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A significação da atividade judicativa

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 86-92)

Ribeiro (1999) destaca a frequência com que questões sobre a conexão entre sistemas simbólicos e outros níveis da vida social tem sido discutidas por teorias sobre as práticas sociais. O autor situa o debate na discussão sobre o fator primordial na explicação dos fenômenos sociais: a esfera econômica ou a esfera cultural, afirmando que,

As teorias mais recentes têm se preocupado em demonstrar que as práticas materiais e as ordens simbólicas são mutuamente constitutivas ou ‘dualisticamente estruturadas’. Anthony Giddens (1984), por exemplo, propõe o conceito de ‘dualidade de estrutura’; Pierre Bourdieu (1990; Bourdieu e Wacquant, 1992) usa os conceitos de ‘habitus’, ‘campo’ e ‘capital’; e William Sewell Jr. (1992) reformula os conceitos de “habitus’ e ‘dualidade de estrutura’ para elaborar sua ‘teoria da estrutura’. Além disso, a ‘sociologia da punição’, desenvolvida por David Garland (1990), também se ocupa da constituição mútua da cultura e das práticas punitivas. (RIBEIRO, 1999, s/n)

Ainda segundo o autor, as recentes teorias sobre práticas sociais e de punição são devedoras das teorias sociológicas desenvolvidas nas décadas de 1960-1970, influenciadas pelas concepções fenomenológicas da vida social. Nesse sentido, argumenta,

Em suas críticas às teorias funcionalistas, Harold Garfinkel, Erving Goffman e Aaron Cicourel defendem a tese de que as práticas organizacionais dos agentes sociais são a chave para a compreensão das conexões entre sistemas simbólicos e outros níveis da vida social. De acordo com esses críticos do funcionalismo, a significação da ação social só pode ser entendida pelo estudo das práticas e do raciocínio prático dos agentes. (RIBEIRO, 1999, s/n, grifo nosso)

Cicourel (1968), em estudo sobre a organização social e a justiça juvenil nos Estados Unidos, critica as abordagens sociológicas sobre o crime e o desvio fundadas unicamente em estatísticas oficiais e que ignoram o fato destas serem produto de práticas organizacionais e do raciocínio prático dos funcionários das agências de controle social formal, responsáveis pela imposição da lei.

A partir da análise dos Juizados de menores americanos (juvenile justice bureaus), o autor aponta para a importância do estudo da práxis dos diferentes agentes do processo de produção de estatísticas criminais e documentos judiciais, cujo raciocínio prático define e

constitui o significado do que vem a ser considerado certo, errado, criminoso ou não criminoso. Segundo Cicourel,

Uma compreensão de como as estatísticas oficiais são reunidas informa o pesquisador sobre a forma como os “delinquentes” são produzidos pelas atividades socialmente organizadas e socialmente sancionadas pelos membros da comunidade e representantes das agências de aplicação da lei.

(CICOUREL, 1968, p. 27, tradução nossa)

Para Cicourel (1968), na justiça criminal a resolução deste problema estaria em pesquisas que identificassem como são elaborados os “autos criminais” pelos atores envolvidos em atividades socialmente organizadas (como a comunidade, a família, a polícia, os tribunais, etc.), e como esses “autos” fornecem descrições “corretas” da estrutura de caráter, moral, justiça, legalidade, criminalidade aos membros daquelas organizações.

Partindo da crítica formulada por Cicourel, Ribeiro (1999) conclui que estudos sobre a criminalidade e o desvio fundados apenas em estatísticas não seriam capazes de alcançar a compreensão desses fenômenos. Assim, uma alternativa seriam as pesquisas realizadas com o emprego da técnica da observação participante ou que interpretem as estatísticas como representações das práticas dos agentes da lei (policiais, juízes, júri, promotores, advogados), mais do que uma medida das taxas de criminalidade.

