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O Poder Judiciário e os sistemas de orientação da magistratura brasileira

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 92-97)

O estudo do processo de tomada da decisão judicial exige a contextualização dos atores responsáveis por sua concretização, ou seja, a identificação dos sistemas de orientação e da cultura jurídico-institucional em que estão inseridos. Deste modo, faremos uma breve exposição a respeito da influência das características do Poder Judiciário brasileiro sobre a racionalidade das práticas dos magistrados a ele vinculados.

Nesse sentido, consideramos emblemáticas as palavras de Sadek (1998) ao descrever a transformação porque tem passado a magistratura e o Judiciário brasileiro.

Olhar circunspecto, gestos medidos, corpo escondido em uma toga engomada: estava composto o figurino do juiz. Para completar o personagem, em tudo distante das mazelas do dia a dia, suas idéias, inclinações e preferências deveriam estar sufocadas no recôndito de sua intimidade. A ele cabia o papel de árbitro. Tanto mais imparcial quanto mais sem corpo e sem alma. Afinal, para representar uma justiça que se pretendia cega, o modelo haveria de ser inflexível, não admitindo improvisações e qualquer sorte de subjetividade. Dentre todos os papéis profissionais, talvez seja este o que mais tenha resistido às mudanças. Elas, entretanto, vieram. Devagar, dirão alguns. Mas o fato é que vieram. E por todos os lados. O judiciário não é mais aquele poder "mudo", no dizer de Montesquieu ou mesmo de Rousseau, concebido como distinto do executivo e do legislativo, mas vem se transformando em um ator político de primeira grandeza. Juízes vêm ganhando um corpo marcado pela idade, gênero, estado civil, origem social

e uma alma, cada vez mais exposta a afetos, sentimentos e paixões. O palco, por sua vez, também vem sofrendo alterações, ajustando-se a novos scripts. Neste novo cenário, os atores não só disputam espaços como ganham diferentes papéis. (SADEK, 1998, s/n, grifo nosso)

Em “Corpo e Alma da Magistratura Brasileira” (1997), Vianna et al. destacam o crescente protagonismo social e político da magistratura brasileira, analisando as mudanças institucionais decorrentes do processo de redemocratização/constitucionalização do sistema político e judiciário, bem como das características das demandas que provocam a jurisdição.

Embora de forma retardatária, ainda sem identidade plena com o processo de democratização, sem o adequado amadurecimento organizacional e doutrinário, os juízes viram-se alçados à condição de atores cada vez mais influentes na sociedade civil e na vida pública brasileiras. Forçados a atuarem constantemente como guardiões dos direitos fundamentais e sociais, comprometidos com a realização da justiça, deixaram de ser apenas a “boca inanimada da lei” para atuarem como agentes criadores e transformadores da estrutura social.

Vianna et al. (1997) voltaram-se inicialmente para a figura do Juiz e suas circunstâncias, enfatizando o processo de diferenciação cultural dos magistrados. Na esteira desse pensamento, os autores argumentam que para compreender essa transformação na atuação dos julgadores brasileiros precisamos recordar o modelo de recrutamento e socialização dessa elite profissional, bem como o papel institucional a ela atribuído no Poder Judiciário.

Os magistrados fazem parte das elites, sendo que, no Brasil, a incorporação de novos segmentos sociais a estas não implicou uma confirmação de valores e sistemas de orientação já consagrados, ocasionando, por outro lado, a heterogeneidade da origem de seus integrantes e a tendência à conformação de uma pluralidade de concepções de mundo.

Segundo Vianna et al. (1997, p. 8), essa heterogeneidade das elites brasileiras relaciona-se também à sua segmentação em dois eixos, a saber: Estado e mercado. Nas palavras dos autores essa segmentação “significaria um tipo de especialização em que ‘culturas familiares’, de corte público ou privado, favorecem a inscrição dos indivíduos delas provenientes em um ou outro eixo”.

Como exemplo, Vianna et al. (1997, p. 8) citam o caso da magistratura, onde “cerca de 50% dos juízes são originários de famílias com ocupação no setor público (47,5% dos quais com pai titular de um curso superior, percentual bastante superior ao verificado entre os juízes que provêm de famílias com ocupação no setor privado, em que apenas 18,9% é filho de pai com escolaridade superior)”.

Ainda, segundo Vianna et al. (1997, p. 9) os valores e sistemas de orientação das elites brasileiras estão relacionados à forma de modernização capitalista do país, marcada pela “iniciativa organizadora do Estado” e de “uma fração das elites formadas na tradição ibérica de precedência do estado sobre a sociedade civil”, que retardou o processo de emancipação político cultural da dimensão do privado. Essa emancipação coincidiu com a transição do autoritarismo para a democracia, mas sem abandonar completamente a cultura política herdeira do iberismo fundante do Estado nacional.

No caso das elites profissionais, a transformação dos valores e sistemas de orientação depende, entre outros fatores, do controle exercido pelas corporações sobre a seleção e o processo de socialização de novos membros.

