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A lei nº 11.343/2006 e as dificuldades na diferenciação entre usuários e traficantes.

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 67-74)

A Lei nº. 11.343/2006 instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), prescrevendo medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes; estabelecendo normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito; bem como definindo os respectivos crimes.

A Nova Lei de Drogas, como ficou conhecida, foi e ainda é alvo de críticas e elogios, seja pela definição de tipos penais mais severos para o crime de tráfico; seja pela inovação no tratamento jurídico do porte de entorpecentes para consumo próprio, isentando o usuário da

pena privativa de liberdade; seja por lacunas legislativas, como a ausência de critérios objetivos para a diferenciação entre a figura do usuário e do traficante.

Ao contrário do que ocorria na Lei nº. 6.368/1976, a Nova Lei de Drogas inaugura a previsão dos crimes e respectivas penas com a descrição das condutas relativas ao porte de entorpecentes para consumo próprio no artigo 28; tipificando as ações correspondentes à traficância de entorpecentes ou drogas afins, bem como as condutas equiparadas e assemelhadas nos artigos 33 a 39.

O artigo 28 da Lei nº. 11.343/2006 inova através da previsão de medidas profiláticas e educativas para aqueles que venham a adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo “drogas ilícitas para consumo pessoal”, ou venham a semear, cultivar ou colher plantas utilizadas como matéria prima para “produção de pequena quantidade de substâncias entorpecentes” também para uso próprio.

Esse dispositivo gerou controvérsias ao prever como penas a “advertência sobre os efeitos das drogas”; a “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. E caso o usuário flagrado com drogas descumpra, injustificadamente, uma dessas penas, o Juiz poderá submetê-lo, sucessivamente, à “admoestação verbal” ou “multa”, bem como “determinar ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado” (art. 28, §§ 6º e 7º)

O debate jurídico sobre o artigo 28 da Nova Lei de Drogas girou em torno de questões como o reconhecimento da abolitio criminis30, da descriminalização31 ou da despenalização32 da posse de drogas para consumo próprio.

Independente da discussão jurídica acerca da natureza da alteração promovida pelo artigo 28 da Lei nº. 11.343/2006, o referido dispositivo pretendeu abrandar a resposta do Sistema de Justiça Criminal à posse de entorpecentes para consumo pessoal, conferindo

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A expressão abolitio criminis refere-se à situação em que uma lei revoga lei anterior que definia como crime determinada conduta, extinguindo, assim, a punibilidade do agente, conforme disposto no artigo 107, inciso III, do Código Penal (NUCCI, 2007, p. 58). Segundo lição do jurista Fernando Capez (2005, p.45) a ocorrência de abolitio criminis extingue os efeitos penais principais e secundários, subsistindo apenas os efeitos extra-penais. 31

O termo descriminalização é empregado quando, por razões de política criminal, determinada conduta deixa de ser considerada crime. Existem três espécies de descriminalização: 1. a descriminalização puramente formal, que retira o caráter criminoso do fato mas não o retira do âmbito do Direito penal); 2. a que elimina o caráter criminoso do fato retirando-o da esfera de competência do Direito penal, mas o mantém como ilícito em outros ramos do Direito; e 3. a descriminalização substancial ou total que afasta o caráter criminoso do fato e lhe legaliza totalmente (GOMES, 2006).

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O termo despenalização refere-se à exclusão das penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal, com a manutenção do caráter ilícito do fato. Ao alterar a natureza da sanção penal cominada pela lei, o Legislador promove o abrandamento da resposta jurídico-penal ou possibilita a concessão de benefícios (GOMES, 2006).

tratamento diferenciado ao usuário, livrando-o do encarceramento e preconizando a redução de danos, porém, transitando entre a patologização e a criminalização, pois ainda fala em penas.

De outro lado, a Nova Lei de Drogas não fixou nenhum critério objetivo para a diferenciação entre as figuras do usuário e do traficante. Na prática, o Legislador deixou ao arbítrio dos operadores do Direito a distinção entre as duas figuras, pois, no artigo 28, § 2º, conferiu ao Juiz a tarefa de determinar se a droga destina-se a consumo pessoal, observando os seguintes critérios: a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente.