Um exemplo de pesquisa inspirada nas proposições de Cicourel, pode ser encontrado em “Sentencing as a human process” de Hogarth (1971), para quem

a explicação do processo de tomada de decisões de juízes e corpos de jurados está em saber como os tribunais usam as informações. A determinação de relações estatísticas entre fatores como, de um lado, a gravidade do crime e a ficha criminal e, de outro, o padrão de decisões de sentenças não quer dizer que esses fatores sejam conscientes para juízes, advogados e jurados no momento do julgamento. Na opinião de Hogarth, os estudos sobre decisões de sentença que se baseiam apenas em testes estatísticos seguem um modelo de ‘caixa preta’, porque não se sabe coisa alguma sobre os juízes ou magistrados, além das decisões que tomaram. Em contraste com um estudo do tipo ‘caixa preta’, uma pesquisa séria sobre o processo de decisão de sentenças deveria incluir a investigação das opiniões e práticas dos magistrados. Hogarth conclui que apenas um estudo fenomenológico que busque compreender os processos empregados pelos magistrados para atribuir ‘significados’ aos fatos, leis, idéias e pessoas é capaz de predizer a conduta judicativa. (RIBEIRO, 1999, s/n, grifo nosso)

Formulações de inspiração fenomenológica sobre a justiça criminal encontradas em Cicourel (1968) e Hogarth (1971) foram retomadas e desenvolvidas por Bourdieu, Giddens e Sewell Jr., os quais compartilham a opinião de que as práticas materiais e os sistemas simbólicos se constituem reciprocamente ou são "dualisticamente estruturados".

No sexto e último capítulo do livro “A constituição da sociedade”, Giddens (2003) recorre a um “fragmento situado de interação” entre um Juiz, um promotor e um advogado num debate em tribunal para definir o conceito de "dualidade da estrutura", central em sua "teoria da estruturação". Para o autor,

Cada fala na conversa entre os participantes só é apreendida por eles (e pelo leitor) como significativa pela tácita invocação de características institucionais do sistema de justiça criminal. Estas servem de suporte para cada interlocutor, que (corretamente) as presumem como sendo de conhecimento mútuo na situação. Note- se que o conteúdo desse conhecimento mútuo supõe muitíssimo mais do que a mera percepção das táticas de “procedimento apropriado” em tais casos, embora isso também esteja envolvido. Cada participante possui vastos conhecimentos sobre o que é um “sistema legal”, sobre procedimentos normativos de Direito, sobre o que presos, advogados e juízes fazem etc. Para que a interação seja realizada, os participantes fazem uso de seu conhecimento da ordem institucional em que estão envolvidos, de modo a tornar essa interação “significativa”. Entretanto, ao invocar a ordem institucional desse modo - e não existe outra maneira de os participantes na interação tornarem inteligível e coerente o que fazem, aos olhos uns dos outros -, eles contribuem com isso para reproduzi-Ia. Alem disso, é essencial ver que, ao reproduzi-la, eles também reproduzem sua “faticidade” como fonte de coerção estrutural (sobre eles próprios e sobre outros). Tratam o sistema de justiça como uma ordem “real” de relações [isto é, estruturalmente estável] no âmbito da qual sua própria interação esta situada e a qual ela expressa. (GIDDENS, 2003, p. 390, grifo nosso)

Em resumo, Giddens propõe que a estrutura e a ação humana pressupõem-se mutuamente, na medida em que as estruturas informam as práticas humanas, que simultaneamente constituem, reproduzem e inovam as estruturas, transformando-as.

Assim, as estruturas são concebidas como processos, e, conforme definição sucinta são “conjuntos de regras e recursos, implicados na articulação institucional de sistemas sociais. Estudar estruturas, inclusive princípios estruturais, é estudar aspectos importantes das relações de transformação/mediação que influenciam a integração social e sistêmica” (GIDDENS, 2003, p. 442).

Estas estruturas são virtuais, elas “existem apenas como vestígios de memória" e são colocadas em prática na produção e reprodução da vida social. Também são duais, pois compostas por regras e recursos. As regras são "técnicas ou procedimentos generalizáveis aplicados no desempenho/reprodução de práticas sociais" (GIDDENS, 2003, p. 25). São “generalizáveis” na medida em que não dependem apenas de situações específicas, podendo orientar práticas sociais em diversas situações.

Nesse sentido, Ribeiro (1999, s/n) lembra que as “‘regras’ que opõem os papéis de homem e mulher podem orientar as práticas das pessoas em situações tão diversas quanto os debates nos tribunais e os encontros cotidianos nas ruas de uma grande cidade”.

