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ENQUADRAMENTO TEÓRICO

S ER D OCENTE H OJE : Q UESTÕES P ROBLEMATIZANTES DA D OCÊNCIA NO E NSINO S UPERIOR

4. O quarto predicado defendido por Shulman como atributo da profissão prende-se com a existência de uma comunidade profissional responsável, que tem como principais atribuições

2.1. A Função da Universidade nas Sociedades Actuais

Vivemos presentemente um incontornável processo de mudança civilizacional. Deparamo-nos com um ritmo vertiginoso de descoberta, de inovação, de divulgação, de movimentação de pessoas e bens. O tempo ganha outra expressão, parecendo que o que é novo hoje, amanhã será já desinteressante e ultrapassado.

O contexto de globalização cultural em que nos encontramos supõe o estabelecimento de interconexões entre países ou partes do mundo, possibilitando o acesso a novas formas de viver, de pensar e de fazer, com o consequente estabelecimento de laços de interdependência económicos, sociais e políticos, visíveis em áreas como a defesa, a cultura e a ciência, a educação, a tecnologia e as comunicações, os hábitos de vida e as formas de expressão (Sacristán, 2002).

São indubitáveis os efeitos decorrentes da facilidade de acesso à informação, das potencialidades criadas pelos avanços tecnológicos e científicos, das repercussões económicas, políticas e sociais da globalização em todos os sectores da sociedade, não podendo o ensino superior manter-se absorto e imperturbado.

O ensino superior experimenta, neste início de século, uma profunda pressão política e social para que se empenhe na sua própria transformação, dando assim resposta a um conjunto de desafios que lhe são colocados pelas sociedades contemporâneas. Assiste-se a um movimento de europeização ou até de mundialização do ensino superior, como nos referem Bourdoncle e Lessard (2002), movimento que tem como dimensões centrais o alargamento da profissionalização, da empregabilidade e da mobilidade. Para Morgado (2001) esses desafios decorrem essencialmente de quatro fontes de pressão: das mudanças civilizacionais, das novas exigências de formação e educação, da massificação do ensino superior e do alargamento das lógicas de formação permanente a todas as áreas. Observemos cada um destes fenómenos com maior detalhe:

i. As mudanças civilizacionais que caracterizam a era da pós-modernidade (Hargreaves, 1998) decorrentes de alterações económicas, políticas e sociais a que se vem assistindo, configuradas na crescente globalização dos mercados e na aceleração da descoberta e difusão do conhecimento (Altbach, 2003; Escudero, 1999; Imbernóm, 2000; Milliken, 2004; Ramsden, 2004; Santos, 2010; Zabalza, 2004), traduzem-se na alteração da relação

57 conhecimento-sociedade-universidade (Leite & Ramos, 2010; Lessard, 2006; Light & Cox, 2001), onde a esfera pública, privada e académica cada vez mais trabalham em conjunto (Etzkowitz, 2001, OCDE, 2011).

A conceptualização de ensino superior de Bourdieu (1988) de uma sociedade composta por numerosos campos estruturados em espaços sociais distintos cujo funcionamento é relativamente autónomo face a outros campos, não se compadece com as exigências actuais. Não é possível assumir hoje o campo do ensino superior como um desses campos, caracterizado por uma estrutura especializada constituída pelas instituições de ensino superior, sistema de valores e modos de funcionamento próprios e cujas funções são relativamente autónomas de outros campos como do campo da política e do campo económico.

Na concepção de Bourdieu o capital envolvido na actividade do ensino superior seria o capital académico, marcadamente intelectual e cultural, e não económico ou político. No entanto, como salienta McSherry (2006) o ensino superior vive uma “segunda revolução académica”, decorrente da emergência de uma “ economia global centrada no conhecimento”. Com efeito, parece haver um novo contrato social a ser negociado entre a Universidade e a sociedade, assente na ideia que a transferência do conhecimento da academia para o “sector produtivo” deve ser conseguida de formas directas em vez de indirectas, resultando numa capitalização do conhecimento (Etzkowitz, 2001; Etzkowitz & Leydesdorff, 2001) ou na “mercadorização

da formação” (Esteves, 2010, p.46).

Etzkowitz (2001) aponta para uma mudança na relação entre o mundo académico e o conhecimento considerando que “o avanço do conhecimento era anteriormente a principal

preocupação da universidade, a capitalização do saber a preocupação da indústria”

(Etzkowitz, 2001, p.141), situação que se está a alterar provocando a aproximação dos modelos de funcionamento das universidades a modelos corporativistas, onde o valor do conhecimento está directamente ligado à sua utilidade económica, conduzindo, neste sentido, a novas estruturas de relação entre universidade-governo-industria (modelo de tripla hélice) (Etzkowitz, 2001; Etzkowitz & Leydesdorff, 2001; Sutz, 2001).

