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ENQUADRAMENTO TEÓRICO

S ER D OCENTE H OJE : Q UESTÕES P ROBLEMATIZANTES DA D OCÊNCIA NO E NSINO S UPERIOR

4. O quarto predicado defendido por Shulman como atributo da profissão prende-se com a existência de uma comunidade profissional responsável, que tem como principais atribuições

1.3. A Especificidade do Espaço de Intervenção na Área da Formação de Professores

No contexto do ensino superior deparamo-nos com um grupo singular de docentes: docentes cuja missão profissional é a de preparar profissionalmente os professores de outros níveis de ensino. Por facilidade poderemos designa-los de formadores de professoresiv ainda que tal

designação mereça discussão mais alargada do que a que agora nos interessa.

Utilizamos a expressão formador de professores para nos referirmos a todos aqueles que exercem profissionalmente essa actividade na formação inicial de professores, de forma sistemática e como ocupação principal, ao nível do ensino superior, independentemente das componentes de formaçãov a que estão afectos.

Às particularidades anteriormente enunciadas relativamente aos docentes que actuam no espaço do ensino superior, acumulam-se outras especificidades para quem se situa na área da Formação de Professores.

Em primeiro lugar não podemos deixar de referir as duas grandes vias de acesso ao ensino superior para se tornar professor de professores: ou foi um bom professor em escolas de outros níveis de ensino (valorização da experiência no campo), ou é um perito numa determinada área disciplinar (valorização do saber disciplinar), não havendo nem num caso nem no outro mecanismos de formação profissional formal para o ensino neste sector e pouco ou nenhum apoio e acompanhamento sistematizado por parte dos colegas mais experientes (Lanier & Litle,1986; Lunenberg & Willemse, 2006). Diversos estudos revelam ser esta uma realidade partilhada por quase todos os países europeus e também nos EUA (Lunenberg & Willemse, 2006).

A literatura existente sobre o desenvolvimento profissional daqueles que actuam na formação de professores é extremamente escassa. Não deixa de ser curioso que se saiba tão pouco sobre o desenvolvimento profissional deste grupo uma vez que estes passam a maior parte do seu tempo envolvidos no desenvolvimento profissional de professores de outros níveis de ensino (Clegg, 2003; Grossman, 2006; Lanier & Little, 1986; Smith, 2003; Villegas-Reimers, 2003) quer seja na formação inicial, quer seja na formação contínua ao fornecerem “ferramentas

para a reflexão e aprendizagem contínua” (Smith, 2003, p.202).

A perplexidade estende-se à desvalorização dada à componente da formação pedagógica como condição para o exercício profissional na formação de professores ao nível do ensino superior (Leite & Ramos, 2010; Lunenberg & Willemse, 2006; Masetto, 2003).

51 Salientando este paradoxo Leite e Ramos (2010) sustentam que se “admite que a docência

possa ser exercida sem a existência de um conhecimento pedagógico-didáctico que a própria instituição universitária reconhece como necessário para o exercício da docência nos outros níveis de ensino” (p.33). No mesmo sentido Tardif (2000) refere que:

“na universidade, temos com muita frequência a ilusão de que não temos práticas de

ensino, que nós mesmos não somos profissionais do ensino ou que nossas práticas de ensino não constituem objectos legítimos para a pesquisa. Esse erro faz que evitemos os questionamentos sobre os fundamentos de nossas práticas pedagógicas, em particular nossos postulados implícitos sobre a natureza dos saberes relativos ao ensino. Não problematizada, nossa própria relação com os saberes adquire, com o passar do tempo, a opacidade de um véu que turva nossa visão e restringe nossas capacidades de reacção. Enfim, essa ilusão faz que exista um abismo enorme entre nossas “teorias professadas” e nossas “teorias praticadas”: elaboramos teorias do ensino e da aprendizagem que só são boas para os outros, para nossos alunos e para os professores” (p.20).

Retomando a ideia de bom profissional de Pozo e Monereo (2003b) como aquele que toma decisões fundamentadas e ajustadas às condições e características particulares dos contextos em que exerce a sua actividade não podemos deixar de nos interrogar sobre o que se passa no caso particular dos docentes que intervêm na formação inicial de professores e que é, neste sentido, bastante original.

Assim, encontramos um conjunto de docentes preparados desde a sua formação inicial para o exercício de uma das vertentes da sua actividade profissional – a produção de saber da sua área disciplinar, e que vão desenvolvendo essa dimensão para progressão na carreira, através da obtenção de graus académicos e da elaboração de materiais de divulgação científica, entre outros.

Para o exercício da outra grande dimensão da sua actividade profissional - a docência, encontramos professores sem nenhuma preparação formal ou com formação orientada para o ensino mas obtida no quadro de outros níveis de escolaridade. Mesmo os mecanismos previstos na legislação portuguesa pouco valorizam esta dimensão. Deparamo-nos, então, como defendem Smith (2003) e Lunenberg e Willemse (2006), com processos de desenvolvimento profissional dependentes da iniciativa individual do professor, sendo praticamente inexistentes os mecanismos institucionais sistemáticos de apoio ao desenvolvimento profissional no âmbito da docência.

