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Dizer que o ataque é o único caminho para a sobrevivência é uma descrição limitadora que não situa o sujeito como agente livre e propositivo de suas próprias decisões e ações. Quando a suspeita é situada como antecedente da ação e legitimada como norma, a disposição

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para doar é limitada e o exercício da reciprocidade fica constrangido pela perda da crença na confiança e na promessa. As relações passam a ser regidas, assim, por regras apriorísticas de autodefesa. A corrupção das instituições e a violência privada operam recursivamente, transformando as pessoas e o contexto, contribuindo para a legitimação de jogos nos quais os fins justificam os meios. As linhas que se seguem foram dedicadas a reflexões sobre as possibilidades que se fecham quando a suspeita antedece à confiança.

Desde o nascimento o ser humano é recebido em um ambiente social no qual os membros de sua espécie reagem linguisticamente aos estímulos que os rodeiam. O homem, propõe Rorty em sua concepção sobre a construção da subjetividade, conhece a si mesmo e os mundos que habita em relações de causa e efeito, construindo seu conhecimento a partir da maneira como lida com informações ambientais que modificam o estado anterior das coisas, num movimento experimental contínuo de reação ao meio (Costa, 1997) e de atualização constante de si mesmo.

Essa postura em Rorty que Ramberg descreve como naturalismo pragmático (Ramberg, 2004, p.1-2) recupera noções de subjetividade e linguagem darwinianas, que situam o homem em igualdade entre os demais seres naturais. Assim como os demais seres vivos, os humanos reagem ao ambiente utilizando-se de suas habilidades naturais. A linguagem dos humanos, semelhante à habilidade das abelhas para fazer o mel, é a habilidade natural através da qual o homem descreve e constroi realidades, incluindo as realidades sobre si mesmo. A subjetividade, ao invés de ser um atributo fixo posse do indivíduo, é um efeito da linguagem e só existe nas descrições que fazemos de nós mesmos e dos outros a partir de trocas comunicativas com os demais.

O que fazemos ou somos é sempre causado por coisas ou eventos de diversas ordens. Relações causais podem ser explicadas por diferentes justificativas (motivacional, social, regras grupais), mas a justificativa depende da descrição que se faz do evento, que é um particular passível de redescrição (Davidson, 1974). A agressão letal é um evento circunscrito a um momento e lugar, mas as descrições e justificativas são variáveis, e é nesse ponto em que a vulnerabilidade e o nivelamento descendente operam conduzindo a construção de crenças e teorias que servem de regras e explicações para as ações baseadas na inevitabilidade e na fatalidade.

O isolamento e o castigo de quem viola as normas de convivência de uma dada comunidade, seja no âmbito das relações afetivas ou no âmbito legal, talvez fossem medidas viáveis e suficientes se fosse possível encapsular o problema e removê-lo do ambiente assepticamente, sem deixar marcas, feridas, histórias por contar. Mas, mesmo que isso fosse de alguma maneira possível, não seria solução para nossa natureza relacional. Ocorre que homens e mulheres são também esposos e esposas, filhos e filhas, irmãos e irmãs, alunos em escolas, colegas de trabalho, vizinhos, enfim, membros de comunidades que constituem e nas quais, ao mesmo tempo, se constituem como sujeitos, e nas quais a violência pode ser novamente reproduzida (Ponce Antezana, 2012).

Na busca por uma formulação em psicologia clínica para descrever como a linguagem opera nessa transformação contínua do indivíduo em sua relação com o meio, Araújo e Morgado (2006) propõem o que nomeiam como “enlace pragmático”. Considerando que a linguagem produz efeitos que podem alterar estados anteriores do sujeito, propõem que respondemos nas conversas e discursos nos quais estamos inseridos a partir de um movimento de conexão e continuidade entre um ponto da nossa rede subjetiva, constituída de crenças e desejos, e o discurso do outro.

