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A fase preliminar da pesquisa de campo

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 130-135)

Consideramos relevante, no que tange à exposição do percurso metodológico que envolve a análise do objeto de estudo, definir as etapas preliminares da pesquisa de campo.

O interesse pela temática das drogas surgiu durante o bacharelado em Direito e se intensificou durante os debates acalorados realizados na Especialização em Ciências Penais, ambos cursados na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Ao ingressar no Mestrado em Ciências Sociais, a intenção inicial era estudar como ocorre o enfrentamento das organizações criminosas para o tráfico de entorpecentes pelo Poder Judiciário. Porém, já sob orientação do Professor Doutor Paulo Cesar Pontes Fraga, voltamos nossa atenção para a questão da mulher no tráfico de drogas e da resposta do Sistema de Justiça Criminal a este tipo de infração da lei penal. Sendo assim, nos dedicamos ao estudo da literatura sociológica sobre a criminalidade feminina e buscamos uma abordagem teórico- metodológica que viabilizasse a realização do estudo pretendido. Foi assim que, através de nosso orientador, tivemos o primeiro contato com a “Theory of Sentencing” e optamos por uma metodologia de pesquisa qualitativa orientada pelos pressupostos desse referencial teórico.

Após a definição inicial do tema do estudo e da metodologia de pesquisa, qual seja, a resposta do Sistema de Justiça Criminal às mulheres envolvidas com o tráfico sob a perspectiva da “sentencing”, empreendemos, concomitantemente, uma profunda pesquisa bibliográfica da literatura pertinente e um esforço para a definição da pesquisa de campo, da forma de entrada da pesquisadora no campo, do suporte empírico da pesquisa e da forma de coleta dos dados através da consulta aos “autos” processuais, assim como para a definição das categorias de análise adequadas aos casos particulares a serem estudados.

As questões de pesquisa não surgiram instantaneamente, ao contrário, foram sendo processadas, construídas e alimentadas no decorrer dos estudos desenvolvidos e dos primeiros contatos realizados com os operadores do direito em atividade no Fórum da Comarca de Juiz de Fora/MG. A escolha de um tema que exige o ingresso no âmbito do Sistema Judiciário envolve um problema inicial que se intensifica devido ao curto período de tempo para realização da pesquisa (apenas 02 anos), qual seja, a assunção do risco de iniciar um trabalho

sabendo da possibilidade de se sofrer grandes restrições ou, até mesmo, a recusa à autorização para obter acesso aos processos, podendo significar a morte intelectual da pesquisa pela perda do seu objeto principal – os “autos” processuais. Contudo, o interesse de desvendar o universo jurídico sob uma perspectiva puramente sociológica, diversa da formação acadêmica original da pesquisadora e, por isso mesmo, inspiradora e instigante, foi determinante na assunção desse risco.

Após o recorte inicial, traçamos o desenho da metodologia por uma leitura ainda incipiente sobre a “sentencing” que sofreu críticas durante o exame de qualificação da dissertação. O dimensionamento da metodologia anterior e as categorias definidas para análise do objeto se revelaram inoportunos para o tempo da pesquisa e a pretensão inicial de estudar o perfil sócio-biográfico e profissional dos magistrados através da realização de entrevistas semiestruturadas e da aplicação de questionários foi abandonada. Assim, aprofundamos o estudo sobre as abordagens qualitativas específicas para o estudo da decisão judicial através da “sentencing”, o que resultou no estreitamento das categorias de análise e na restrição da análise dos “autos” processuais às sentenças terminativas de mérito72.

Em seguida, nos dedicamos a descobrir mais especificamente o que buscar no campo, considerando as suas limitações. Uma das principais preocupações na realização da pesquisa foi a questão do acesso ao Sistema de Justiça Criminal da Comarca de Juiz de Fora/MG. Por onde começar? Qual o universo a ser pesquisado? Qual o caminho para se conseguir o acesso aos documentos necessários?

Esgotada a literatura temática, reconhecemos a necessidade inicial de compreender a estrutura da organização judiciária, assim como a lógica e o caminho do fluxo do sistema criminal na Comarca de Juiz de Fora. Sendo assim, buscamos informações e orientações junto aos operadores do direito, a fim de delimitar as especificidades e singularidades locais.

Nesse momento, durante as primeiras conversas, ainda de caráter informal, percebemos que um diário de campo seria um relevante recurso na dinâmica metodológica, pois o mesmo possibilitaria à pesquisadora uma reflexão distanciada sobre o campo, seus diferentes atores e sobre as interações realizadas.

