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A discriminação pelo Legislador e pelo Judiciário

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 37-40)

1.2 Hipóteses sobre a subrepresentação da mulher nas estatísticas criminais

1.2.5 A discriminação pelo Legislador e pelo Judiciário

Primeiramente, cumpre destacar que está hipótese para a subrepresentação da criminalidade feminina envolve duas acepções de “igualdade”, quais sejam, a “igualdade na lei”, relacionada ao tratamento conferido aos indivíduos pelo Poder Legislativo na feitura dos diplomas legais, e a “igualdade perante a lei”, relacionada ao modo como os indivíduos se confrontam com a lei, tanto nas atividades do cotidiano, como nos procedimentos judiciais.

O texto constitucional vigente afirma que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” (CF/1988, art. 5º, inciso I). Uma interpretação literal deste preceito nos leva ao princípio da igualdade formal, que concerne em tratar a todos os indivíduos da mesma maneira, independente de suas particularidades.

Segundo lição de Mangabeira (apud PINTO FERREIRA, 1983, p. 771), a “igualdade na lei”, meramente formal, não é suficiente para dirimir os inúmeros conflitos

sociais que marcam as sociedades contemporâneas, motivo pelo qual o ideal seria a busca pela igualdade substancial, ou seja, aquela que confere tratamento equânime e uniformizado às pessoas, levando em consideração as disparidades existentes. O que para Dias (2007) “trata- se da consagração da máxima aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”.

Nesse sentido, Kelsen (1974, p. 203) declara que “seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres”.

Estes seriam fundamentos para a edição de normas contemplando direitos, deveres e tratamentos jurídicos díspares em consonância com características específicas de cada grupo de indivíduos. São exemplos de diplomas legais brasileiros cunhados sob essa perspectiva: o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/1990), o Estatuto do Idoso (Lei nº. 10.741/2003) e a Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340/2006).

Contudo, vale destacar que tratamentos jurídicos diferenciados se legitimam apenas quando a discriminação é necessária e balizada por parâmetros, de razoabilidade e de proporcionalidade, caso contrário pode promover resultados nefastos. Morais (2003, p. 65.) corrobora esse entendimento alertando que “a desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas”.

Ao longo do tempo a legislação brasileira apresentou diversos dispositivos incompatíveis com a afirmação da igualdade. Conforme Côrrea (1981), já no primeiro Código Penal Brasileiro - CPB, promulgado em 1830, temos um exemplo emblemático de desigualdade na lei entre homens e mulheres, qual seja, no crime de adultério, com pena de prisão de um a três anos, o homem adúltero só seria punido com prisão se comprovada a existência de relação extraconjugal pública e estável, circunstância não exigida pela lei no caso da mulher adúltera, bastando, muitas vezes, apenas a suspeita da infidelidade.

Ainda que o referido diploma legal tenha representado um avanço frente às Ordenações Filipinas, Côrrea (1981, p. 21) destaca que o mesmo “foi também discriminatório, inaugurando na área das leis que regem o nosso comportamento social a distinção entre o que seja o comportamento adequado de um homem e de uma mulher”.

Côrrea (1981, p. 20) ressalta, também, que desde o Código Civil de 1916 a mulher “aparece como tutelada, como os menores, os velhos, e o principal aspecto de sua persona social a ser resguardado pela lei é a virgindade, fazendo-se distinção explicita entre a ‘mulher honesta’ e a prostituta ou mulher pública”.

Nesse sentido, Voegeli (2003, p. 49) conclui que, por muito tempo, “o lugar da mulher no Direito é um não-lugar, visto que marcado pela subordinação ao marido e pelo regime de incapacidade” e “que a linguagem do direito é sexista e tem gênero: o masculino”. Citando Smart, a autora arremata afirmando que o direito é sexista porque “os valores que aplica aos direitos que contempla – igualdade, neutralidade, objetividade – são os ditos masculinos, e tomados como universais”.