Pensemos, como seria, conforme escreve Costa (2007, p.7) sobre a concepção de promessa e confiança em Winnicott, se tivéssemos de suspeitar sem nunca poder confiar. Pensemos nos enlaces e respostas prováveis guiados pela suspeita, pelo medo. Pensemos nas formas em que experiências passadas, crenças e teorias construídas a respeito do que se acredita ter diante, desejos e interesses, se articulam numa resposta singular e pertinente ao momento, intencional, ainda que o sujeito não saiba quais são suas razões. A resposta ocorrerá a partir desse enlace, mesmo que não se saiba por quê.

Suspeitar sistematicamente do Outro, imputando-lhe o desejo de nos fazer mal significaria lidar com um estado mental totalmente incompatível com o equilíbrio psíquico.

Que mundo relacional é possível construir e habitar quando a premissa é a desconfiança? Como é possível construir uma sociedade justa e próspera quando a hostilidade é o enquadramento provável para a ação mesmo nas instituições que foram desenhadas para nos proteger? Que descrições de nós mesmos e do outro se constroem quando um jornalista se refere a uma execução num bairro nobre como amostra de que a violência também está nas ruas dos “bacanas”? Que precepção de segurança é possível ter quando a polícia é atacada nas ruas por uma rede comandada por criminosos convictos e encarcerados e a corrupção e práticas de extorsão por parte de agentes públicos contra as famílias de detentos é apontada como motivo da crise?

Voltemos aos números destacados no início deste texto e às reflexões feitas por Zaluar, que relembra que não existem na história do Brasil “traumas indeléveis”que justifiquem um milhão de homicídios nos últimos trinta anos e que as taxas de óbito por violência letal continuem se mantendo como mínimo estáveis, quando já são extremamente altas. Voltemos ainda para o dado que reforça que o motor das taxas de homicídio no Brasil afeta primeiramente a população com idade entre 14 e 25 anos. E que a população jovem é a mais castigada na história da epidemiologia no Brasil.

(...) se sempre tivéssemos sido frustrados em nossas legítimas expectativas, nenhum medo da morte nos levaria a prometer o que quer que fosse ou a perdoar quem quer que fosse. (Costa, 2007, p.7)

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ao aniquilamento está o Outro que doa o necessário e o adequado para o exercício da criatividade. Sem a dádiva do Outro, “o sujeito ficaria paralisado no mundo interior de suas fantasias ou se esgotaria no trabalho inútil de vencer obstáculos humanamente intransponíveis”. Somos capazes de prometer porque aprendemos ao longo da vida que muitas promessas que nos foram feitas foram cumpridas, e que muitas falhas puderam ser reparadas ou perdoadas. Confiar primeiro e só eventualmente nos decepcionarmos e perder a confiança é uma premissa psicológica dificilmentre refutável, reitera Costa.

A desconfiança e a suspeita não são prévias, portanto, são perdas da disposição primeira à confiança e à promessa que governam a vida em grupo. As dinâmicas no ambiente podem propiciar a formação de capital social de efeitos positivos se as instituições geram confiabilidade e se não há âmbitos de desorganização (Millán e Gordon, 2004, p.717). A reciprocidade permite estabilizar expectativas na interação, pois é das expectativas que surge a reciprocidade. As expectativas fundadas na suspeita e na confiança levarão, portanto, ao exercício da reciprocidade em direções opostas.

Fico com Costa (2007, p.6) e com a ideia proposta por ele de que violência é tudo aquilo que nos faz perder a confiança no Outro e, portanto nos impede de exercer o poder de prometer e perdoar. Perdão e promessa não estão revestidos, aqui, de nenhum atributo excepcional. O perdão serve para que nos tornemos responsáveis pela liberdade que exercemos no passado e a promessa para que possamos nos responsabilizar pela liberdade no futuro. São pontes para a confiança e reciprocidade tão caras e necessárias para o bem comum.

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