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ENQUADRAMENTO TEÓRICO

S ER D OCENTE H OJE : Q UESTÕES P ROBLEMATIZANTES DA D OCÊNCIA NO E NSINO S UPERIOR

4. O quarto predicado defendido por Shulman como atributo da profissão prende-se com a existência de uma comunidade profissional responsável, que tem como principais atribuições

1.2. A Especificidade da Actuação Profissional no Espaço da Educação Superior

1.2.1. A Harmonização de Papéis Múltiplos e os Processos Identitários

Começamos por assinalar a natureza multifacetada do exercício profissional dos académicos, os quais se vêem confrontados com a necessidade de responder a três grandes papéis profissionais: no âmbito do ensino, da investigação e ao nível da gestão das instituições (seja na participação em órgãos de gestão, seja no desempenho de cargos de coordenação). No exercício de todos estes papéis espera-se destes profissionais elevados padrões de qualidade, responsabilidade e autonomia, como preconizam documentos emanados de organismos internacionais (por exemplo a Recomendação da Unesco, 1997; a Magna Charta

Universitatum, 1988; a Declaração de Sorbonne, 1988) ou normativos nacionais como por

exemplo os Estatutos da Carreira Docente do sector universitário (Decreto-Lei n.º 205/2009, de 31 de Agosto) e do sector politécnico (Decreto-Lei n.º 207/2009 de 31 de Agosto) e o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES, Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro).

A estas funções mais tradicionais acrescem hoje novas atribuições, decorrentes dos processos de transformação experienciados no ensino superior associados à nova concepção de universidade de serviço (Bourdoncle & Lessard, 2002), designadamente: o incremento da vertente de negócio (nomeadamente procura de financiamentos, estabelecimento de parcerias e protocolos) e das relações inter-institucionais (de âmbito nacional e transfronteiriço) que ampliam e complexificam cada vez mais o exercício profissional neste contexto (Zabalza, 2004).

As dimensões do profissionalismo e da profissionalidade do académico, parecem ser fortemente marcadas por uma identidade profissional tripartida entre o eu professor, o eu

investigador e o eu gestor/decisor; não sendo fácil a sua harmonização. A atenção aos

processos identitários revela-se crucial pois, como salienta Marcelo (2009) “é através da

nossa identidade que nos percebemos, nos vemos e queremos que nos vejam” (p.11).

O conceito de identidade profissional reveste-se de uma grande complexidade, conduzindo a múltiplas acepções e gerando correntes de pensamento distintas. Entendida como uma das

39 esferas da identidade do adulto a identidade profissional ou identidade ocupacional (Dubar, 1995) tem sido alvo de diversos estudos.

Procurando clarificar a que é que nos reportamos quando nos referimos a identidade profissional, utilizamos a sistematização apresentada por Rodgers e Scott (2008). Com base na revisão das concepções de identidade que se encontram contemporaneamente na literatura, estes autores assinalam quatro assunções básicas comuns:

Em primeiro lugar a convicção de que a identidade depende e se forma em múltiplos contextos: social, cultural, político e histórico. Podemos encontrar esta ideia na argumentação de Carrolo (1997), o qual considera que a ontogénese do indivíduo é essencialmente um processo de interacção comunicativa, afirmando que a construção da identidade do eu acompanha a estruturação do mundo. Assim, entende-se o fenómeno da construção identitária como a individuação resultante da socialização (Carrolo, 1997; Huber & Clandinin, 2005; Kelchtermans, 2009, Marcelo, 2009; Zeichner & Gore, 1990).

No mesmo sentido, Kelchtermans (2009) reconhece que o processo através do qual os professores dão sentido a si próprios e à sua profissão nunca se realiza num vazio, sendo inegáveis as interpenetrações do(s) contexto(s) e das dimensões espacial (cultura/organização) e temporal (biografia própria e das instituições). Assim, “o desenvolvimento da identidade

ocorre no terreno do intersubjectivo e caracteriza-se como sendo um processo evolutivo, de interpretação de si mesmo enquanto indivíduo enquadrado em determinado contexto.”

(Marcelo, 2009, p.11).