Isto porque, se de um lado a formação profissional jurídico-acadêmica da pesquisadora proporcionou-lhe identificação com o campo, facilitou-lhe a inserção e o conhecimento inicial das “regras do jogo”, de outro, obrigou-lhe a redobrar a capacidade de estranhamento sobre a cultura jurídica, pois como leciona Velho (2008, p. 127),

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Ou seja, a decisão definitiva e terminativa do processo, que acolhe ou rejeita a imputação formulada pela acusação.

Assim, em princípio dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e situações sociais do nosso cotidiano, dando nome, lugar e posição aos indivíduos. Isso, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que estão por trás dessas interações, dando continuidade ao sistema.

Nesse esforço de relativização e estranhamento, que não significa neutralidade, “estranhar o familiar” foi um exercício fundamental, que envolveu cuidado para promover o distanciamento entre a advogada e a pesquisadora, em busca de alteridade para descolar o seu olhar das questões que se mostravam recorrentes, tanto nas práticas observadas como no trabalho forense cotidiano. Quando estudamos o que nos é próximo, “estranhar o familiar” é buscar transcender as limitações de nossa origem e “chegar a ver o familiar não necessariamente como exótico mas como uma realidade bem mais complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classes através dos quais fomos socializados" (VELHO, 2008, p.133).

Em que pese a constante preocupação com o necessário distanciamento entre o “habitus” da advogada e a assunção da postura de pesquisadora, o conhecimento prévio da dinâmica do sistema jurídico contribuiu para a formulação dos questionamentos essenciais à pesquisa, para a superação da resistência inicial por parte dos operadores do direito e para a identificação de atalhos institucionais que possibilitaram a obtenção das autorizações necessárias para o ingresso no campo e acesso aos “autos” processuais.

Assim, inicialmente, foram realizadas entrevistas com os servidores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais/TJMG lotados no Fórum de Juiz de Fora (Secretários da Diretoria do Foro, servidores e Escrivães das Varas Criminais e de Execuções, bem como Assessores dos Magistrados), a fim de verificar a disponibilidade de “autos” processuais nas dependências das 04 Varas Criminais e da Vara de Execuções, bem como a viabilidade da pesquisa pretendida.

Desse primeiro contato resultou a informação de que em cada uma das 04 Varas Criminais e na Vara de Execuções tramitam simultaneamente cerca de 3.000 a 4.000 processos; sendo que, devido ao grande volume de processos movimentados na Comarca e às limitações da infraestrutura da sede do Foro, muitos dos “autos” findos, ou seja, processos arquivados ou com sentença terminativa de mérito proferida e transitada em julgado73, são remetidos para um arquivo de feitos gerido por empresa terceirizada pelo TJMG e situado na região metropolitana de Belo Horizonte.

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Ocorre o trânsito em julgado da sentença judicial quando transcorre o prazo processual para interposição de recurso sem manifestação das partes ou quando todos os recursos cabíveis estão esgotados.

Diante disso, percebemos que não seria possível obter autorização para acesso a todos os “autos” criminais processados no período de tempo recortado para a pesquisa, ou seja, aqueles iniciados e concluídos a partir de janeiro de 2007, já na vigência da Nova Lei de Drogas (Lei nº. 11.343/2006), sendo certo que estariam disponíveis na Comarca apenas os processos em andamento e aqueles que uma vez sentenciados, aguardam decisão de recursos interpostos ao Tribunal.

Buscamos, então, alternativas para a localização de sentenças proferidas no período citado, motivo pelo qual questionamos os servidores do judiciário sobre a disponibilidade para consulta e pesquisa de Livros de Registro de Sentenças. Estes são livros de confecção obrigatória que devem ser mantidos pelas Secretarias dos Juízos, funcionam como instrumentos que registram as decisões proferidas pelos magistrados, servindo, também, como meio de consulta e recuperação de informações relativas aos processos concluídos e/ou arquivados. Obtivemos, então, a informação de que, em geral, tais livros são guardados durante determinado tempo e a critério do Escrivão Chefe nos Cartórios das Varas Criminais e de que cópias das sentenças criminais condenatórias são enviadas ao Juízo da Execução para instrução dos processos de acompanhamento das etapas do cumprimento da pena.