Assim, ser professor no contexto do ensino superior, e na Formação de Professores em particular, conduz-nos a uma situação complexa, para não dizer confusa. Com efeito, encontramos docentes, no âmbito da formação inicial, que ocupam espaços profissionais de

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ensino, mas cuja originalidade nos percursos de entrada, quer pela formação recebida, quer pela identidade profissional assumida, pouco se identificam com o que são.

A maior parte das pessoas que trabalham na formação de professores não recebeu nem irá receber formação formal para o exercício das funções docentes (Korthagen, 2000; Lanier & Little, 1986; Smith, 2003), vão-se formando tardia e progressivamente (Perrenoud, 1998). Mesmo aqueles que, na sua formação, foram preparados para o ensino em outros níveis de escolaridade têm pouco ou nenhum treino, nomeadamente, para trabalhar com adultos. Para muitos formadores de professores, a passagem da escola para a universidade acarreta mudanças e exigências imprevisíveis na medida em que a transição para uma carreira diferente ocorre, na maior parte dos casos, sem grande assistência, orientação e apoio (Loughran, 2009; Lunenberg & Willems, 2006).

Neste sentido Loughran (2009) alerta para o perigo dos formadores de professores, mesmo os que foram professores noutros níveis de ensino, tal como acontece com os alunos futuros professores, poderem reproduzir na sua prática pedagógica aquilo que eles próprios experimentaram na sua formação.

Apesar de muitos formadores de professores terem sido eles próprios professores nas escolas, as destrezas, o conhecimento e as competências que caracterizam um professor de “sucesso” podem ter-se perdido, ou podem “ser voluntariamente ignoradas” na transição para o contexto do ensino superior (Loughran, 2009). Também pode dar-se o caso de que estes professores procurem proporcionar aos seus formandos a sua própria prática e experiências de sucesso, podendo resultar numa simples apresentação de uma “gama de actividades de ensino” pouco desafiantes para o aluno, resultante de uma visão “artesanal” da formação e traduzindo-se no reforço de modelos não profissionais (Loughran, 2009) que não se coadunem com as actuais expectativas de promoção do envolvimento activo do aluno na sua aprendizagem (Tillema, 2005).

Considerando inegável o efeito da modelação formador-formando, Loughran (2009) defende que a formação de professores tem que corresponder a “pratica aquilo que apregoas”, requerendo um compromisso de envolvimento dos docentes e dos formandos e de partilha de perspectivas sobre todos os aspectos da pedagogia. Continua argumentando que a formação deve ser um lugar de reflexão e de investigação (não de imitação e de reprodução) que conduza a uma tomada de consciência da existência de aspectos visíveis e invisíveis na

53 experiência pedagógica que podem influenciar a compreensão que o aluno tem da prática (Loughran, 2007, 2009).

Na literatura, um pouco por todo o lado, encontramos defensores da necessidade de uma pedagogia da formação de professores, corrente que advoga a inevitabilidade de se aceitar a exigência dos professores ensinarem de maneira proporcional às expectativas que têm dos seus alunos.

Actuar na formação de professores implica uma compreensão do ensino que ultrapassa ser um bom professor em sala de aula (Loughran, 2006). “Na verdade, não são só os professores que

precisam de saber investigar para enfrentar com êxito os problemas da sua prática profissional – são também os formadores de professores que, com mais humildade do que têm feito até aqui, precisam de saber avaliar a qualidade do seu trabalho e estudar os problemas com que se deparam os seus formandos” (Ponte, 2005, p.1479).

Como efeito, o formador de professores tem que ser capaz não só de executar mas também de teorizar e avaliar a prática (Loughran, 2006), o que pressupõe alguma confrontação formal da actividade que desenvolve. No ensino superior e, particularmente na formação de professores, esta ideia é fundamental porque aqui para muitos docentes o ensino e a aprendizagem são simultaneamente conteúdo e método (Beaty, 1998).

Parece assim ser essencial investir no desenvolvimento profissional dos professores do ensino superior, entre os quais se situam os que actuam na formação de professores. Será esta uma das principais vias para melhorar a profissão; manter o interesse na profissão, crescendo pessoal e profissionalmente e progredindo na carreira (Lunenberg & Willemse, 2006; Smith, 2003; Villegas-Reimers, 2003). Com efeito, uma profissão tem controlo e reconhecimento social de especialista quando detém o domínio do conhecimento de uma área específica (Smith, 2003). Os que formam professores são (ou deverão ser) especialistas na formação de professores, pelo que não deixa de ser contraditório exigir-se aos professores de outros níveis de ensinos que tenham formação ao nível de mestradovi (integrando componente científica, pedagógica e prática) e que se aceite que os docentes nesse mesmo mestrado não tenham formação profissional senão na dimensão científica da sua especialidade de ensino disciplinar. Reconhecemos a importância de dar atenção ao processo de ensinar a ensinar, nomeadamente quando se verifica a dificuldade em produzir efeitos nas perspectivas e práticas de ensino e de aprendizagem dos futuros professores (Gibbs, 2006; Loughran, 2009). Contudo, não deixa de ser paradoxal o facto de os professores do ensino superior, nomeadamente os que se ocupam

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na formação de professores, terem pouco tempo ou pouca energia e até pouco conhecimento para reflectirem sobre a sua prática (Lunenberg & Willemse, 2006) de modo a poderem analisar a natureza problemática do ensino. No ensino superior considerar o ensino nesta perspectiva, constitui a base da teorização da prática (Grossman & McDonald, 2008; Imbernóm, 2000; Loughran, 2009).