Destacamos que a realização de exame toxicológico para aferição clínica da situação de dependência pode ser determinada de ofício pelo Juiz, a requerimento do Ministério Público, da defesa ou do curador do acusado. Porém, segundo entendimento jurisprudencial33, o deferimento do exame de dependência não é obrigatório, cabendo ao julgador aferir a real necessidade de realização para a formação de sua convicção em cada caso concreto, dentro de sua discricionariedade regrada. E mesmo quando é realizado o exame toxicológico, a decisão do magistrado não está adstrita ao seu resultado, já que considerará todas as circunstâncias do caso e provas colhidas na instrução. Além disso, o tempo de espera para realização do exame de dependência, muitas vezes, prolonga a duração do processo34, podendo configurar um prejuízo ao acusado preso.

Essa ausência de critérios objetivos para a diferenciação entre usuários e traficantes é extremamente problemática, posto que a atual lei, em contrapartida ao abrandamento penal conferido ao uso de drogas, endureceu a punição para o crime de tráfico, aumentado a pena mínima de 03 (três) para 05 (cinco) anos de reclusão, bem como restringindo o deferimento de benefícios durante a execução da pena.

Além disso, Grillo et al. (2011) destacam que apesar das estatísticas criminais apontarem uma queda nos registros de ocorrências por flagrante do uso de drogas, desde a vigência da Lei nº. 11.343/200635, essa diminuição não pode ser explicada pela mudança

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Nesse sentido: Habeas Corpus nº. 51.619/RJ – Rio de Janeiro, Rel. Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, julgado em 09/11/2006, DJ 11/12/2006, p. 426.

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Conforme artigo 56, § 2º da Lei nº. 11.343/2006 a audiência de instrução e julgamento será realizada dentro dos 30 (trinta) dias seguintes ao recebimento da denúncia, salvo se determinada a realização de avaliação para atestar dependência de drogas, quando se realizará em 90 (noventa) dias.

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Grillo et al. (2011) constataram uma queda nos registros de ocorrências por flagrante de uso de drogas, desde a implementação da nova lei antidrogas no final de 2006. Os autores levantaram junto ao Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro o número de ocorrências por flagrante de uso de drogas e somando os dados mensais referentes aos 24 meses anteriores à mudança legislativa – novembro de 2004 a outubro de 2006 – e os

legislativa, eis que foi mantida a obrigatoriedade da condução de usuários surpreendidos em flagrante à Delegacia para assinatura de Termo Circunstanciado, assumindo o compromisso de comparecer em audiência no Juizado Especial Criminal (art. 48, § 2º).

Para Grillo et al. (2011), a redução do processamento legal de casos de uso de drogas se deve ao descaso da autoridade judicial36 com o crime de porte de drogas para uso e à forma de atuação de alguns profissionais responsáveis pelo policiamento ostensivo, que, não raro, negociam o encaminhamento, ou não, dos indivíduos flagrados para a delegacia.

Segundo Robert (2007), a deslocalização dos estilos de vida e das redes de sociabilidade facilita globalmente a invisibilidade daqueles que estão à margem da lei. Estes, em geral, buscam mecanismos para negar o fato e dissuadir os agentes penais. Contudo, a capacidade de ocultar, tornar invisível a conduta delitiva está relacionada ao modus operandi que lhe é próprio.

Ressaltamos que o contexto do crime favorece mais ou menos essa visibilidade pelas agências de controle social formal. Sendo certo que a cena que envolve o consumo de drogas e o crime de tráfico, bem como as testemunhas destes fatos, geralmente, estão ao alcance dos aplicadores do direito, o que em grande parte favorece a persecução penal dessas modalidades de ilícito. Sendo assim, resta aos indivíduos flagrados pelas polícias portando drogas a confissão da conduta de porte para consumo próprio, a negativa da autoria do tráfico ou a negociação com os agentes policiais, com vistas a escapar de reprimendas mais severas.

Antes mesmo da nova lei, Zaluar (1999) observou que a indefinição entre usuários e traficantes favorece a inflação do poder policial, bem como a corrupção,

A quantidade apreendida não é o critério diferenciador, pois encontram-se casos classificados como ‘posse e uso’ com 1.860 gramas de maconha apreendida e casos classificados como ‘tráfico’ com apenas 2 gramas. Essa indefinição, que está na legislação, mas principalmente na prática policial, só vai favorecer a inflação do poder policial, o que, por sua vez, vai inflacionar a corrupção (ZALUAR, 1999, p. 113).

Essa corrupção dos agentes policiais pode conduzir, de um lado, à negociação de propinas com usuários de drogas para liberação do flagrante (dissuasão dos agentes policiais), popularmente conhecida como “desenrolo”, e, de outro, ao registro de ocorrência de tráfico de drogas em razão de um “flagrante forjado”, situação em que, diante da negativa de

posteriores – novembro de 2006 a outubro de 2008 – verificaram que a incidência de ocorrências desse tipo foi 20% menor no período após a nova lei.