Também constatamos que as Varas Criminais e a de Execuções Criminais de Juiz de Fora contam com um espaço físico limitado e com um número reduzido de servidores, com alternâncias de carga horária, licenças, férias, sendo que os mesmos concentravam seu expediente de trabalho no período da tarde, de modo a atenderem a grande demanda dos advogados e partes por informações sobre a movimentação dos processos em curso. Tal circunstância evidenciou a impossibilidade de realização da pesquisa em tempo integral ou no período da tarde, motivo pelo qual optamos por empreender a pesquisa de campo prioritariamente pela manhã, horário mais tranquilo e oportuno. Visamos evitar, assim, transtornos na rotina de trabalho dos servidores do judiciário e constrangimentos em razão da distribuição do espaço e da concentração e circulação de pessoas nos Cartórios.

Ainda nesses primeiros contatos, a pesquisadora buscou esclarecimentos junto aos servidores do judiciário visando desvendar os caminhos institucionais necessários à obtenção de autorizações para o acesso aos ambientes dos Cartórios das Varas Criminais e da Vara de Execuções e aos documentos necessários à pesquisa. Nesse momento, sentimos a insegurança e, até mesmo, certa desconfiança, da parte desses servidores em fornecer informações.

Muitos dos serventuários e alguns Escrivães que contatamos buscaram ressaltar as dificuldades e entraves de se realizar a pesquisa, seja pelo grande volume de processos nos Cartórios, pela remessa destes e dos Livros de Registro de Sentença mais antigos ao arquivo

de feitos, pelas limitações de pessoal e da infraestrutura forense, pela inexistência de mecanismos que permitissem a localização dos processos e sentenças que julgaram uma modalidade de crime específica (tráfico) e com autoria determinada pelo objeto da pesquisa (acusados do gênero feminino), ou, ainda, pela afirmação da dificuldade de se obter autorização para pesquisa devido ao chamado “segredo de justiça” e, mesmo, pelo desencontro das informações sobre como e a quem deveriam ser formulados os pedidos de autorização (fomos informados que tais requerimentos deveriam ser encaminhados ora ao TJMG, ora ao Diretor do Foro de Juiz de Fora, ora diretamente aos Juízes Titulares das Varas Criminais e da Vara de Execuções).

Em verdade, percebemos esforços por parte dos agentes do judiciário visando dissuadir a pesquisadora de sua empreitada. Contudo, já esperávamos essa resistência inicial, justamente por conhecermos a dinâmica de funcionamento dos trabalhos no ambiente forense e da interação dos servidores com aqueles que são ou se colocam como estranhos ao meio. Motivo pelo qual persistimos, recorrendo a um ex-professor do bacharelado em Direito e da Especialização em Ciências Penais concluídos na Faculdade de Direito da UFJF, que também atua como Juiz Titular de uma das Varas Criminais de Juiz de Fora, buscando maiores esclarecimentos sobre os caminhos institucionais para obtenção de autorizações para o acesso às fontes indispensáveis à pesquisa – as sentenças.

Assim, tivemos a confirmação de que os requerimentos de autorização deveriam ser encaminhados diretamente aos Juízes Titulares das Varas Criminais e da Vara de Execuções, os quais têm discricionariedade para analisar tais pedidos e deferi-los, ou não, conforme a conveniência e rotinas específicas que imprimem à organização dos trabalhos nos Cartórios sob sua responsabilidade.

Nesse momento, obtivemos também uma autorização informal para a pesquisa na Vara Criminal de titularidade desse relevante agente do sistema, condicionada ao encaminhamento de um requerimento por escrito identificando a pesquisadora, o Programa de Pós-Graduação e a Instituição de Ensino à qual pertence; explicitando a natureza, os objetivos e fundamentos da pesquisa pretendida; bem como assumindo o compromisso de observar os princípios éticos que regem as pesquisas acadêmicas e as rotinas do Tribunal, resguardando o anonimato das partes acusadas nos processos pesquisados.

Foram, então, enviados ofícios aos Juízes Titulares das Varas Criminais e da Vara de Execuções, em conformidade com as exigências mencionadas solicitando autorização formal para acesso, respectivamente, aos Livros de Registro de sentenças e aos processos de execução das penas e para a coleta das informações necessárias.

Os Juízos da Vara de Execuções e das 1ª e 4ª Varas Criminais autorizaram a pesquisa de acordo com a conveniência dos trabalhos nos respectivos Cartórios e normas do TJMG. De outro lado, o Juízo da 2ª Vara Criminal não concedeu a autorização para a pesquisa alegando dificuldades operacionais, como limitação de espaço físico e de pessoal para atendimento à pesquisadora e insuficiência de Livros de Registro de Sentenças disponíveis no respectivo Cartório. Sendo que não conseguimos uma resposta do Juízo da 3ª Vara Criminal.

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 130-135)