É consensual a ideia de que a identidade profissional (depende tanto da pessoa como do contexto e que é múltipla) não resulta da adopção de características profissionais prescritas (conhecimentos e atitudes) (Beijaard et al., 2005b). Assim, os professores distinguem-se entre si em função da importância que dão a essas características, desenvolvendo uma resposta própria ao contexto.

Em segundo lugar Rodgers e Scott (2008) referem como entendimento geral o princípio de que a identidade se forma na relação e em relação com os outros e envolve emoções, ideia também apontada por Beijaard et al. (2005b), por Marcelo (2009) e por Nias (1989). Sustentando as suas afirmações no trabalho de Gee (2001) Rodgers e Scott (2008) sublinham a importância das relações, relações essas que atravessam todas as perspectivas da identidade, isto é, entende-se que para ter uma identidade temos que ser reconhecidos pelos outros como um tipo particular de pessoa. A identidade não é um atributo fixo de uma pessoa, mas antes de

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mais um fenómeno relacional, que evolui individual e colectivamente (Beijaard et al., 2005b). Logo, atender aos efeitos que as relações que estabelecemos (com os colegas, com os alunos, com as escolas, com os mentores, com a comunidade, entre outros) provocam em nós, nomeadamente em termos emocionais, é imprescindível, sendo apontado por diversos autores como um dos aspectos críticos na formação da identidade (Britzman, 1993; Hargreaves, 2001; Day, 2007).

É igualmente comum às diferentes abordagens, a noção de que a identidade está em mudança, é instável e múltipla, uma vez que, como vimos, é moldada por relações e forças externas do contexto tornando-se “necessariamente múltipla, em processo e passível de ser desafiada” (Rodgers & Scott, 2008). Neste sentido, Gee (cit. Rodgers & Scott, 2008) advoga que o tipo de pessoa que é reconhecido por uns num determinado contexto espacio-temporal, pode mudar de contexto para contexto, sendo ambígua e instável ou, como afirma Carrolo (1997) admite-se a existência de uma identidade para si e de uma identidade para outrem. Também Beijaard et al. (2005b) ao sustentarem que a identidade não é um atributo fixo, apontam para o desenvolvimento da identidade num campo subjectivo, como um processo em marcha, como um processo de interpretação de si próprio enquanto um certo tipo de pessoa e o reconhecimento como tal num dado contexto, em resposta à interrogação ‘quem sou eu neste momento?’.

O último predicado transversal às concepções de identidade contemporâneas reside no facto desta envolver a construção e reconstrução do(s) significado(s) através da história de vida, que é pessoal e decorre ao longo de uma trajectória temporal (como também salientam Beijaard et al.,2005b; Cohen-Scali, 2003; Huber & Clandinin, 2005; Kroger, 2004). A formação da identidade é preconizada como algo em curso (e por isso inacabado) que envolve interpretações e reinterpretações das experiências que o sujeito vai vivendo (Rodgers & Scott, 2008) (ideia de construção narrativa do self, que os autores atribuem a Spences, 1984), e que envolve quer a dimensão profissional, quer a dimensão pessoal (Huber & Clandinin, 2005). A natureza dinâmica e biográfica da identidade (defendida também por Beijaard et al., 2005b; Carrolo,1997; Kelchtermans; 2009; Marcelo, 2009) conduz-nos a uma perspectiva construtivista da identidade, e ao seu entendimento como um produto de sucessivas socializações, como tínhamos anotado nos pressupostos anteriores. Parece, assim, ser essencial atender ao carácter estruturante da identidade (Carrolo, 1997). Neste sentido, a estratégia identitária individual não pode ser dissociada dos mecanismos de mobilidade social e, por conseguinte, dos referidos processos de socialização, “compreendendo a dupla

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articulação entre trajectórias individuais condicionadas e sistemas estruturados (identidade virtual e identidade real) e, no interior do sujeito entre trajectória vivida e trajectória futura”

(idem). Deste modo preconiza-se a coexistência de uma identidade para si ou desejada (produto de um processo biográfico) e a identidade para outrem ou atribuída (decorrente de um processo relacional).

Discutir a identidade dos professores do ensino superior, o que a configura e a sua relação com a sua profissionalidade parece-nos incontornável. Apesar desta convicção, a particularidade desta temática no contexto do ensino superior (contexto que aparenta agudizar algumas das problemáticas profundamente revisitas na literatura a propósito da profissão docente em geral, nomeadamente revelando fenómenos associados a uma identidade profissional mais difusa, nos professores em geral encontrando-se uma identidade mais una) não parece merecer grande atenção por parte dos investigadores.

