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Modernidade e a pesquisa em “sentencing”

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 104-107)

Vanhamme e Beyens (2007) ressaltam que a modernidade, emergiu gradualmente a partir do século XVII, em torno do consenso de que a razão e o conhecimento são fatores determinantes do progresso social e tecnológico, capaz de promover maior segurança e liberdade. Neste contexto, surgiram novas instituições, não mais baseadas no imediatismo das relações sociais, cuja viabilidade é assegurada por uma legitimidade simbólica fundada, principalmente, na confiança no progresso em que se apoiam (GIDDENS, 1991).

O “Estado Providência” ou de “Bem-estar Social”, característico da modernidade, é marcado pela visão de integração de condições para promoção da igualdade de oportunidades e da mobilidade social. Assim, preconiza-se o desenvolvimento de políticas econômicas e sociais (educação, trabalho, saúde) auxiliares na luta contra o crime, sendo este percebido como um sintoma de um problema social e o criminoso como um indivíduo passível de aperfeiçoamento. O objetivo da política penal é a ressocialização.

De outro lado, Vanhamme e Beyens (2007) localizam a ascensão da modernidade tardia a partir da Crise do Petróleo de 1973. Na década de 1980, o colapso da União Soviética abriu o caminho para a globalização econômica e para o neoliberalismo; sendo que a maximização dos riscos, cada vez mais imprevisíveis, reforçou a insegurança sentida desde a crise.

Essa insegurança abalou a confiança na capacidade da razão para conduzir ao progresso e à liberdade, gerando instabilidade, desencanto e o questionamento da legitimidade das instituições de poder (GIDDENS, 1991).

A crise estrutural e a globalização privaram gradualmente o Estado do anterior monopólio e controle da economia. Enfraquecido, o Estado adotou a lógica neoliberal: transferindo cada vez mais ao indivíduo a responsabilidade por seu bem-estar. Assim, cresce a dúvida sobre a capacidade do Estado para condução ao progresso e para proteção do cidadão. A crescente preocupação estatal com “a opinião pública”, evidencia o processo de deslegitimação do poder público.

Segundo Houchon (apud VANHAMME e BEYENS, 2007), o Estado, economicamente enfraquecido, volta-se para a questão da ordem e da criminalidade, investindo no Direito Penal, como fonte de relegitimação. De um lado, isso gera o interesse por uma justiça mais relacional que considera a vítima. De outro, o Estado redireciona a política criminal para a gestão preventiva dos riscos da criminalidade, assumindo o risco e o controle como categorias centrais (GARLAND, 2008).

Neste momento, a política criminal descentraliza a meta de ressocialização do infrator fundada na lógica inclusiva, para reorientar-se para a meta de recuperação e auto- legitimação de suas agências, seguindo uma lógica excludente (YOUNG, 2002). Isso conduz a uma política criminal de expansão das penas, provendo uma mudança do “Estado de Bem- estar Social” para um “Estado Social de Segurança” 59, onde a segurança se torna um fim em si mesmo e a pena um instrumento de regulação de uma política de redução dos riscos, principalmente contra populações socioeconomicamente desfavorecidas (MARY, 2001).

O Estado moderno emprega o conhecimento como um fator de dominação, controle e poder (FOUCAULT, 1987)60. Vanhamme e Beyens (2007) lembram que na ciência os elementos da modernidade são atualizados para o paradigma positivista, que conhece apenas a realidade material. Visando a previsão, as teorias focalizam relações causais entre diferentes fenômenos e, portanto, se baseiam principalmente em métodos quantitativos.

As Ciências Humanas se inscrevem numa visão consensual da modernidade. A sociologia durkheimiana considera que os mesmos valores são compartilhados em estados fortes da consciência coletiva, que os fatos sociais são coisas e que o exame de

59

O autor utiliza a seguinte expressão: “État (social-) sécuritaire” (MARY, 2001, p. 18). 60

Nesse sentido, Focault (1987, p. 19, grifo nosso) argumenta que a antropologia criminal e a criminologia introduzem “as infrações no campo dos objetos susceptíveis de um conhecimento científico, [conferindo] aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser”.

comportamentos constantes em condições idênticas pode levar ao conhecimento da sociedade (DURKHEIM, 1999; 2007). Nessa mesma linha, o Direito Penal é encarado por Taylor et al. (apud VANHAMME e BEYENS, 2007) como uma expressão de consenso social.