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“Com base em entrevistas com juízes, promotores, defensores e conciliadores do JECrim, percebeu-se que eles passaram a sentir-se desobrigados de atuar com relação ao crime por uso de drogas, percebendo essa infração como fora da competência da Justiça Criminal. Eles também alegavam que a ausência da possibilidade de encarceramento teria esvaziado as garantias de cumprimento, pelos infratores, das medidas alternativas determinadas em juízo” (GRILLO et al., 2011, p. 136).

propina, impossibilidade de pagamento ou insuficiência do valor oferecido pelo usuário, os policiais atribuem a este a posse de uma quantidade significativa de entorpecentes.

Aqui temos um exemplo de apropriação particular (pelos policiais) de um bem público de monopólio estatal (o poder punitivo delegado pelo Estado ao seu agente), o qual é convertido em uma “mercadoria política” 37 (MISSE, 1999). Mais do que corrupção policial, esta situação pode ser associada ao que Kant de Lima (1995) chamou de “arbitragem policial”, ou seja, o exercício de práticas judiciárias não oficiais, uma vez que os policiais se investem da função de julgar e punir os usuários, como lhes aprouver, conforme a posição social destes e a postura adotada durante a negociação do flagrante.

Além disso, destacamos que os procedimentos de vigilância empregados pelos policiais, bem como os procedimentos de incriminação dos suspeitos envolvidos com o uso ou o tráfico de entorpecentes focalizam indivíduos já identificados pelos agentes policiais ou aqueles passíveis de serem encaixados nos tipos sociais considerados potencialmente criminosos, desenvolvendo, assim, uma espécie de criminalização preventiva. Esse processo se enquadra na expressão “sujeição criminal”, assim definida por Misse,

A sujeição criminal é o processo social pelo qual identidades são construídas e atribuídas para habitar adequadamente o que é representado como um “mundo à parte”, o “mundo do crime”. Há sujeição criminal quando há reprodução social de “tipos sociais” representados como criminais ou potencialmente criminais: bandidos. No Rio de Janeiro eles foram ou são “malandros”, “vagabundos”, “171”, “marginais”, “bicheiros”, “traficantes”, “bichos-soltos”, e muitos outros tipos. Esses nomes designam julgamentos a respeito de indivíduos recortados por algumas de suas práticas e as representações que carregam não são homogêneas nem no significado nem nas categorias sociais que os nomeiam. Todos, no entanto, são considerados passíveis de, ou com chance de, ser (ou voltarem a ser) incriminados em algum momento (ou de já o ter sido) (MISSE, 1999, p. 71).

Tal processo repercute sobre a identidade pública, e muitas vezes íntima, dos indivíduos que subjetivam os rótulos que lhes são atribuídos (LEMERT, 1951; BECKER, 1977; 2008), sofrendo estigmatização (GOFFMAN, 1988).

O tipo penal a ser aplicado é definido não só pelo resultado do processo de negociação do flagrante e da seleção criminalizante ou “sujeição criminal”, mas também por negociações discursivas sobre a versão do fato a ser apresentada na delegacia e que irá para os “autos”, posto que os registros realizados serão determinantes na fase de instrução e processamento judicial. Esses registros precisam conter informações e provas suficientes da

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Expressão empregada no sentido definido por Misse (1999, p. 288) ao referir-se “ao conjunto de diferentes bens ou serviços compostos por recursos ‘políticos’ (não necessariamente bens ou serviços políticos públicos ou de base estatal) que podem ser constituídos como objeto privado de apropriação para troca (livre ou compulsória, legal ou ilegal, criminal ou não) por outras mercadorias, utilidades ou dinheiro. O que tradicionalmente se chama de ‘corrupção’ é um dos tipos principais de ‘mercadoria política’ ilícita ou criminal”.

materialidade do delito e dos indícios de autoria que justifiquem a propositura da ação penal pelo Ministério Público, o recebimento da denúncia pelo Magistrado e que venham a subsidiar a formação do “livre convencimento motivado do juiz” na sentença.

Desta forma, os Autos de Flagrante precisam ser bem redigidos, livres de contradições passíveis de fazer configurar uma prisão ilegal. Uma narrativa coerente da “dinâmica do fato” pelos policiais e delegados será determinante para a constituição do fato criminal, podendo levar ao encarceramento do agente (GRILLO et al., 2011).

