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A enfermeira: representações sociais e reconhecimento

A respeito das representações sociais, Charaudeau nos explica que o conceito, desenvolvido originalmente por Serge Moscovici, tem por função

[...] interpretar a realidade que nos cerca, por um lado, mantendo com ela relações de simbolização; por outro, atribuindo-lhe significações. Elas são construídas pelo conjunto das crenças, dos conhecimentos e das opiniões produzidos e partilhados pelos indivíduos de um mesmo grupo a respeito de um dado objeto social. (Charaudeau, 2006b, p.195-196)

Assim, para conhecer quais as representações sociais dos enfermeiros, e a influência de tais representações sobre a impossibilidade de acesso desses profissionais às instâncias midiáticas, realizamos uma revisão da bibliografia a respeito do tema.

Observamos, no trabalho desenvolvido por Eduardo Pinto e Silva, Márcia Fabbro e Roberto Heloani, que a relação do enfermeiro com o poder-saber médico (conceituado pelos autores a partir de Michel Foucault)

[...] tende a reproduzir estereótipos do gênero feminino e atitudes de submissão ou de dedicação máxima à imagem de supermulher, personagem-herói que se responsabiliza por todos os problemas. Porém, contraditoriamente, rotula-se de subumana, justamente por conviver com a submissão frente à equipe médica e à própria instituição [...]. Assim, permanecem resquícios no imaginário sociocultural e institucional de que a enfermeira seja meramente uma auxiliar do médico. (Silva, Fabro, Heloani, 2009, p.398)

Importante ressaltar que, como explica Charaudeau, “a questão da identidade do sujeito passa por representações sociais: o sujeito falante não tem outra realidade além da permitida pelas representações que circulam em determinado grupo social [...]”. (2006b, p.117).

Fernandes (2011), em citação a Valente e De Caux, parece reiterar a afirmação de Charaudeau, ao esclarecer que

[...] nossa identidade é em parte formada pelo reconhecimento ou pela falta dele, e muitas vezes pelo reconhecimento errôneo (misrecognition) por parte dos outros, e assim uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer um dano real, uma distorção real, se as pessoas ou a sociedade em torno lhe espelharem em retorno uma imagem limitada, aviltante ou desprezível dela própria. (Valente; De Caux apud Fernandes, 2011, p.284)

Também Alain Caillé, em texto que aborda a interrelação entre capital social, reconhecimento e dádiva, entende que

A recusa dessa modalidade de reconhecimento se expressa na forma de desrespeito, ofensa, degradação ou desvalorização de alguns modos de vida/crenças consideradas de menor valor. Os indivíduos são atingidos na possibilidade de atribuir valor social à sua capacidade pessoal, o que traz em consequência um olhar para sua própria vida como algo pouco significativo. (Caillé, 2011, p.47)

Novamente referenciando o estudo de Denise Pires (2009), esta autora identifica a enfermagem, em comparação à medicina, como profissão da saúde plena de aspectos muito frágeis: “a autonomia profissional é relativa e o reconhecimento da utilidade social deste trabalho profissional e do domínio de um campo específico/próprio de conhecimentos é inexistente” (Pires, 2009, p.740).

As pesquisadoras Fonseca e Silva (2012) desenvolveram um estudo que procurava detectar, dentre estudantes do último ano do ensino médio, quais representações sociais da enfermagem que este público guarda desta categoria profissional e se tais representações se refletem na opção/exclusão da enfermagem como possível carreira.

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Comunicação pública: interlocuções, interlocutores e perspectivas As autoras detectaram que, para este público,

O enfermeiro [...] possui características de sacrifício, humildade, “pouco ego” e não pode ter o dinheiro como motivação para otrabalho. [...]. O enfermeiro é identificado como auxiliar do médico, subalterno e obediente ao médico. A enfermagem é associada com profissão do gênero feminino. Seu campo de atuação é primário e centralmente em hospitais ou clínicas. (Fonseca; Silva, 2012, p.57)

Na conclusão do estudo, as autoras compreenderam que os adolescentes, ao retratarem o enfermeiro como “auxiliar do médico”, estariam, na verdade, reproduzindo a posição histórica e social do enfermeiro como um ator subalterno, passivo diante dos papéis cultuais conferidos à profissão, e cuja imagem tem sido apresentada “pela literatura, cinema, rádio e televisão ao longo das décadas” (Fonseca; Silva, 2012, 2012, p.58).

