• Nenhum resultado encontrado

Materialidade do crime de tráfico

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 160-164)

6.2 Critérios legais e a interpretação sobre a gravidade do fato

6.2.1 Gravidade dos fatos e a tipificação dos crimes cometidos pelas acusadas

6.2.1.1 Materialidade do crime de tráfico

Conforme disposto no artigo 50 da Lei nº. 11.343/2006, ocorrendo prisão em flagrante, a autoridade de polícia judiciária fará, imediatamente, comunicação ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado, do qual será dada vista ao órgão do Ministério Público, em vinte e quatro horas. Sendo que para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea. No Laudo Toxicológico definitivo é afirmada a natureza e quantidade da droga apreendida, bem como é descrita a forma de acondicionamento.

Essa categoria de análise merece destaque, pois o Legislador brasileiro deixou ao arbítrio dos operadores do Direito a distinção entre as figuras do usuário e do traficante de drogas, uma vez que no artigo 28, §2º da Lei nº. 11.343/2006, conferiu ao Juiz a tarefa de determinar se a droga destina-se a consumo pessoal, observando os seguintes critérios: 1. a natureza e a quantidade da substância apreendida, 2. o local e as condições em que se desenvolveu a ação, 3. as circunstâncias sociais e pessoais, bem como 4. a conduta e os antecedentes do agente.

Já o artigo 42 da mesma lei dispõe que o juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no artigo 59 do Código Penal (referente às circunstâncias judiciais para fixação da pena-base), a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente.

Na literatura estudada encontramos inúmeras discussões a respeito das consequências da grande margem de discricionariedade conferida aos agentes penais na subsunção do caso concreto à normativa do artigo 28 ou do artigo 33 da Lei nº. 11.343/200681. Vale destacar que os critérios a serem considerados para a diferenciação entre as condutas do usuário e do traficante são de ordens distintas, pois, ora se referem à materialidade e circunstâncias do crime e ora às características dos acusados. Ademais, não podem ser considerados objetivos, uma vez que dependem da interpretação dos magistrados sobre a descrição da conduta típica elaborada pelos agentes do fluxo do Sistema de Justiça Criminal e inscrita nos “autos”.

Tais descrições do fato são socialmente construídas a partir das interações entre esses agentes que são orientados pela intuição e experiência profissional (SANTOUCY et al., 2010), por valores e representações sociais, pelos sistemas de orientação (VIANNA et al., 1997) e “habitus” (BOURDIEU, 2006) que informam a cultura jurídica e filosofia penal a que aderem.

Lembramos, ainda, que o tipo penal a ser aplicado no julgamento é o resultado de negociações discursivas sobre a versão do fato, desde a formulada na prisão das acusadas, passando pela inscrita na denúncia, até aquela que consta dos “autos” na fase de instrução e processamento judicial, com base na qual o magistrado decidirá pela absolvição ou condenação na sentença. Desta forma, em lugar da imparcialidade e objetividade, prevalece a

81

Diante disso, surgem discussões sobre: 1. a redução do processamento legal de casos de uso de drogas, seja pelo descaso dos agentes policiais na persecução dessa conduta ilícita, seja pela negociação do encaminhamento, ou não, dos indivíduos flagrados para a delegacia, no chamado “desenrolo” (GRILLO et al., 2011); 2. a inflação do poder policial e da corrupção (ZALUAR, 1999); 3. a conversão do poder punitivo delegado pelo Estado ao seu agente em uma “mercadoria política” (MISSE, 1999); e 4. o surgimento de práticas de “arbitragem policial” e “armação do processo” (KANT DE LIMA, 1995; 2007) durante a “criminação-incriminação” (MISSE, 1999), ou seja, elaboração da descrição da conduta típica nos “autos processuais” para fins de enquadramento de um indivíduo nas categorias de usuário ou traficante.

subjetividade e a discricionariedade dos magistrados aliadas ao manejo de categorias de conhecimento/significação provenientes de ordens simbólicas que informam práticas humanas materiais (RIBEIRO, 1999).

