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ENQUADRAMENTO TEÓRICO

S ER D OCENTE H OJE : Q UESTÕES P ROBLEMATIZANTES DA D OCÊNCIA NO E NSINO S UPERIOR

4. O quarto predicado defendido por Shulman como atributo da profissão prende-se com a existência de uma comunidade profissional responsável, que tem como principais atribuições

3.1. Os Saberes Profissionais do Professor

Depreende-se da discussão que temos vindo a desenvolver a inevitabilidade de proceder a uma revisão das concepções de profissionalismo e profissionalidade docente associadas ao exercício profissional no contexto do ensino superior. Daqui resulta uma acentuada convicção da necessidade de todos os professores do ensino superior deterem um conhecimento profissional sobre o ensino (Alarcão & Tavares, 2001; Ambrósio, 2001; Cunha, 2010; Elton, 2009; Escudero, 1999; Esteves, 2010; Estrela, 2010a; Fernandes, 2010; Imbernón, 2000; Leite & Ramos, 2010; Masetto, 2003; Roldão, 2005; Tardif, 2000; Zabalza, 2004, 2007). Assim, não se trata de implementar uma nova cultura de formação permanente, traço distintivo da cultura dos académicos no âmbito da sua área disciplinar (Escudero, 1999), mas antes alargá- la a outra vertente da sua actuação: o ensino.

Na linha de pensamento que temos vindo a expor nos pontos anteriores, torna-se incontornável abordar a questão dos saberes profissionais no sentido em que é condição para que se aceite o estatuto de exercício profissional. Como salienta Estrela (n.d.) “em qualquer

profissão ´e a detenção de um saber específico que suscita o seu reconhecimento social e legitima o monopólio do seu exercício pelos profissionais", sendo o domínio desses saberes e

o exercício constante de actualização dos mesmos um traço da sua profissionalidade.

A pertinência do tema dos saberes profissionais, facilmente demonstrável pela proliferação de trabalhos sobre o mesmo, prende-se também com a relação entre as categorizações de saber e as concepções de profissionalidade docente, bem como com os paradigmas de formação adoptados. Como destaca Estrela (n.d.)

“queremos apenas salientar que a representação dos saberes profissionais não é inócua

nas suas consequências, fazendo parte do mundo das representações dos docentes sobre a sua profissão, liga-se simultaneamente à legitimação de estatutos e papéis, à delimitação da sua profissionalidade e à construção da Identidade profissional”.

Outra ideia que temos vindo a sustentar é a da natureza multidimensional do profissionalismo e profissionalidade docente no espaço de actuação do ensino superior, e que por conseguinte nos remete para uma maior complexidade na aproximação aos saberes que balizam a sua profissionalidade. Esta multidimensionalidade é perceptível no reconhecimento das diferentes vertentes da profissão em que o académico é chamado a actuar (investigação, ensino, gestão, extensão, entre outras); no envolvimento de dimensões pessoais (nomeadamente cognitivas, emocionais, biológicas) e de dimensões contextuais (espácio-temporais, relacionais,

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organizacionais) que se interpenetram e ainda de uma dimensão ética que as atravessa; bem como na multiplicidade das fontes geradoras de saber e na própria natureza plural dos saberes que mobiliza.

Parece-nos que o debate em torno da natureza e fontes do conhecimento profissional do professor terá o mérito de, não só nos permitir desvendar o que é particular da acção do saber

agir profissional do professor, como deve também sustentar as abordagens potenciadoras de

aprendizagem profissional inerentes ao desenvolvimento profissional (Borko & Putnam, 1995; Buttler, 2005; Cruz, 2006; Day, 2001; Feixas, 2002, 2004; Fernandes, 2010; Marcelo, 2009; Robertson, 1999; Sachs, 2009; Smith, 2003; Sykes, 1999), tema que retomaremos no último capítulo. Neste sentido, autores como Escudero (1999) e Marcelo (2009) consideram fundamental responder a questões como: sobre o que devem versar os processos promotores de desenvolvimento profissional? Quais os conhecimentos relevantes para a docência? Como se adquirem?