As questões inerentes à construção de uma identidade profissional são complexificadas pelas características do contexto do ensino superior. Referimo-nos, entre outras, à ausência de preparação pedagógica como requisito para o exercício profissional e a desvalorização da componente de ensino face à da investigação, com o consequente desinvestimento (dos indivíduos e das instituições) em termos de preparação/formação nesse domínio.

A ausência de preparação para o exercício da função docente leva a que o ensino superior seja apontado como um espaço onde os seus actores possuem escassa identidade profissional (Brancato, 2003; Cruz Tomé, 2003; Nuñez, 2001b; Zabalza, 2004, 2007). Como refere Zabalza (2007) “não fomos realmente preparados para sê-lo” (p.69), podendo ajudar a compreender um fenómeno apontado frequentemente na literatura como inerente à construção da identidade profissional do docente no ensino superior: a tendência para que o professor se identifique mais com os interesses da sua área disciplinar e menos com a prática de ensino (Brancato, 2003; Cruz Tomé, 2003; Davidson, 2004; Edgerton, 2004; Newman, 2001; Nuñes, 2001b; Perrenoud, 1998; William, 2008; Zabalza, 2004, 2007).

Como expressa Zabalza (2004)

“a docência universitária resulta notavelmente contraditória relativamente aos seus

parâmetros de identidade sócio-profissional. É frequente que os professores universitários se identifiquem como tal ‘sou professor universitário’ na medida que é signo de alto estatuto social. Mas esse reconhecimento (pelo menos no que se refere aos seus componentes docentes) resulta bastante marginal na hora de valorar os elementos a partir dos quais se constrói e desenvolve a dita identidade” (p.107).

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Procurando não descurar uma visão holística da natureza do trabalho profissional dos académicos, conscientes que distinguir o que é pura docência de outros ângulos da actividade profissional (investigação, gestão, entre outras) não é fácil (Zabalza, 2004), tentaremos prosseguir a nossa reflexão analisando as problemáticas inerentes à complexidade que resulta da intersecção das diversas vertentes da actividade profissional:

i. Um dos problemas decorre do protagonismo que a componente de investigação (na área disciplinar) tem face às restantes, quer no que diz respeito à sobrevalorização desta componente para efeitos de progressão na carreira (Alarcão & Tavares, 2001; Brancato, 2003; Cid-Sabucedo et al., 2009; Clegg, 2003; Cunha, 2010; De Ketele, 2003; Escudero, 1999; Feixas, 2002, 2004; Fernández, 2010; Flores, 2007; Gibbs, 2004; Katz & Coleman, 2002; Kreber, 2002; Mérida, 2006; Nuñez, 2001a; Pinto, 2006; Pozo & Monereo, 2003b; Zabalza 2004; entre outros), quer pelo próprio reconhecimento e prestígio social que lhe está associado (Elton, 2009; Garcia López, 2006; Nuñez, 2001; Pozo & Monereo, 2003b; Ramsden, 2004).

A dificuldade não passa só pela ausência de sensibilidade política para este tema, reconhecendo-se que também não está simplificada a tarefa de determinação de indicadores da qualidade docente consensuais e objectivos (Escudero, 1999).

Ser professor faz parte do que significa ser um académico. No entanto ‘ser professor’ é uma parte que compete ou coexiste com outras identidades, a maior parte das vezes mais próximas da figura do investigador (Knight, 2002). Isto deve-se ao facto da ideia de sucesso, estar, na actual cultura do ensino superior, associada à produtividade científica, avaliada pela quantidade de artigos publicados (Archer, 2008). Como revela o estudo de Archer (2008) parece existir um conflito entre as pressões das instituições no sentido dessa produtividade e a noção de profissionalismo interiorizada pelos docentes, a partir da qual vão construindo a sua identidade profissional. Contudo, como salienta este processo de construção identitária “não é

suave, directa, linear, mas pode envolver conflito e instâncias de inautenticidade, marginalização e exclusão” (Archer, 2008, p.387).