Como se vê, a natureza e quantidade da droga apreendida, bem como a forma de acondicionamento além de determinarem a materialidade, são elementos de grande importância na definição da qualificação/tipificação da conduta da acusada, bem como na definição da pena para os crimes da Lei de Drogas. A seguir citamos uma passagem que exemplifica como essa categoria é analisada pelos magistrados na fixação da sanção:

A quantidade e natureza das drogas apreendidas, duas delas de alto poder viciante (cocaína e crack), também permitem que a pena seja imposta acima do mínimo previsto em lei, pois se tratavam de 113,20g (cento de trinta e três gramas e vinte centigramas) de cocaína, em pó e compactada (crack), e 67,20g (sessenta e sete gramas e vinte centigramas) de maconha. (SENTENÇA, 29/06/2010, grifo nosso)

Nas 39 sentenças analisadas foi constatada a materialidade do crime de tráfico através da apreensão de maconha, crack, cocaína e haxixe em quantidades variadas, conforme tabela a seguir:

Tabela 13 Volume de droga apreendida

Volume de droga apreendida (gramas) Quant. %

0 a 0,50 g. 20 51 0,50 a 100,00 g. 5 13 100,00 a 500,00 g. 4 10 500,00 a 1.000,00 g 2 5 1.000,00 a 5.000,00 g. 2 5 5.000,00 a 10.000,00 g 0 0 10.000,00 a 20.000,00 g 2 5 Mais de 20.000,00 g 2 5 Não Informado 2 5 TOTAL 39 100

Fonte: sentenças coletadas durante a pesquisa nas 1ª e 4ª Varas Criminais e na Vara de Execuções Criminais da Comarca de Juiz de Fora.

Como se vê na maioria dos casos (64%) a quantidade de droga apreendida não ultrapassa 100,00 g. Anteriormente, quando mencionamos as funções desempenhadas pelas mulheres no tráfico, registramos que esse pequeno volume de entorpecentes foi apreendido com as mulheres condenadas pela prática das condutas de “vapor” ou “mula”.

Quando a quantidade de droga apreendida é considerada “elevada” ou “substancial”, os magistrados apontam esse fato como um indício de que a acusada se dedica

ao tráfico com habitualidade, integra organização criminosa e/ou dispõe de condições financeiras para garantir uma grande movimentação na traficância, nesse caso a pena de reclusão e de multa é exasperada com o objetivo de imprimir uma reprovação mais severa. Ocorre que entre as sentenças estudadas observamos que a definição da quantidade de droga apreendida como “elevada” ou “substancial” depende exclusivamente da interpretação do magistrado.

Devemos esclarecer que a quantidade de droga por si só não pode ser indicada como o critério determinante de uma pena de reclusão em patamar mais ou menos elevado. O que de fato acontece nas sentenças é a valoração em conjunto desta e de outras informações constantes no processo para o cálculo e aplicação das penas. Sendo assim, observamos, por exemplo, que os magistrados atribuíram às acusadas, primárias e de bons antecedentes, que não integram organização criminosa, condenadas exclusivamente pelo tráfico de entorpecentes (art. 33) em quantidades inferiores a 100,00g., penas de reclusão bem abaixo do mínimo legal de 05 anos. Isso ocorre em razão da aplicação do disposto no artigo 33, §4ª da Lei de Drogas que autoriza a diminuição das penas de um sexto a dois terços. Se a redução máxima prevalecer, é atribuída à ré uma pena definitiva de 01 ano e 08 meses de reclusão ou em patamar próximo, o que foi observado em apenas 06 dos casos estudados.