Sendo o conceito de saber polissémico, surge na literatura referindo-se a conhecimento, pensamento, teorias, crenças, concepções, perspectivas, entre outros (Estrela, n.d.). Como demonstra um estudo da mesma autora, a expressão saberes profissionais também assume diferentes significados entre os próprios profissionais.

Importa, então, clarificar ser nosso entendimento que saber é aquilo que é construído pelo sujeito e que resulta da interacção entre informação (exterior ao sujeito) e conhecimento (integrado no sujeito) (Legroux cit. Altet, 2001). São os saberes de natureza diversa que mobilizados em contexto, em resposta às situações, e associados a atitudes e motivações, sustentam as competências profissionais (Esteves, 2009, 2010; Le Boterf, 1997; Paquay et al., 2001b).

As questões que agora levantamos têm merecido a atenção de investigadores, particularmente no que se refere aos saberes necessários para o exercício docente em outros níveis de ensino que não o superior. Contudo, não podemos deixar de reconhecer o contributo desses estudos, no sentido em que nos servem de “apoios para referenciar saberes profissionais para o

exercício docente universitário” (Leite & Ramos, 2010, p.34).

Dada a multiplicidade de tipologias presentes na literatura, associadas a diferentes perspectivas de profissionalização (Estrela, n.d.), optámos por assinalar algumas das propostas mais emblemáticas nesta área, reconhecendo como assinala Perrenoud et al.

77 (2008b) que se trata de matéria onde não existe consenso, onde proliferam teorias e tipologias distintas, estando ainda por resolver a conceptualização dos diversos saberes em jogo.

Perscrutando a literatura encontramos diferentes designações para aquilo que nos parecem ser saberes da mesma natureza, pelo que procuraremos assinalar alguns pontos comuns entre as diferentes abordagens e salientar as peculiaridades que as distinguem.

Podemos encontrar sistemas de categorização mais genéricos, transversais ao exercício profissional em diversas áreas, que apontam essencialmente para quatro tipos de conhecimento: declarativo ou proposicional (saber que); funcional (actuações fundamentadas na compreensão; procedimental (baseado em destrezas, carecendo de fundamentos declarativos de nível superior); conhecimento condicional (inclui o conhecimento procedimental e conhecimento declarativo de ordem superior), conhecimento funcional (resultante da combinação dos anteriores, torna-se flexível e de grande alcance) (Gibbs, 2006).

A tipologia proposta por Lee Shulman (2004c) é uma das que maior protagonismo tem tido na literatura. Procurando encontrar o “paradigma perdido” (Shulman, 2004c, p.198) o autor visa ressaltar a distinção entre o conhecimento e a pedagogia, esta última a chave da competência docente.

Reflectindo sobre os saberes inerentes à actividade docente dos professores em geral, Shulman (2004c) sustenta que o professor no desempenho da sua actividade docente utiliza e articula os diferentes tipos de conhecimento, provenientes de diversas fontes. Refere-se ao conhecimento proposicional (baseado na investigação e disseminado através da formação formal), ao conhecimento de casos (informações sobre situações de sucesso e que decorre do contacto com a prática e, portanto, muito ligado à experiência individual) e, por último assinala o conhecimento estratégico (desenvolvido em situações dilemáticas em que tem que tomar decisões e justificá-las).

O primeiro consistirá no quadro de princípios teóricos, máximas práticas e de normas reguladoras da sua actuação, decorrentes quer do seu próprio sistema de valores, quer dos normativos que enquadram a sua actividade profissional. O segundo tipo de conhecimento vai sendo construindo pelo professor a partir da sua prática, através da análise que faz de casos e de eventos específicos bem documentados, protótipos que permitem ilustrar as máximas ou princípios que regem a sua prática, e de acontecimentos passados. Por fim, o conhecimento estratégico diz respeito ao conhecimento necessário para a resolução de problemas novos, que

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exigem soluções complexas e inovadoras e que podem até fazer emergir princípios contraditórios complexificando o juízo profissional e a tomada de decisão.