O argumento de que os mercados exercem pressão sobre o ensino superior, pelas exigências sociais, políticas ou económicas já referidas, pode conduzir ao que Jamieson e Naidoo (2006) denominam por “erosão do capital académico” (p.878) e à valorização do capital económico com consequências na estrutura organizativa, nos sistemas de valores e nos modelos de funcionamento das instituições. Para estes autores trata-se de um processo de transformação

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do processo educacional para que este passe a ter um valor económico. Assim, de acordo com os autores, espera-se que “a educação seja reconceptualizada como uma transacção

comercial, o docente como o produtor e o estudante como consumidor” (Jamieson & Naidoo,

p.878).

A presença cada vez mais visível dos poderes económicos na universidade provoca uma reorientação das instituições para uma abordagem mais pragmática, quer ao nível da formação (oferta destinada para responder ao mercado de trabalho) (Santos, 2010; Zabalza, 2004), quer ao nível da investigação (investigar nos assuntos mais e rentáveis e fáceis de colocar no mercado) (Zabalza, 2004).

A pressão dos governos tem-se expandido, revelando um incremento dos sistemas de gestão

top dow (Elton, 2009). A própria legislação é disso sinal, modificando gradualmente o

espectro de atribuições e expectativas sobre o ensino superior, lançando novos reptos sociais a que este deverá dar resposta e determinando as condições em que se supõe que deva funcionar (Zabalza, 2004).

Como vimos anteriormente as mudanças preconizadas têm também impacto nas concepções de liberdade e de autonomia tradicionalmente atribuída ao ensino superior (OCDE, 2011). Os processos de convergência internacional de que daremos conta mais adiante, que passam pela acreditação e homologação dos diplomas, representam uma renúncia a práticas tradicionais em favor de sistemas de aproximação a parâmetros comuns (Nóvoa, 2010; Zabalza, 2004). Outro impacto que a globalização está a ter na transformação dos sistemas de ensino superior, especialmente na Europa (Mérida, 2006) e na América Latina (Cunha, 2010), prende-se com um conjunto de condicionalismos ou aspectos críticos de natureza ideológica e económica. Aponta-se, nomeadamente para o predomínio de uma ideologia de cariz neoliberal, que se traduz, por um lado, no favorecimento da iniciativa privada, por outro, no desinvestimento no sistema público (Mérida, 2006; Santos, 2010). As instituições vêm-se assim obrigadas a alterar as suas dinâmicas institucionais, procurando sobreviver através quer de processos de fusão (aumentando a dimensão e a competitividade), quer do alargamento das parcerias e convénios com o sector empresarial e com o mercado de trabalho (Zabalza, 2004).

ii. A segunda pressão provém das novas exigências de educação e formação para aquisição de competências necessárias ao enquadramento na referida sociedade de informação, resultando numa revisão das finalidades da formação, bem como numa reconfiguração do papel do aluno. Como salientam Leite e Ramos (2010) “a universidade encontra-se em transformação,

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reconhecendo que a lógica tradicional não consegue possibilitar as relações necessárias para um ensino centrado na aprendizagem e no desenvolvimento da autonomia e de competências de intervenção dos estudantes” (p.29).

O entendimento do papel do ensino superior assume sentidos muito distintos do tradicionalmente associado a este nível. O repto que é colocado ao ensino superior é o de munir o aluno de habilidades exigidas pela sociedade de conhecimento, por um lado, e, por outro, dotá-lo de capacidades profissionais para se integrar no mercado de trabalho (Cunha, 2010; Salvat, 2007; Zabalza, 2004). Valoriza-se uma formação potenciadora do desenvolvimento de competências profissionais e transversais e, por conseguinte, polivalente e flexível, capaz de fomentar aptidões para a resolução de problemas e de adaptação às diversas situações (Zabalza, 2004). Acresce ainda uma orientação para uma formação global do aluno, promotora do desenvolvimento nas mais diversas dimensões que capacite o aluno para assumir um compromisso social e ético enquanto cidadão.

A denominada globalização cultural representa igualmente um novo desafio para as instituições, ao estabelecer um marco interdisciplinar mais amplo para compreender as realidades. Neste sentido, torna-se necessário conceber currículos flexíveis, superar uma concepção reducionista das diferentes matérias e afastar a excessiva atomização do saber (Elton, 2009; Fernandes, 2010; Mérida, 2006; Zabalza, 2004), obrigando como salienta Fernandes (2010) a “…romper com um habitus profissional, sustentado no princípio da

individualização e do conservadorismo numa lógica disciplinar…” (p. 101).