Na modernidade tardia, encarando a insegurança, a ciência procura a compreensão e reflexão da validade interna do raciocínio. Considerando a existência de diferentes visões do mundo, as Ciências Humanas desenvolvem o construtivismo e abordagens complexas (BRODEUR, 1993). Na sociologia, os modelos de compreensão são sistêmicos e interacionistas, sendo a realidade social apreendida como algo construído (BERGER e LUCKMANN, 2004).

Os fatos sociais deixam de ser entendidos como coisas materiais, para surgirem como interpretações humanas sobre as coisas, exigindo uma análise qualitativa. O direito é visto como uma construção social que apoia o grupo social dominante, o que implica numa problematização da reação penal e da atividade do Estado. E para Pires (1993) e Taylor et al. (apud VANHAMME e BEYENS, 2007) a criminologia da reação social examina tanto o crime quanto a criminalização, primária e secundária, enquanto construções sociais.

As transformações decorrentes da passagem da modernidade para a modernidade tardia abriram espaço para estudos sobre o juízo decisório de aplicação da pena, enfim, sobre a sentença. Como vimos, o tema central destes estudos é a análise da disparidade relacionada à natureza ou à duração das penas, quando aplicadas a sujeitos que praticaram delitos semelhantes.

A desigualdade de tratamento dos casos criminais afronta um princípio basilar do Estado de Direito, qual seja, a afirmação da igualdade de todos perante a lei. Segundo a lógica integradora do “Estado de Bem-estar Social”, o ideal de igualdade é uma preocupação central, motivo pelo qual a investigação sobre os determinantes da condenação alcançou grande desenvolvimento no período que marcou o auge do “welfare state”, final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Momento em que emerge a abordagem interacionista e a criminologia da reação social.

Segundo Robert (2007, p. 17-20), para a caracterização de um crime na lógica das ciências é preciso dirigir atenção sobre o que há de comum e de exclusivo a todas as suas variedades para isolar um “núcleo-duro” do crime. Assim, enquanto objeto de estudo, o crime deve ser compreendido como uma realidade social constituída pelo Direito como prática social, na ação do mesmo. Essa perspectiva revela que a pesquisa do crime e da tomada de decisão (“sentencing”) estão submetidas a um campo conceitual normativo que se relaciona à igualdade do tratamento na atribuição das penas, que como vimos, é o tema principal da

modernidade. O autor ressalta, ainda, que nenhuma norma dispõe de universalidade, estando todas submetidas às contingências sociais, motivo pelo qual as dificuldades que se teme em relação ao direito não podem ser afastadas pela referência a outro tipo de regra.

Sendo assim, a “sentencing” pretende empregar um método de análise das práticas incorporadas no processo de tomada de decisão pelos magistrados, visando à reflexão sobre os efeitos produzidos pelos Tribunais em decorrência das disparidades verificadas no domínio da normatividade; não necessariamente presa à definição do objeto jurídico.

Vanhamme e Beyens (2007) identificam duas abordagens dominantes nos estudos de “sentencing”,

1. Uma abordagem tradicional (neopositivista), preocupada com o resultado (saída) das decisões e a identificação das variáveis que produziram resultados diferentes. Produz estudos quantitativos/correlacionais, levantam dados estatísticos de fatores previamente identificados, buscando detectar e explicar as disparidades; e

2. Uma abordagem sociológica, que baseada na ideia de reflexividade da modernidade tardia, critica os estudos de tradição neopositivista, pois considera que, ao focarem o resultado, estes estudos deixam de apreender o processo de interpretação e classificação do tomador de decisão enquanto indivíduo, bem como todo o contexto profissional, organizacional e social em que a decisão é tomada, o que pode levar a limitações significativas. Como alternativa, propõe a utilização de técnicas de pesquisa qualitativa, como observações e entrevistas orientadas para a interpretação e percepção de dados “objetivos”. Essas abordagens interpretativas focalizam o processo em contexto e não apenas o resultado.

Martins (2011, p. 113) destaca que essa distinção entre a abordagem tradicional e a abordagem sociológica da “sentencing” retoma a discussão sobre o binômio epistemológico entre as pesquisas quantitativas e qualitativas e que a “apropriação de um ou outro, ou a convergência dos métodos, sem dúvida, está associada à natureza do objeto, à observação do plano de interesse sobre os resultados, bem como à exequibilidade da proposta investigada”.

No documento joycekelinascimentosilva (páginas 104-107)