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Os diferentes movimentos de política criminal antidrogas

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 63-67)

Antes de tratarmos da disciplina legal conferida pela Lei nº. 11.343/2006 ao uso e ao tráfico, convém referenciar os diferentes movimentos de política criminal sobre drogas, já que estes ditam o abrandamento ou o rigor da resposta do Sistema de Justiça Criminal ao problema.

Gomes (2006, p. 4) destaca quatro tendências mundiais referentes às políticas criminais sobre drogas ilícitas, quais sejam:

1. o “modelo norte-americano”: preconiza a abstinência e a tolerância zero às drogas, encaradas como um problema policial e militar; a solução norte-americana é o encarceramento massivo dos envolvidos com drogas, traço característico de uma sociedade punitiva29 marcada pela ideologia da “Tolerância Zero” e da “Lei e Ordem” (GARLAND, 1999; 2008). O slogan "diga não às drogas" integra um programa populista, de eficácia questionável, mas bastante revelador sobre a política estadunidense;

2. o “modelo liberal radical” (liberalização total): inspirado nos clássicos pensamentos de Stuart Mill e divulgado pela revista inglesa “The Economist”, enfatiza a necessidade de liberalização total das drogas, sobretudo frente ao usuário; destaca as consequências das políticas antidrogas que geram a discriminação entre ricos e pobres, com o encarceramento unicamente destes últimos;

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Sociedades onde “há divisões sociais e raciais profundas, onde as taxas de criminalidade e os níveis de insegurança são elevados, onde as soluções sociais foram politicamente desacreditadas, onde há poucas perspectivas de reintegração dos antigos delinqüentes pelo trabalho ou pela família e onde, (...) um setor comercial em expansão encoraja e favorece o aumento do encarceramento, essa cultura punitiva está provocando um encarceramento em massa em uma escala inédita em países democráticos, e raramente encontrada na maior parte dos países totalitários” (GARLAND, 1999, p. 74).

3. o “modelo da ‘redução de danos’” (sistema europeu): em oposição à política norte-americana, grande parte dos países europeus adotam estratégia distinta do estímulo à abstinência ou da tolerância zero. Esse modelo preconiza a redução dos danos causados aos usuários e a terceiros, através da entrega de seringas, demarcação de locais adequados para consumo, controle do consumo, assistência médica, etc. Entende a questão das drogas como problema de saúde pública e prega a descriminalização gradual, bem como uma política regulamentadora (de controle) e educacional; e

4. o “modelo de Justiça terapêutica”: que preconiza a disseminação do tratamento como reação adequada à conduta do usuário ou usuário dependente. A crítica a esse modelo esta na confusão entre a figura do usuário e do dependente, uma vez que o uso de drogas não implica, necessariamente, em dependência química, sendo esta uma realidade de definição clínica.

Essas tendências de política criminal estão relacionadas a três importantes movimentos em evidência no Direito Penal contemporâneo, a saber:

1. Movimento do Direito Penal mínimo ou Garantismo: concepção baseada em princípios constitucionais assecuratórios dos direitos fundamentais, inspiradores de uma política de justiça social e de igualdade com repercussões no controle da criminalidade e dos processos de criminalização. Encabeçado por Luigi Ferrajoli (2002) defende a subsidiariedade do Direito Penal, que seria empregado apenas como “ultima ratio”, ou seja, seria chamado a atuar apenas quando do esgotamento e ineficiência de outros ramos do Direito;

2. Movimento do abolicionismo penal: vai além do que defende o Garantismo, pois prega a supressão total do Direito Penal, o qual estaria fundamentado em bases falsas, devendo ser substituído por outras instâncias formais e informais de controle social, ou, ainda, por intervenções comunitárias ou instituições alternativas. Seus defensores argumentam no sentido da ineficiência do Direito Penal na prevenção criminal, alcançando apenas um número limitado de infrações; provendo discriminação e desigualdade social, perpetuadas através da seleção criminalizante e da ineficácia do sistema prisional para a ressocialização; e

3. Movimento de Lei e Ordem: oposto aos movimentos anteriores, pugna pela aplicação do Direito Penal em grau máximo, ou seja, este “deve preocupar-se com

todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos” (GRECO, 2006, p.20), cumprindo um papel educador e repressor.

As políticas sobre drogas voltadas para a reparação de danos, implantação da Justiça Terapêutica, descriminalização ou liberalização progressiva ou total de substâncias entorpecentes, são amparadas tanto por argumentos do Garantismo, que defende a existência de um Direito Penal mínimo, quanto por argumentos do Abolicionismo, que defende a supressão total da repressão penal.

Já os adeptos das políticas de “Lei e Ordem” e de “Tolerância Zero” apoiam-se nos argumentos a favor do Direito Penal máximo, defendendo que todos os comportamentos desviantes, independentemente da lesividade, merecem o juízo de reprovação penal, o que leva ao aprisionamento em massa de envolvidos com drogas, independente de serem usuários ou traficantes.

Vale destacar que o ordenamento penal brasileiro, embora tenha sofrido influência do modelo penal e da política antidrogas estadunidense, não deixou de discutir e contemplar perspectivas adotadas por diversos países europeus ao longo dos últimos anos. Situação evidenciada pela coexistência simultânea na Lei nº. 11.343/2006 de normas através das quais o Legislador brasileiro endureceu a repressão do tráfico pelo aumento da pena privativa de liberdade cominada e vedação de benefícios durante a execução penal, bem como de normas que preconizam a reparação dos danos, com emprego de medidas de tratamento e educacionais que livram os usuários do aprisionamento.