Considerando que a criminalidade decorre da definição legal do que é crime, entendendo o Direito Penal como um sistema de controle social formal específico das relações de produção na ordem pública, essencialmente masculina, e, por fim, a ordem privada como o espaço tipicamente feminino, Barrata (1999, p. 45-46) defende que “o sistema de controle dirigido exclusivamente à mulher (no seu papel de gênero) é o informal, aquele que se realiza na família”.

Assim, as normas elaboradas pelo Legislador penal para o controle de condutas ilícitas com contornos tipicamente masculinos, não alcançariam as condutas femininas desviantes ou criminosas. Estas últimas estariam vinculadas ao modelo de socialização da mulher e inseridas num contexto de subordinação estrutural, sendo que, quando detectadas, sofrem o chamado controle social informal exercido, por exemplo, pela família, pela escola, pelos grupos, associações ou movimentos sociais.

No que diz respeito à “igualdade perante a lei”, a atitude discriminatória dos julgadores é apontada como um dos fatores para um menor número de condenações e prisões de mulheres. Corroborando esta proposição, Voegeli (2003, p. 51) menciona estudos realizados na Itália e nos Estados Unidos que constataram a existência dessa discriminação - as mulheres que já chegam em número reduzido aos tribunais criminais, favorecidas pela benevolência da sociedade e da polícia, seriam também beneficiadas no Judiciário com a absolvição, condenação a penas menores ou recebimento de maiores benefícios.

Também nesse sentido, foi a conclusão da pesquisa de Côrrea (1981, p. 78), que analisando os casos de crimes passionais julgados pelo Tribunal do Júri na Cidade de Campinas, em São Paulo (1952-1972), constatou que das 15 mulheres acusadas, nove foram inocentadas, enquanto entre os 35 homens acusados, apenas 04 foram isentos de culpa. A autora pondera que parece existir uma maior benevolência do Judiciário para com as mulheres, porém, esta seria uma vantagem ambígua, pois decorre da mesma definição do estatuto feminino que a apresenta como tutelada.

Não obstante, existem pesquisas que verificaram um aumento significativo da aplicação de penas de prisão mais severas nas condenações de mulheres se comparadas às

condenações de homens (HEDDERMAN e GELSTHORPE, 1997; HEDDERMAN, 2003 apud HERRINGTON e NEE, 2005).

Para Sposato (2007, p. 260), as baixas taxas de aprisionamento feminino associam-se “ao fato de que quando uma mulher se desvia do papel imposto socialmente, logo a família, a escola, e todos os mecanismos de controle social informal atuam com maior rapidez e efetividade”. Para Ratton et al. (2011), o controle formal, repressivo, só seria acionado para aquelas recalcitrantes ao controle informal. Mas isso não significa ratificar que os crimes femininos tenham modos de resolução paternalistas e privados. O controle informal seria exercido preventivamente, antes do cometimento do crime.

Crenshaw lembra que igualdade é um conceito manipulável, podendo servir para legitimar a dominação social, sendo que,

(...) Tanto na igualdade quanto na diferença, o masculino é a medida para a igualdade das mulheres. Se a semelhança é o padrão, as mulheres obtêm a igualdade na medida em que são iguais aos homens. E se a diferença é o padrão, então elas somente obtêm a igualdade quando são diferentes dos homens (CRENSHAW, 1997 apud VOEGELI, 2003, p. 53)

Ao codificar opiniões, necessidades e conflitos referentes aos homens, o Direito prescreve, simultaneamente, o que as mulheres são ou deveriam ser. Portanto, o Direito representa uma enorme parcela da hegemonia cultural masculina, contribuindo para a manutenção do grupo dominante e da hierarquização dos gêneros. Isso repercute sobre o modo como os magistrados exercitam a jurisdição, muitas vezes, reproduzindo os preconceitos e o discurso discriminatório fundado em papéis de gênero, preponderante na legislação e na sociedade.

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 37-40)