Vianna et al. (1997, p.10), lembram que algumas elites profissionais, como a burocracia do Itamarati e a corporação militar, conseguiram manter suas identidades (valores e sistemas de orientação), seja através de rigoroso concurso de seleção, seja pelo intenso processo de socialização. Contudo, no caso da magistratura verificamos algumas particularidades. De elite político-administrativa que, no Império fornecia os dirigentes do Estado, a magistratura passa a corpo “técnico-perito no ajustamento da lei ao fato social, transformando-se de ‘construtor da ordem’ em garantidor, ao estilo weberiano, das condições de previsibilidade – a ‘certeza jurídica’ – necessárias à expansão da vida mercantil”.

Além disso, se antes os juízes brasileiros provinham essencialmente das elites proprietárias, hoje também têm origem social nas camadas médias e nos setores sociais “subalternos”, em virtude da democratização do acesso à qualificação universitária e do recrutamento por concurso público.

E, ao contrário do que acontece na burocracia do Itamarati e na corporação militar, a magistratura desconhece mecanismos formais de socialização que integrem o novo Juiz à cultura institucional, sendo característica dessa corporação uma maior permeabilidade às correntes de opinião expressas na sociedade.

Vianna et al. (1997) lembram que, durante o período ditatorial, os juízes foram mantidos em sua “função tradicional de arbitragem e resolução de conflitos individuais”, ao passo que, no período de transição à democracia e de crise global do “welfare state”, foram chamados a se pronunciar sobre disputas entre os setores da elite brasileira e sobre a relação que deveria prevalecer entre as dimensões do público e do privado.

Nos primeiros anos do período de transição democrática, o Judiciário esteve comprometido apenas com a manutenção da separação entre os Poderes Legislativo e

Executivo, bem como afastado das demandas por direitos sociais. Após a promulgação da Constituição de 1988 teve seu papel republicano redefinido, levando-o a dirimir conflitos institucionais entre o Legislativo e o Executivo; a atuar em demandas pela ampliação de direitos, relacionadas à defesa do cidadão e da iniciativa privada contra o forte intervencionismo estatal na economia.

A assunção desse novo papel pelo Judiciário é, como sustentam Vianna et al. (1997, p. 12), “menos o resultado desejado por esse Poder, e mais um efeito inesperado da transição para a democracia” e de uma “reestruturação das relações entre Estado e sociedade, em conseqüência de grandes transformações produzidas por mais um surto de modernização do capitalismo”.

Num contexto de expansão desordenada das normas dispositivas, muitas vezes, editadas por fatores conjunturais; de expansão das matérias submetidas a controle jurídico; de diluição dos limites entre público e privado; de aparição de inúmeras fontes materiais de direito, favorecendo o pluralismo jurídico; e de crescente esvaziamento do direito positivo; ocorre a chamada “crise do Poder Judiciário”. Este, ainda sob forte influência dos cânones do positivismo jurídico, do direito codificado e da separação dos Poderes, é colocado diante de um sem-número de novos problemas para cujo enfrentamento não estava preparado material, conceitual e doutrinariamente.

A necessidade de adaptação à nova realidade social brasileira leva a uma progressiva transformação da malha institucional do Judiciário e de sua cultura jurídica que, tradicionalmente positivista, tende a incorporar a dimensão da justiça na tutela de direitos e liberdades de sentido promocional prospectivo56 e, inclusive, de pequenos interesses antes desamparados.

Além disso, as normas jurídicas de sentido promocional prospectivo caracterizam-se por uma maior imprecisão e vagueza, o que demanda a desneutralização do Judiciário e uma postura mais criativa por parte do Juiz na interpretação da lei. Para Cappelletti,

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Segundo Ferraz (apud VIANNA et al., 1997, p. 26), a positivação do direito natural (neojusnaturalismo) e o constitucionalismo moderno, promoveram a edição da chamada “legislação simbólica, quer referida a direitos fundacionais, quer aos direitos sociais” , que exprimiria um “‘sentido promocional prospectivo’ que supõe, para além da liberdade individual enquanto liberdade negativa, uma liberdade positiva, cujo exercício não está remetido a um tempo passado, e sim a um tempo futuro, na medida em que, no contexto do Estado Social, ela não é ‘um princípio a ser defendido, mas a ser realizado’”, o que legitima a “desneutralização da função do Judiciário, o qual ‘perante eles [os direitos sociais] ou perante a sua violação, não cumpre apenas julgar no sentido de estabelecer o certo e o errado com base na lei (responsabilidade condicional do juiz politicamente neutralizado), mas também e sobretudo examinar se o exercício discricionário do poder de legislar conduz à concretização dos resultados objetivados (responsabilidade finalística do juiz que, de certa forma, o repolitiza)’”.