Ainda assim, conforme leciona Carvalho (1997), a política criminal de drogas brasileira manteve como característica central a adoção de uma orientação autoritária e repressivo-punitiva alinhada ao modelo transnacional de controle dos entorpecentes, com a inserção de dois discursos distintos, quais sejam: um discurso predominante político-jurídico ligado ao estereótipo da criminalidade (traficante/delinquente) e um discurso subsidiário médico-sanitário ligado ao estereótipo da dependência (usuário/doente). Assim, insere-se no âmbito de uma ideologia da Defesa Social aliada a uma ideologia da diferenciação, no interior da qual surge gradativamente à categoria do “inimigo”, visualizada na droga e na figura do traficante (criminoso) que são “demonizados”, devendo ser combatidos por representarem grande perigo à segurança pública.

E o combate a essa criminalidade ocorre, por exemplo, através da minimização das garantias individuais constitucionais, como o aumento dos níveis das penas ou a imposição de

restrições à liberdade durante o curso do processo e durante o cumprimento das penas, ou através da utilização de normas penais cuja aplicação depende da interpretação de termos genéricos e imprecisos pelos operadores do sistema penal ou da complementação através de normas que regulamentam, por exemplo, quais são as substâncias consideradas entorpecentes.

Segundo Carvalho (1997, p. 247) “o tratamento direcionado ao traficante, e tão- somente a este, hierarquiza o comércio ilícito em nível superior na categorização dos delitos, visto que, desde uma visão material-constitucional, a eleição dos bens e valores relativos à matéria criminal é procedente do estatuto superior”.

Essa hierarquização pode ser observada no texto constitucional que, por exemplo, autoriza a extradição de estrangeiro naturalizado com comprovado envolvimento com o tráfico de drogas (art. 5º, LI, CFB); a caracterização do crime de tráfico como inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, com sua equiparação aos crimes hediondos (art. 5º, XLIII, CFB e Lei nº. 8.072/1990) e a expropriação de glebas e assentamento de colonos em terras onde fossem localizadas culturas ilegais de plantas entorpecentes (art. 243 da CFB, regulamentado pela Lei nº. 8.257/91).

Carvalho (1997) também chama a atenção para o fato de que as legislações criminais posteriores à Constituição de 1988 priorizam a represália ao tráfico de entorpecentes, sob a grande influência dos meios de comunicação, importantes agentes dos movimentos da Lei e Ordem que influenciaram o Legislativo e contribuíram para a edição da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº. 8.072/1990) e para a Lei do Crime Organizado (Lei nº. 9.034/95).

Conforme lição de Garland (1999, p. 60), uma política criminal punitiva encontra terreno fértil em sociedades “em que a taxa de criminalidade é muito alta, as divisões sociais tendem a agravar-se, a insegurança pessoal e econômica é crescente e as soluções sociais existentes caíram em descrédito”, assim como a sociedade brasileira. Sendo que a preocupação da política criminal muitas vezes não é puramente punitiva, satisfeita através da imposição da sanção penal, nem puramente orientada para a proteção pública, satisfeita através de medidas de detenção preventiva. A preocupação atual relaciona-se à produção de sanções que combinem a punição do criminoso com a proteção e a expressão dos sentimentos do público, daí porque os modos de expressão do punitivismo são também modos de segregação penal e de incapacitação.

Nesse contexto, Carvalho (2008) assevera que o objeto de intervenção do direito e do processo penal passa a ser um grupo determinado de infratores – os “narcotraficantes” inseridos na categoria “criminalidade organizada”, aos quais é atribuído o estigma da periculosidade relacionado com a habitualidade e a profissionalização no cometimento de

crimes, um verdadeiro direito penal do autor aliado a um desejo generalizado de punição que não se restringe à realidade dos operadores do Sistema Penal, mas invade o sendo comum do “homem da rua” e o “senso comum teórico dos juristas” tradicionais na órbita do ensino jurídico.

Carvalho (2008, p. 174) aponta, ainda, que “os estereótipos criminais não apenas modelam o agir dos agentes da persecução, sobretudo das polícias, como direcionam o raciocínio judicial na eleição das inúmeras variáveis entre as hipóteses condenatórias ou absolutórias e à fixação da quantidade, qualidade e espécie de sanção”. E uma característica comum deste estado de inimizade, nas políticas de repressão à criminalidade de massas ou organizada, é a vulnerabilidade do sujeito à qualificação ou adesão do estigma da periculosidade.

Sendo assim, destacamos que a forte influência do modelo repressor americano na política antidrogas brasileira se coaduna com o que Wacquant (2003) chamou de uma política estatal de criminalização das consequências da pobreza. Nesse sentido,

Os projetos de descriminalização do usuário deixam ainda mais expostos à demonização e criminalização as principais vítimas dos efeitos perversos da exclusão globalizada: a juventude pobre de nossas cidades recrutada pelo mercado ilegal e pela falta de oportunidades imposta pelo atual modelo econômico a que estamos submetidos (BATISTA, 2001, p. 112)

Assim, a clientela do sistema penal é recrutada no exército de jovens negros e/ou pobres (ou quase negros de tão pobres), lançados à própria sorte num modelo econômico de exclusão e desamparo. As prisões do mundo estão cheias de jovens “mulas”, “aviões”, “olheiros”, “vapores”, “gerentes” do tráfico recrutados nas classes sociais mais baixas e menos favorecidas e, por essa, razão mais sujeitos à criminalização.

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 63-67)