepção de Frumkes, o sentido de realidade é resultado do estabelecimento do princípio de realidade e do funcionamento do teste de realidade que se estabelecem como um crescimento natural do organismo, para evitar a dor e gratificar o instinto. Ainda que o comportamento humano seja determinado pelo princípio de prazer, o princípio de realidade deverá começar a funcionar como um controle e uma consideração da realidade, que poderá facilitar o comportamento a conseguir alcançar o prazer e fugir da dor.

No entanto, Frumkes admite que essa transformação natural que leva o organismo a abandonar o princípio do prazer e começar a se interessar por uma adaptação realista não é um processo fácil. Esse crescimento ocorreria na forma de um desenvolvimento que requer tempo e esforço para que se aprenda a adiar, alterar e até mesmo sacrificar o prazer em alguns casos. Além disso, a maturação do sentido de realidade não dependeria apenas do indivíduo, sendo também fruto da educação que lhe é dada por seus cuidadores desde a infância, que podem treinar e ensinar as crianças sobre os modos de funcionamento e os fatos do ambiente externo. Além disso, a educação promoveria o princípio de realidade usando o amor como recompensa, e poderia falhar caso a criança receba esse prêmio independentemente do seu comportamento. Entretanto, é necessário que haja uma espécie de equilíbrio, pois, se o desenvolvimento do princípio de realidade pode ser retardado se houver muita indulgência, poderá também ser prejudicado se, por outro lado, a criança ficar muito ansiosa com os excessos de comandos e de ensinamentos.

O autor então apresenta os dez critérios para avaliar as condições do desenvolvimento individual do sentido de realidade. Não são dez etapas do desenvolvimento, mas dez critérios que devem constar no bom sentido de realidade de uma pessoa. O primeiro critério de avaliação consiste em verificar se está presente a capacidade de retardar as ações e assim conseguir pensar e repensar para avaliar se a ação é possível e qual é o momento para executá-la.

O segundo critério é a habilidade para empregar a ação de modo correto, a fim de buscar as mudanças desejadas no ambiente e conseguir a satisfação. É importante que a pessoa consiga agir com o objetivo de conseguir a satisfação e não somente para descarregar a tensão.

O terceiro critério de avaliação consiste, como mencionamos acima, uma das mais importantes funções do sentido de realidade para o autor: a capacidade de diferenciação entre o eu e o não-eu. O estabelecimento dessa competência conseguiria levar o aparelho a conseguir diferenciar as ideias internas dos objetos externos, evitando, assim, a ocorrência de alucinações e do pensamento mágico. Segundo o autor, é preciso que o organismo entenda que a onipotência incondicional não funciona como método para obtenção de satisfação (esse seria o quarto critério), e que a presença da necessidade da satisfação não garante que a satisfação ocorra (quinto critério).

O sexto critério de avaliação seria a compreensão de que as ações simbólicas não trazem satisfação e que os objetos externos não são influenciados pelas mesmas, sendo necessário agir de modo correto para ser gratificado. O sétimo critério consiste em ser quase um desdobramento do anterior: conseguir separar o símbolo do objeto e também conseguir entender que objetos que possuem características similares não são necessariamente o mesmo objeto.

Frumkes apresenta como oitavo critério a capacidade de se estar atento para a tentação de negar a realidade (p. 124), porque ela traria dor para o organismo. Segundo ele, “a pessoa com um bom senso da realidade está apta a tolerar uma boa parcela de tensão” (p. 124). O nono critério é o “alerta contínuo” (p. 124) para não atribuir onipotência a qualquer coisa, pois quando um objeto é considerado como onipotente a pessoa pode, por identificação, considerar que ela própria é onipotente e, assim, reviver a ilusão da identidade com o mundo externo, perdendo novamente os limites de seu eu.

O último critério seria a capacidade do eu de conseguir reconhecer não apenas as demandas dos impulsos do id, mas também as demandas do superego e da realidade externa. Esse critério seria uma forte evidência de que o eu estaria realmente conseguindo realizar a sua função de forma integral. Segundo Frumkes, esse critério seria de difícil descrição, pois seus detalhes só poderiam ser obtidos através de relato de pacientes que já terminaram suas análises.

Nesse texto, há uma orientação clara para a análise, já que o seu término deveria levar o paciente a conseguir alcançar o sentido de realidade de modo integral. Isso significaria, segundo o autor, não apenas conseguir minimizar os sintomas e dotar o paciente da capacidade de usufruir da vida sexual plena e do trabalho. Também seria possível para o paciente formar fantasias, fazer chistes e brincadeiras, indicando que a pessoa se sente segura para abandonar temporariamente a realidade, já que estaria certa a respeito de sua capacidade de encontrar o caminho de volta.

Para Frumkes, o desenvolvimento do sentido de realidade nunca é um processo que se completa totalmente em função das limitações do homem para enfrentar o mundo, um ambiente que está em constante estado de fluxo e mudança. Uma vez que o organismo biológico precisa de recursos do mundo externo para sobreviver, e uma vez que o universo externo possui infinitos problemas e mudanças constantes, o sentido de realidade não deve assumir posições rígidas, para melhor se adaptar a esse cenário e conseguir a gratificação para o organismo, De acordo com Frumkes, este é um processo de equilíbrio variável.

Portanto, o conceito de sentido de realidade parece ser, afinal das contas, um modo de adaptação do organismo ao ambiente, funcionando como uma forma de bom senso e controle para fins de garantia de sobrevivência e gratificação. Dessa maneira Frumkes apreende o sentido de realidade e seu desenvolvimento de maneira bem diferente daquela realizada por Zilboorg. Para este o sentido de realidade nunca poderia tornar-se absoluto em função das características do aparelho psíquico, que não permitiriam obter uma visão totalmente realista do mundo externo. Já para Frumkes é o próprio mundo externo, por sua característica de estar em constante transformação, que leva o sentido de realidade a não assumir uma forma fixa.