Para autores como Escudero (1999) e Gibbs (2004) é premente criar mecanismos de revalorização da componente de ensino, nomeadamente mecanismos para recompensar a excelência no ensino, e também para valorizar a implicação dos docentes na construção de conhecimento profissional no âmbito do ensino (Kreber, 2002). Também Ramsden (2003) assinala que esta revalorização não significa associar a falta de reconhecimento a um ensino

43 de fraca qualidade, mas antes a necessidade de criar mecanismos de apoio ao desenvolvimento do ensino.

ii. Outro factor decorre da necessidade de gerir o tempo e o investimento pessoal reservado a cada tipo de solicitação, o que poderá gerar dilemas complexos, nomeadamente quando há requisitos para responder em termos de progressão na carreira.

Refira-se a este propósito ao paradoxo da produtividade (Leich & Day cit. Day, 2006), isto é, a necessidade de responder a problemas imediatos (actividades de manutenção) que acabam por consumir a maior parte do tempo e energia do professor, sobrando pouco tempo para investir em actividades de desenvolvimento, especialmente ao nível da docência (Brancato, 2003; Day, 2006; Escudero, 1999; Loughram, 2009; Lunenberg & Willemse, 2006). Isto implica tendencialmente o envolvimento em actividades de formação e desenvolvimento direccionadas especificamente para a área de conhecimento a que estão afectos (Escudero, 1999, Zabalza, 2007; Elton, 2009).

O desequilíbrio do investimento pessoal (e também institucional) no desenvolvimento profissional entre as duas grandes dimensões da actividade dos académicos – ensino e investigação - traduz-se numa tensão institucional ainda por resolver (Clegg, 2003; Pozo & Monereo, 2003b; Zabalza, 2004). “A actividade docente frente à actividade de investigação

resulta insignificante para a obtenção de subvenções, promoção académica, recompensa salarial e até na auto-estima e reconhecimento social (...) o que resulta no debate se é preciso formar professores ou é preferível preparar investigadores” (Lucarelli cit. por Pozo &

Monereo, 2003b).

iii. Um terceiro factor prende-se também com problemática da articulação entre o que o professor ensina, como ensina e a investigação que faz, permanecendo ainda hoje por resolver o desafio que se coloca ao ensino superior da indissociabilidade entre o que se ensina e o que se investiga (Cunha, 2005; Elton, 2009; Navarro, 2007; Nuñez, 2001b; Robertson & Bond, 2005; Woods, 1995). Como refere Cunha (2005) parece que se admite a existência de espaços académicos que só ensinam e outros que ensinam e pesquisam, contraditório face ao que se preconiza actualmente como modelo de ensino superior.

iv. Por fim, é de salientar que, não só se recomenda cada vez mais a interligação entre investigação e ensino nas diferentes áreas, como também o desenvolvimento de perspectivas interdisciplinares. Esta tarefa nem sempre é potenciada pelas estruturas e culturas organizacionais típicas como as convencionais estruturas departamentais por área científica,

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reconhecendo-se que a cultura institucional tradicional tende a valorizar e a promover preferencialmente espaços disciplinares de trabalho (Cunha, 2005; Elton, 2009; Escudero, 1999; Hadar & Brody, 2010; Zabalza, 2004, 2007).

Apesar de a investigação (entenda-se investigação na área disciplinar específica) continuar a ser central na actividade da maioria dos docentes ao nível do ensino superior, são vários os autores que apontam para uma cada vez maior preocupação com a componente de ensino e, como tal, com a preparação pedagógica dos docentes (Cid-Sabucedo et al., 2009; De Ketele, 2003; Elton, 2009; Esteves, 2010; Estrela, 2010a; Fernandes, 2010; Flores, 2007; Garcia López, 2006; Leite, 2010b; Leite & Ramos, 2010; Navarro, 2007; Trindade, 2010; Zabalza, 2004).

Seja por imposições externas ao ensino superior decorrentes de uma maior pressão e exigência por parte dos clientes, seja por influência dos sistemas políticos (veja-se o Processo de Bolonha na Europa), seja por uma maior preocupação da própria comunidade académica e científica, a pedagogia do ensino superior ganha protagonismo, denotando-se cada vez mais a existência de movimentos de pressão visando a recondução da componente de ensino a uma posição de maior relevo (Zabalza, 2004).

1.2.2. A Reinterpretação do Significado de Autonomia: Entre a Independência e o