Os meios de comunicação de massa têm tradicionalmente representado o enfermeiro ou a enfermeira por meio de personagens em situações que enfatizam “as relações de dominação- subordinação dentro do sistema hospitalar ou assistencial”. (Fahl, Silva, 2012, p.58)

Em outra pesquisa, conduzida por Kemmer e Silva (2007), foi proposto pelas autoras compreender a visão e opinião dos jornalistas a respeito do enfermeiro. Desejava- se desvendar as razões pelas quais a enfermagem, apesar de possuir “um corpo próprio de conhecimento científico conquistado por meio de estudos e pesquisas, a sua definição como ciência”, não conta com o reconhecimento social de suas ações. Como primeira conclusão, o estudo mostrou que “as representações sociais identificadas em diversos segmentos da sociedade e aquelas veiculadas notadamente pela mídia, refletem [...] um profissional sem poder, sem autonomia, sem conhecimento, sem voz”.

Segundo suas observações, os entrevistados reproduziram uma opinião já constatada em outros estudos a respeito da imagem do enfermeiro, nos quais este “é caracterizado por realizar tarefas simplesmente técnicas, subordinado à área médica, identificado como auxiliar de médico e atuando em profissão denotativa de mão de obra barata”. A falta de visibilidade do enfermeiro – e de seu potencial diante da imprensa – foi ilustrada pelas autoras com o depoimento de um de seus entrevistados.

Fui fazer uma matéria e então descobri que a principal autoridade em amamentação aqui na cidade era uma enfermeira, não era um médico. Foi muito engraçado porque nesta ocasião eu trabalhava no jornal e a matéria era específica sobre amamentação e obviamente que eu fui primeiro a pediatras, ginecologistas. (apud Kemmer; Silva, 2007)

Em estudo exploratório (Santos, 2011) que visava compreender compreender as razões que impossibilitavam a presença de enfermeiros como fontes de informação para a imprensa, apresentamos um questionário com questões fechadas e abertas ao público de interesse: jornalistas da grande imprensa especializados na cobertura dos assuntos de saúde. Ficaram evidenciados, por meio das palavras utilizadas nas respostas à questão aberta, os reflexos da representação social do enfermeiro:

Para mim o enfermeiro sempre foi o auxiliar do médico.

É o profissional que presta serviços auxiliares aos de um médico em um hospital. Um auxiliar na cirurgia, no atendimento.

[...] auxílio ao tratamento em geral prescrito pelo médico, como dar orientações, ministrar remédios, entre outros [itens].

Gustavo Brivio (2011), ao tratar das representações sociais nos processos de comunicação, destaca que, segundo Moscovici, a representação sempre busca emprestar alguma familiaridade ao que é novo, em oposição ao que é preestabelecido.

O preestabelecido se sobrepõe ao novo, produzindo, ou melhor, reproduzindo certas concepções anteriores, inclusive as preconceituosas. Observando essa dinâmica, Moscovici (2009) afirma que a tensão presente entre o familiar e o não familiar sempre se resolve em favor do já conhecido, uma vez que, no social, a conclusão se coloca à frente das premissas, invertendo o raciocínio da lógica clássica. (Brivio, 2011, p.114)

Assim, não surpreende a representação do enfermeiro realizada pelos jornalistas entrevistados. Jamais mencionam o enfermeiro individual e autonomamente, mas sempre como uma figura acessória e subordinada ao médico. Aqui, de acordo com os conceitos de Moscovici apresentados por Brivio, entendemos que o preestabelecido – e legitimado – é o conhecimento médico. O enfermeiro real, autônomo, que não atua em relação de subordinação ao médico e que possui um corpo teórico sólido a respeito dos temas da saúde, não encontra lugar nas representações sociais que os jornalistas entrevistados alimentam a respeito da categoria.

Concluída essa breve revisão da bibliografia sobre as representações sociais dos enfermeiros, entendemos que o discurso dos enfermeiros, para a imprensa, não é um simples “informar a respeito de temas relevantes”. Antes, parece-nos ser uma complexa combinação entre a identidade profissional do enfermeiro e questões de seu reconhecimento e suas representações sociais.

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Comunicação pública: interlocuções, interlocutores e perspectivas

Capital social, reconhecimento e a ressignificação das