Na sua proposta, Shulman (2004c) conceptualiza classes distintas, embora inter-relacionadas, de saberes, nomeadamente:

os saberes relativos aos conteúdos disciplinares, designadamente, o reportório de saberes (a quantidade de informação, níveis de organização e de relação entre esses saberes) de que o professor dispõe. Este tipo de saberes têm que ser objecto de uma transformação didáctica que os torne em saberes para ensinar.

Os saberes pedagógicos do conteúdo, conhecimentos pedagógicos específicos sobre a aprendizagem dos alunos e inerentes ao ensino de conteúdos disciplinares específicos, isto é, os conhecimentos necessários para tornar o conhecimento de que dispõe ensinável.

Os saberes relativos ao curriculum, abrangendo as competências necessárias para a organização curricular desde a concepção dos programas, implicando a selecção e articulação quer horizontal, quer vertical dos conteúdos; a selecção de recursos, entre outros.

Para além destes saberes directamente relacionados como o conteúdo, o autor faz ainda referência a outros tipos de saberes que considera fundamentais:

os saberes pedagógicos gerais para o ensino, que se reportam aos conhecimentos genéricos de organização e de gestão de sala de aula;

os saberes relativos ao conhecimento dos alunos e das suas características, nomeadamente no que diz respeito aos seus mecanismos de desenvolvimento e aprendizagem;

os saberes relativos aos contextos institucionais, nomeadamente de organização, de gestão e de financiamento;

os saberes relativos às finalidades, aos valores e à filosofia da educação, numa perspectiva histórica e social, entre outras.

A proposta de Tardif et al. (1991) tem também merecido bastante destaque na discussão em torno dos saberes profissionais do professor. São propostas quatro categorias: os saberes disciplinares e os saberes curriculares, estas duas contempladas na proposta de Shulman e que se prendem com o tipo de conhecimento docente. As restantes categorias propostas enquadram duas fontes desse conhecimento profissional: os saberes da formação profissional, saberes esses que são veiculados pelas instituições de formação e que têm a sua origem em doutrinas pedagógicas largamente difundidas e nos resultados da investigação científica (episteme); os saberes da experiência, reportando-se a saberes construídos pelo próprio a partir das suas experiências (phronesis) e o saber-agir estratégico que se constrói através de

79 um processo de transformação e integração dos saberes de natureza teórica e saberes de natureza prática (praxis).

A episteme é entendida como o conhecimento tradicional, cientificamente validado que é frequentemente considerado objectivo e intemporal, a phronesis, correspondente à sabedoria prática que deriva do entendimento de situações e casos específicos (Korthagen et al., 2001) e que como também sustentam Mitchell e Mitchell (2005) muitas vezes se torna conhecimento tácito que é necessário tornar explícito. Assim, entende-se que a actividade profissional deverá corresponder à praxis entendida enquanto “acção bem informada pela teoria, e teoria

contrastada e gerada em e desde o compromisso da melhoria” (Escudero, 1999, p.148).

A categorização dos saberes avançada por Gauthier et al. (1998) contempla seis tipos de saberes necessários ao ensino, relacionando-os com as suas fontes. Referem, assim, os

saberes disciplinares (produzidos pelos investigadores nas diversas disciplinas científicas) e

os saberes curriculares patentes na tipologia de Shulman, indicando ainda os saberes das

Ciências da Educação (que permitem atender às várias facetas da educação e da actividade

docente). A prática surge como fonte do que denominam saberes experienciais produzindo pressupostos e argumentos que não são verificados por métodos científicos mas que se transformam em saberes da acção pedagógica a partir do momento em que são discutidos com outros e testados na prática.