É manifesto o caráter acentuadamente criativo da atividade judiciária de interpretação e de atuação da legislação e dos direitos sociais. Deve reiterar-se, é certo, que a diferença em relação ao papel mais tradicional dos juízes é apenas de grau não de conteúdo: mais uma vez impõe-se repetir que, em alguma medida, toda interpretação é criativa, e que sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional. Mas, obviamente, nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaço para mais elevado grau de discricionariedade e, assim, de criatividade, pela simples razão de que quanto mais vaga a lei e mais imprecisos seus elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciais. (apud VIANNA et al., 1997, p. 27, grifo nosso)

Essa transformação repercute sobre o sistema de orientação dos magistrados brasileiros levando a uma tendência de inovação institucional no exercício da jurisdição, implicando um movimento de aproximação entre o sistema de “civil law” – tradicionalmente normativista – e os institutos e orientações da “common law”, fenômeno descrito por Cappelletti e Merryman como universal.

Em “Corpo e Alma da Magistratura Brasileira”, Vianna et al. (1997, p. 16), analisam informações sobre a faixa etária, região, gênero, origem social, dentre outras, coletadas através de questionários enviados a todos os juízes, ativos e inativos, cadastrados por Tribunais e associações de magistrados, com o objetivo de construir indicadores capazes de “mapear as diferentes atitudes do magistrado brasileiro em face do Direito, da organização do Poder Judiciário e das condições de acesso à justiça, bem como caracterizar as principais correntes de opinião às quais aderem”.

Embora Vianna et al. (1997) tenham feito descobertas interessantes sobre o perfil dos magistrados brasileiros57, interessa-nos suas conclusões a respeito dos sistemas de orientação que informam a atividade judicativa. Nesse sentido, os autores argumentam,

quer pelas razões da sua composição heterogênea, quer pela inexistência de mecanismos de socialização, quer, ainda, porque a sua práxis recente foi obrigada a se confrontar com um novo quadro de desafios, exigindo respostas inovadoras por parte de cada juiz singular, a corporação se apresenta recortada pluralisticamente, podendo-se notar que ela conhece diversos sistemas de orientação, salvo na questão da autonomia do Poder Judiciário e na da soberania do juiz, diante das quais há largo consenso. Deste modo, reconhece-se um sistema de orientação que tem na instituição do Poder Judiciário um ator coletivo que quer se envolver no processo de mudança social; um outro, centrado no juiz como um agente solitário que aproxima o direito da justiça – onde, aliás, se

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Por exemplo, a partir da análise de dados relacionados à faixa etária e gênero Vianna et al. (1997) verificaram uma tendência ao recrutamento de juízes mais jovens (concursados com idade média de 42 anos) e de uma parcela mais expressiva de mulheres, embora estas sejam minoria (em 1997 a participação na magistratura atingia 19,5%). Os dados sobre as origens familiares apontaram para um cenário de recrutamento plural (e.g. 54% dos juízes têm pai com escolaridade até o primeiro grau e aproximadamente 30% têm um perfil ocupacional de extração subalterna) e para uma tendência de recrutamento de juízes filhos de profissionais com formação universitária. Dados sobre estado de origem do magistrado e o local de sua atuação profissional demonstram uma expressiva mobilidade espacial o que favoreceria a adesão dos magistrados ao ideal de democratização do judiciário próprio do constitucionalismo moderno.

encontra o mainstream da corporação; e um, ainda, distante desses, compreendendo aqueles juízes que se mantêm fiéis ao cânon da civil law – com ênfase no tema da ‘certeza jurídica’. Finalmente, observa-se a presença embrionária e minoritária de uma corrente que acentua o uso alternativo do Direito e as formas extra-judiciais de composição do conflito. (VIANNA et al., 1997, p. 14, grifo nosso)

Deste modo, ganha força a tendência de desneutralização do judiciário, com aumento da margem de discricionariedade dos magistrados na prática judicativa. Essa nova configuração do Judiciário desneutralizado e influenciado por uma concepção de legalidade que questiona a rígida separação entre os Poderes, afasta a exclusividade do Legislativo na formulação de leis, levando à chamada “judicialização da política”.

O constitucionalismo democrático conduz a uma crescente expansão do âmbito de intervenção do Poder Judiciário sobre as decisões dos demais poderes, pondo em evidencia o novo papel daquele Poder na vida coletiva — o que já justificaria o uso da expressão ‘democracia jurisdicional' como designação política do Ocidente desenvolvido. A desneutralização do Judiciário, a emergência do seu ativismo e, sobretudo a ‘judicialização da política’ seriam processos afirmativos em escala universal, compreendendo tanto os sistemas de common law como os de civil law. (Vianna, et al., 1997, p. 31).

Este fenômeno é, portanto, universal, afetando tanto os sistemas de “common law” como os de “civil law”, respeitadas as especificidades de cada modelo e de suas relações com o sistema político.

Constatadas essas transformações no perfil institucional do Judiciário, na cultura jurídica e nos sistemas de orientação dos magistrados brasileiros, pretendemos estudar quais as suas consequências no processo de tomada de decisão.

Nesse sentido, Vianna et al. (1997) alertam para a importância da “incorporação de análises qualitativas que, tendo como objeto a sentença e a natureza do feito sob julgamento, venham a demonstrar ‘para quê’ e ‘a quem’ vem servindo todo o imenso aparelho do Judiciário” (VIANNA et al., 1997, p. 16).

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 92-97)