Ao mencionar que as estruturas não são compostas apenas de regras, mas também de “recursos”, Giddens (2003, p. 443) indica que nelas está implícita uma relação de poder. Ao definir recursos, o autor os subdivide em “recursos alocativos” e “recursos autoritários”. Os primeiros são “recursos materiais envolvidos na geração de poder, incluindo o ambiente natural e os artefatos físicos; eles derivam do domínio humano sobre a natureza”, enquanto os segundos são “recursos não-materiais envolvidos na geração de poder, derivando da capacidade de tirar proveito das atividades de seres humanos; eles resultam do domínio de alguns atores sobre outros”.

No capítulo VIII de “O Poder Simbólico”, intitulado “A força do Direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”, Bourdieu (2006) empregou sua teoria das práticas sociais, baseada nos conceitos de “campo” 53, “habitus” 54 e “capital” 55, para explicar quais são os principais dispositivos simbólicos que constituem o campo jurídico, assim definido pelo autor,

O campo jurídico é o lugar da concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. É com esta condição que se podem dar as razões quer da autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento, que resulta da ilusão da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas. (BOURDIEU, 2006, p. 212)

Comentando as lições de Bourdieu, Ribeiro (1999, s/n) destaca que o caminho para a renovação da Sociologia do Direito está no entendimento das práticas dos membros do Judiciário, pois o campo jurídico é relativamente independente de demandas externas, apresentando divisões internas de trabalho e de competências conflitantes no processo de tomada de decisões legais. Para o autor, “a concepção prática da lei que se revela no veredicto é a culminação de uma luta simbólica entre profissionais de desigual competência técnica e social”.

53

Espaço simbólico, no qual lutas dos agentes determinam, validam, legitimam representações. Nele se estabelece uma classificação dos signos, do que é adequado, do que pertence ou não a um código de valores. 54 “

Sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem ser o produto de obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi- los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente” (BOURDIEU, 1994, p. 61).

55

O conceito de capital em Bourdieu refere-se basicamente ao acúmulo de forças dos agentes, sendo distinguido em quatro tipos de capital, sendo o social, o econômico, o simbólico e o cultural.

Em termos gerais, Bourdieu afirma que as ações e as práticas humanas são criadas e orientadas por algo semelhante ao que Giddens chama de “dualidade da estrutura”. Em lugar de “regras” e “recursos”, o autor apresenta a definição de “estruturas mentais” e do “mundo dos objetos”, sendo estes guiados e transformados pelas práticas dos agentes sociais. De acordo com Ribeiro (1999), Bourdieu utiliza o conceito de “habitus” para reformular o dualismo entre ação e estrutura; para definir as práticas informadoras e transformadoras das “estruturas mentais” e do “mundo dos objetos” em campos específicos (e.g. o campo jurídico), assim como entre os campos. O “habitus” é definido como “estruturas estruturadas” e “estruturas estruturantes”, como uma espécie de “senso do jogo” que possibilita a constituição mútua da ação e das estruturas.

No campo jurídico, o “habitus” permitiria a profissionais de desigual competência técnica e social uma capacidade de compreender os significados e de usar de modo eficiente os recursos que podem e devem ser empregados em cada uma das situações vivenciadas num tribunal. Para Bourdieu,

a instituição de um ‘espaço judicial’ implica a imposição de uma fronteira entre os que estão preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados, permanecem de fato dele excluídos, por não poderem operar a conversão de todo o espaço mental – e, em particular, de toda a postura lingüística – que supõe a entrada neste espaço social. (BOURDIEU, 2006, p. 225)

Segundo Bourdieu, a lei tem “o poder oficial de nomear”, ou seja, os relatos e as decisões consubstanciados nos veredictos definem o certo e o errado na sociedade. Além de estarem impregnadas por representações sociais e julgamentos morais difundidos na sociedade; as decisões legais geram representações sociais e categorias morais. Desta forma, como em uma via de mão dupla, podemos dizer que enquanto a lei “faz” o mundo social, ela também “é feita” por ele.

De outro lado, o historiador e cientista social Sewell Jr. (1992) reformula a teoria da estrutura e da prática contida nas abordagens de Giddens e Bourdieu. Sewell Jr. não menciona as práticas judiciais, mas afirma a generalidade de seu conceito de estrutura, o que possibilita sua aplicação a estruturas de diferentes naturezas.