Encontramos ainda na literatura outros contributos para a compreensão dos saberes profissionais dos professores, que ampliam as tipologias supracitadas referindo, por exemplo, os saberes da tradição pedagógica, que reflectem a evidência de que o professor transporta consigo saberes construídos antes mesmo da sua formação ou da entrada na profissão, bem como uma imagem da própria profissão (Gauthier et al, 1998; Kagan, 1992; Kelchtermans, 2009, Zeichner & Gore; 1990).

Outros autores realçam igualmente a necessidade de associar a estas perspectivas a noção de que o ensino compreende uma esfera emocional (ex. Day, 2007; Day & Sachs, 2004; Feiman- Nemser, 2008; Fullan & Hargreaves, 2000; Hargreaves, 1995, 2001) implicando por isso a necessidade do professor deter um conhecimento sobre si (Day, 2007; Day & Sachs, 2004) construído através da reflexão sobre os seus valores, propósitos, emoções e relações.

Especificamente, sobre o que contribui para o conhecimento didáctico do conteúdo, surgem diversas propostas na literatura. Um exemplo recente é proposto por Morine-Dershimer e

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Kent (cit. Marcelo, 2009, p.18) que, partindo do Modelo de Grossman, procura incorporar novos contributos da investigação, como revela a figura que se segue:

Fig. A- Categorias que Contribuem para o Conhecimento Didáctico do Conteúdo

(adap. Marcelo, 2009, p.18) O conhecimento didáctico do conteúdo corresponde “à espécie de conhecimento do conteúdo

mais genuinamente docente no sentido em que incorpora uma destreza profissional, a transformação do conhecimento académico em conteúdo ensinável, que pode caracterizar a tarefa profissional do professor” (Cruz, 2006, p.11).

Um dos principais problemas da educação enquanto profissão reside no pouco reconhecimento desse saber especializado ou como referem Tardif et al. (1991) numa desvalorização do saber docente que reduz o professor muitas vezes ao estatuto de artesão. Cruz (2006) destaca assim, quatro aspectos essenciais desse conhecimento didáctico do conteúdo, a saber: a compreensão da matéria; pensar nos conteúdos do ponto de vista do aluno; a representação do conteúdo; e a organização dos alunos para favorecer a aprendizagem.

Como salienta o autor, isto implica uma diversidade de conhecimentos (nomeadamente sobre a aprendizagem dos alunos, dos recursos, das estratégias e métodos de ensino-aprendizagem) por forma a tornar o docente apto a tornar os conteúdos ensináveis e aprendíveis.

Conhecimento Didáctico Procedimentos de Avaliação de resultados Fins educativos, propósitos e valores Conhecimento do Currículo Conhecimento do Conteúdo Conhecimento Pedagógico Conhecimento sobre os alunos e sua aprendizagem Conhecimento de contextos específicos Conhecimento de contextos educativos gerais

81 Da perspectiva assinalada por Cruz (2006) ressaltam três implicações básicas para a determinação de critérios de profissionalidade: em primeiro lugar, a convicção de que o conhecimento do conteúdo não é o suficiente. É necessário o conhecimento didáctico do conteúdo para que se possa ensinar. Em segundo lugar, o reconhecimento da existência de uma multiplicidade de metodologias, cabendo ao professor saber como proceder à selecção das mais adequadas em função dos contextos, das características e das necessidades dos alunos. Por fim, a presunção de que o domínio do conhecimento didáctico que facilita o ensino e a sua flexibilidade se desenvolve com a experiência, na prática, embora a prática por si só não garanta o seu desenvolvimento.

Numa concepção construtivista do conhecimento é ainda necessário incluir não só o conjunto de saberes codificados e sistemáticos mas também, ao mesmo tempo, marcos interpretativos de que os sujeitos dispõem para lhe conferir significados, atribuições, percepções e relações. Referimo-nos ao carácter autobiográfico na construção dos saberes (Escudero, 1999; Russel, 2007).