Apesar de diversos autores apontarem para a necessidade dos programas de formação de professores reflectirem abordagens coerentes e holísticasvii, na prática parece haver uma tendência para que os programas de formação de professores sejam organizados tendo em conta perspectivas curriculares comuns, repartindo a formação em áreas - disciplinas base, as disciplinas de metodologia e as práticas em contextos reais de trabalho – sendo por vezes difícil conseguir o trabalho de articulação necessário entre estas, pela pouca tradição de trabalho colaborativo e transdisciplinar entre os professores como tínhamos visto (Loughran, 2009; Perrenoud, 1998).

Tradicionalmente há uma grande distinção entre áreas curriculares constituintes dos planos dos cursos de formação inicial de professores, muitas vezes distintas não só pela natureza do ensino, mas também pelo estatuto dos professores que trabalha em cada uma delas (Loughran, 2009). Parece haver uma tendência para reconhecer um grande rigor académico aos professores das disciplinas de base e as disciplinas de metodologia tendem a ser vistas como “práticas” sendo remetidas muitas vezes para professores requisitados que trabalham nas escolas (Loughran, 2009), recorrentemente sem inserção profissional nas instituições de ensino superior, nomeadamente na sua cultura científica.

Dá-se uma tal divisão do trabalho entre teóricos e práticos, sendo os primeiros encarregues da formação geral, pouco articulada com a realidade prática, pouco compatível com uma abordagem transversal do ensino (Perrenoud, 1998).

Com efeito, não deixa de ser estranho, tratando-se de uma formação profissionalizante, que alguns destes formadores – os teóricos - nunca mais tenham estado numa sala de aula desde que deixaram a escola na condição de alunos ou, tendo sido professores noutros níveis de ensino, não (re)visitem assiduamente os contextos dos futuros professores que ajudam a formar. Extraordinariamente, muitas vezes uns e outros, aqueles que foram professores noutros contextos e aqueles que nunca o foram, mantém-se afastados daqueles que serão os futuros contextos profissionais dos seus alunos.

55 Perrenoud defende assim a necessidade de uns e outros funcionarem como mediadores entre o terreno e a teoria, contribuindo para a construção de competências dos futuros professores. Como salienta, “esta lógica de ensino terá consequências sobre a identidade, o modo de

intervenção e competências dos formadores, e também sobre a sua cooperação e a natureza da divisão do trabalho entre si, no interior das unidades e entre elas” (Perrenoud, 1998).

Sem procurar enveredar pela problemática em si da formação de professores, reconhecemos que esta ideia da compartimentação das áreas disciplinares na formação de professores está longe de estar resolvida, como teremos aliás oportunidade de reflectir a propósito dos efeitos do Processo de Bolonha na formação de professores no nosso país, o que por conseguinte poderá não ser o contexto mais favorável para (re)pensar os docentes formadores de professores como um corpo unificado em torno de uma identidade e preocupações comuns. Em suma, a problemática que levantamos neste ponto não é de fácil resolução. Sendo a procura da formação permanente, como nos relembra Elton (2009), um traço da cultura profissional dos docentes do ensino superior, embora mais na área científica disciplinar a que se encontram vinculados, poderemos inferir que se trata aqui de dar valor e destaque à componente docente, até aqui seriamente descurada. Implica adoptar uma “ideia de

profissionalismo, isto é, a consideração da docência universitária como uma actividade profissional complexa que requer uma formação específica” (Zabalza, 2004, p.145).

Se no caso da formação de professores de outros níveis de ensino a institucionalização da formação foi entendida como uma conquista no sentido da profissionalização da actividade docente (Nóvoa, 1987), no caso do ensino superior o tema divide e gera controvérsia.

Embora se assista a movimentações em diversos países, na criação de organismos vocacionados para a formação dos professores do ensino superior (como veremos no capítulo IV) e respectiva certificação (Baume & Baume, n.d.; Beaty, 1998; Gibbs, 2004), uma via defensável para diversos autores (Crowe, 2008; Cruz Tomé, 2003; Elton, 2009; Gibbs, 2004; Imbernón, 2000; Zabalza, 2004), outros há que alertam para os perigos desta visão de profissionalismo remetida ou acantonada em processos de certificação (Davidson, 2004). Pese embora partilhemos a ideia de que um exercício profissional autónomo, responsável e consciente, assente em saberes específicos que mobilizados nas diversas situações que o professor vive, se traduzam em competências profissionais, reconhecemos também ser ainda prematuro, devido à escassez de investigação na área, defender qualquer processo de profissionalização, ou até de formação. Voltaremos a esta discussão no último capítulo.

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2.A METAMORFOSE DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL NUM CONTEXTO EM TRANSFORMAÇÃO