Em sua teoria Sewell Jr. também versa sobre a “dualidade da estrutura”, a ação e as transformações estruturais. O autor afirma a dualidade da estrutura, defendendo que esta ocorre entre “esquemas” (culturais) e “recursos” (materiais ou de poder), estes últimos entendidos como humanos e não humanos. Ao tratar da dualidade entre estrutura e ação, Sewell Jr. conclui que,

As estruturas, como já argumentei, são mutuamente constituídas por esquemas culturais e conjuntos de recursos que conferem poder e restringem a ação social, e tendem a ser reproduzidos por essa ação. Os agentes adquirem poder devido às estruturas, não apenas o conhecimento de esquemas culturais os capacita a mobilizar recursos, mas também o acesso a recursos os capacita a produzir esquemas. Esse uso do conceito de estrutura difere tanto do uso sociológico habitual do termo, porque insiste em que a estrutura é um fenômeno profundamente cultural, quanto do uso antropológico habitual, porque insiste em que a estrutura sempre deriva da natureza e da distribuição dos recursos no mundo cotidiano. A estrutura é dinâmica, não estática, ela é o resultado em constante evolução e a matriz de um processo de interação social. (SEWELL JR., 1992, p. 27, tradução nossa)

No contexto do presente trabalho, surge a questão da constituição mútua das práticas punitivas (e.g. a decisão na sentença criminal) e da cultura (e.g. o significado destas sentenças) que tem sido abordada em estudos da “sociologia punitiva”.

Garland (1990, p. 198) nos oferece uma relevante análise sobre a relação entre a cultura e a punição. Segundo este autor a punição deve ser entendida como “um artefato cultural complexo que codifica em suas próprias práticas os signos e os símbolos da cultura mais ampla”.

Assim, a punição envolve uma rede de práticas sociais materiais (ações) em que as formas simbólicas são sancionadas tanto pela força, quanto pelo uso. Também quando tratamos de práticas punitivas, devemos pensar a cultura (símbolos e seus significados) e as práticas sociais (ação social e práticas instrumentais) como mutuamente constitutivas.

Como vimos anteriormente, os diferentes papéis atribuídos a homens e mulheres em nossa sociedade influenciam no juízo de reprovação que informa a tomada de decisão sobre suas condutas criminosas, sendo que os significados dos crimes praticados por homens e mulheres relacionam-se às práticas sociais que punem diferentemente conforme o gênero.

Isso significa que as práticas penais estão entre as muitas formas pelas quais a sociedade estabelece distinções entre os gêneros, integrando uma cultura mais geral que atribui significados diversos aos papéis masculinos e femininos. Conforme Garland,

Na verdade, os padrões gerais de significação cultural indubitavelmente influenciam as formas de punição. Mas também é verdade que a punição e as instituições penais ajudam a modelar a cultura e contribuem para a criação dos seus termos. [...] Assim, a instituição penal é tanto ‘causa’ quanto ‘efeito’ da cultura. (GARLAND, 1990, p. 249, grifo nosso)

Corroborando esse entendimento, Ribeiro (1999) destaca a comunicação de significados culturais através das práticas punitivas, que são, simultaneamente, influenciadas por tais significados, seja em relação ao crime e à pena, seja em relação à moralidade, ao gênero ou à raça. Sobre a relação entre significados culturais e a atividade judicativa, o autor defende que,

Entre as diversas práticas por meio das quais a punição influencia e propaga significados culturais estão as do julgamento por sentença. É claro que a sentença não é o único meio pelo qual significados culturais impregnam as práticas punitivas, mas o momento de definir sentenças é sem dúvida importante para reificar ao mesmo tempo a significação da atividade judicativa e o significado de outras categorias culturais, como gênero, classe, raça e moralidade. (RIBEIRO, 1999, s/n, grifo nosso)

Diante do exposto até aqui, podemos concluir que o estudo do processo de julgamento ou de tomada da decisão criminal surge como uma importante ferramenta na busca por explicações sobre os significados culturais que definem e são definidos por práticas punitivas.

Por fim, anotamos que a questão sobre qual a metodologia adequada para pesquisas empíricas que deem conta da inter-relação de significados culturais e práticas punitivas tem sido objeto de discussão. Enquanto Cicourel e Hogarth defendem o uso de pesquisas etnográficas ou qualitativas, Bourdieu recorre a metodologias semelhantes às utilizadas no estudo de estruturas de significação e Giddens admite que abordagens qualitativas e quantitativas são igualmente válidas. No presente trabalho optou-se pela abordagem metodológica da “Theory of sentencing”, cujas linhas gerais serão expostas adiante.

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 86-92)