E conforme destaca Kant de Lima (2007, p. 179), “a polícia barganha, negocia, oficiosa e/ou ilegalmente, em troca de algum tipo de vantagem, tanto o que se investiga, como o que os escrivães policiais escrevem nos ‘autos’ do inquérito policial, o que se denomina, mesmo, por uma categoria específica: a ‘armação do processo’”.

Embora a lei antidrogas determine que o Juiz deve ser imediatamente informado da prisão de um indivíduo, o prazo de tramitação necessário para que o processo físico do Auto de Prisão em Flagrante chegue às suas mãos é de 10 (dez) dias, período em que o conteúdo dos documentos pode sofrer alterações.

Considerando que a fase policial do processamento dos crimes é caracterizada pelo sistema inquisitorial, ou seja, marcada pela ausência do direito ao contraditório e à ampla defesa, temos que a construção da narrativa dos fatos é mediada pelas negociações referidas e remete ao processo da “criminação-incriminação”, definido pelo enquadramento de um curso de ação na classificação criminalizante definida no tipo penal, isto é, a criminação de um evento, e a atribuição do fato criminal a um suposto sujeito autor, enfim, a sua incriminação (MISSE, 1999).

Segundo Misse (1999), esse processo de “criminação-incriminação” atravessa várias etapas no fluxo da Justiça Criminal e pode ser reduzido a três etapas, quais sejam:

1. a etapa policial, que “interpreta ou reinterpreta e registra um evento como crime (ou contravenção) e indicia seus possíveis autores”;

2. a etapa judicial inicial, que “mantêm o registro do evento como crime (ou o anula ou arquiva) e acusa formalmente os indiciados (ou os libera, quando anulados ou arquivados os inquéritos policiais que os acusava)”; e

3. a etapa judicial final, “o julgamento, que estabelece a criminação efetiva (para a qual haverá possibilidade de recurso e revisão) e estabelece uma sentença para o sujeito acusado da ação, o réu (sentença que também pode absolvê-lo da acusação e anular a incriminação). (MISSE, 1999, p. 136-137, grifos do autor)

Logo, a elaboração da descrição da conduta típica nos “autos processuais” pelos agentes do fluxo do Sistema de Justiça Criminal determina o enquadramento de um indivíduo nas categorias de usuário ou traficante que, apesar da ausência de critérios objetivos de diferenciação, possuem previsões de penas extremamente díspares.

Em pesquisa realizada com Juízes e Promotores do Distrito Federal, Santoucy et al. (2010, p. 181) observam que a ausência de diferenciação legal entre usuários e traficantes é um assunto polêmico para os operadores do Direito. Os profissionais entrevistados chegaram a reconhecer a dificuldade de promover essa diferenciação no caso concreto, admitindo que, muitas vezes, decidem recorrendo à intuição e à experiência profissional, quando a sensibilidade aponta em uma direção e as provas concretas em outra. Eles também apontaram que a legislação não faz qualquer distinção entre outras categorias de usuários e traficantes, como o “mero usuário” e o “usuário aviãozinho” (que vende ou transporta pequenas quantidades de drogas para manter o próprio vício); o “traficante” e o “traficante que usa drogas”.

Desta forma a subjetividade dos magistrados pode ser determinante numa fase do fluxo processual em que, teoricamente, deveria prevalecer a imparcialidade e objetividade. Ou seja, os valores e as representações sociais inerentes ao contexto institucional e à orientação da cultura jurídica e profissional em que os Juízes estão inseridos, em última análise, são determinantes da condenação ou absolvição, bem como da modalidade e quantidade de pena a ser aplicada, conforme seja acolhida a tipificação da conduta ilícita como tráfico ou como porte para consumo próprio.

Assim, a margem de discricionariedade decorrente da ausência de definição concreta da figura do usuário e do traficante na Lei nº. 11.343/2006 dá ensejo a decisões arbitrárias, jogando por terra o mito da imparcialidade do Judiciário e abrindo brechas para a aplicação de penas díspares e injustas para indivíduos que praticaram condutas ilícitas semelhantes.

No Capítulo 3 apresentaremos algumas das considerações presentes na literatura sobre o significado da atividade judicativa e sobre a influência de fatores extralegais na administração da Justiça. Antes, porém, julgamos necessário apresentar ao leitor a configuração das condutas tipificadas como crimes na Lei de Drogas vigente, expondo seus pressupostos, as penas abstratamente cominadas, as circunstâncias juridicamente relevantes e o fluxo processual no judiciário.

2.4 Crimes de tráfico: penalização, causas de aumento e diminuição e vedação de

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 67-74)