A quantidade da droga apreendida também foi levada em consideração pelos magistrados para a fixação da pena de multa, sendo que o valor do dia-multa ultrapassou o mínimo legal (1/30 do salário mínimo vigente) quando verificada a apreensão de drogas de diferentes espécies e em grande quantidade, sendo esta circunstância considerada como indício de maior capacidade econômica das acusadas para o tráfico, como se vê das passagens a seguir:

Condeno a acusada no pagamento da pena de multa, prevista no art. 33 caput da Lei nº 11.343/2006, a qual estipulo em 800 (oitocentos) dias-multa, fixação esta acima do mínimo previsto em lei, em razão das circunstâncias judiciais já analisadas, a qual concretizo ante a ausência de outras causas que a modifiquem. Fixo o valor do dia-multa em 2/20 (dois vinte avos) do salário mínimo vigente no país ao tempo dos fatos, na forma do disposto no art. 43 da Lei n° 11.343/2006, já que a situação econômica da acusada não pode ser considerada ruim, eis que alegou que tinha idoneidade financeira para constituir defensor para patrocinar seus interesses e também porque pôde despender dinheiro com a compra de significativa quantidade de dois tipos de estupefacientes para revender. (SENTENÇA, 29/06/2010, grifo nosso).

Condeno a ré também no pagamento da pena de multa, prevista no art. 33, caput, da Lei n° 11.343/2006, a qual arbitro em 550 (quinhentos e cinqüenta) dias-multa, fixação esta acima ao mínimo legal, porque as circunstâncias judiciais acima analisadas não lhe são totalmente favoráveis e ainda em razão da gravidade do crime que foi por ela cometido. Diminuo este valor de ½, em virtude do benefício previsto

no art. 33 §4° da Lei n° 11.343/06, perfazendo a pena o total de 275 (duzentos e setenta e cinco) dias-multa. Aumento o quantum ora imposto de 1/2, em razão da causa especial de aumento definida pelo art. 40 item VI da lei antidrogas, perfazendo a pena o total de 550 (quinhentos e cinqüenta) dias-multa, a qual concretizo ante a ausência de outras causas que a modifiquem. Fixo o valor do dia-multa em 2/15 (dois quinze avos) do salário mínimo vigente no país ao tempo dos fatos, na forma do disposto no art. 43 da Lei n° 11.343/2006, já que a situação econômica da acusada não pode ser considerada ruim, eis que teve idoneidade financeira para constituir defensor neste feito e não alegou ser pessoa de poucos recursos financeiros, sem contar que teve capacidade econômica para adquirir uma razoável quantidade de cocaína para revenda. Os valores ora mencionados serão atualizados monetariamente por ocasião da execução e devidos contados dez dias a partir do trânsito em julgado desta decisão, tudo conforme disposto nos arts. 49 e seus parágrafos, 50 e 60, todos do Código Penal. (SENTENÇA, 13/08/2010, grifo nosso).

Nas sentenças podemos perceber maior reprovação da conduta perpetrada quando a droga apreendida é a cocaína ou o seu derivado – crack, sendo registrada pelos magistrados a alta nocividade dessas drogas para seus usuários e para a saúde pública, independente da quantidade apreendida. Nesse caso percebemos que nas decisões os magistrados reproduzem o senso comum a respeito da maior nocividade da cocaína e do crack, cujas consequências prejudiciais à saúde dos usuários e à segurança pública são frequentemente discutidas em trabalhos acadêmicos das ciências médicas e afirmadas pelas agências de controle social formal nos meios de comunicação. E ao procederem dessa forma os juízes realizam uma verdadeira hierarquização da droga para fins de aplicação da sanção penal, uma vez que acusadas apreendidas com cocaína ou crack são apenadas com maior severidade se comparadas às acusadas apreendidas apenas com maconha. Tal fato demonstra a influência de elementos valorativos considerados em grau de importância pela cultura judiciária penal (VANHAMME e BEYENS, 2007) no contexto social de repressão ao consumo e ao tráfico de entorpecentes, determinando a aplicação de penas mais pesadas em razão da interpretação sobre a nocividade da substância entorpecente apreendida.

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 160-164)