Assiste-se a uma inegável transição no ensino superior, afectando os paradigmas de ensino- aprendizagem perfilhados e, consequentemente o papel do aluno, o papel do professor, da formação inicial e da formação ao longo da vida.

Mais ainda, o ritmo de mudança do conhecimento, ao pôr em causa as estabelecidas topologias do saber (Alarcão & Tavares, 2001), bem como a competitividade decorrente das exigências dos mercados de trabalho, impedem o ensino superior de se acantonar nas tradicionais concepções de carreira (Cunha, 2010; Zabalza, 2004), dificultando a definição de perfis profissionais e estabelecendo pressão sobre as instituições de ensino superior para que sejam capazes de antecipar e dar resposta a essas necessidades (Mérida, 2006).

iii. A massificação do ensino superior, e consequente introdução de novos públicos neste nível de ensino, desconstruiu a ideia de ensino superior para uma eliteviii intelectual e socioeconomicamente privilegiada.

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Ao mesmo tempo, esta massificação levantou alguns quesitos: trata-se de saber se a globalização não poderá dar origem ao efeito contrário, agudizando as desigualdades e assimetrias, sendo apontada como premente a reposição de verdadeiros mecanismos de igualdade de oportunidades (Mérida, 2006; Rasmussen et al., 2009).

Como consequência desta massificação, há dificuldade em pensar num perfil único de estudante do ensino superior (Alarcão & Gil, 2004; Esteves, 2010; Fernandes, 2010; Ramsden, 2004; Salvat, 2007; Zabalza, 2004). É possível encontrar alunos com percursos extremamente diversificados, desde os que terminam a escolaridade normal e se dedicam inteiramente ao estudo a par com adultos que conciliam o trabalho com a formação. Acresce a isto a proliferação do “aluno internacional” (Gibbs, 2006). Esta diversidade implica uma capacidade para dar resposta a diferentes necessidades a todos os níveis (cognitivos, emocionais, entre outros) o que acarreta novos desafios para os docentes (Cunha, 2010; Elton, 2009; Fernandes, 2010; Zabalza, 2004).

A massificação lançou novos reptos ao ensino superior sem “o necessário investimento

pedagógico que essa situação exigia” (Cunha, 2010, p.66), sendo claro que a resposta a

novos públicos não pode permitir a manutenção dos tradicionais modos de funcionamento, os quais Cunha (2010) aponta como sendo excludentes por natureza.

iv. A quarta fonte de pressão apontada por Morgado (2001) diz respeito ao alargamento de uma lógica de formação ao longo da vida a todas as áreas de conhecimento e sectores profissionais como resposta ao mundo do trabalho, cada vez mais competitivo, exigente e em constante evolução/transformação (Imbernón, 2000; Mérida, 2006; Webster-Wright, 2009; Zabalza, 2004). Um exemplo ilustrativo desta configuração da formação está patente no texto da Magna Charta Universitatum:

“a tarefa das universidades de disseminar o conhecimento junto das novas gerações

implica que, no mundo de hoje, estas devem igualmente servir a sociedade como um todo; e que o futuro da sociedade, em termos culturais, sociais e económico, requer particularmente um investimento na educação contínua” (MCU, 1988).

A extensão da lógica da formação ao longo da vida aos mais diversos sectores, lançou a necessidade do ensino superior rever os seus graus e diplomas, nomeadamente a sua duração e os planos de estudos, para ir ao encontro das necessidades quer da formação inicial, quer da adaptação dos profissionais em exercício a novas funções, quer ainda para aquisição ou desenvolvimento de competências profissionais, por via do alargamento dos saberes ou por via de uma maior especialização na sua área de actuação.

61 Em síntese, o ensino superior parece ver-se confrontado com a necessidade de rever a sua missão, sofrendo pressões dos mais diversos sectores, com interesses marcadamente distintos e, por vezes, conflituosos.

Tomando como referência tripla categorização das concepções de Universidade proposta por Bourdoncle e Lessard (2002) encontramos a Universidade Liberal (remonta ao período medieval), em que o saber é valorizado por si só, e em que se assume como sua função a formação generalista de intelectuais, não acolhendo formações de cariz profissionalizante. Os autores referem ainda a Universidade de Investigação, constituída por comunidades de investigadores na procura da verdade, entende que o verdadeiro ensino é conseguido através da relação ensino-investigação (e não através da discussão de ideias inertes). Assume o seu papel na formação de cariz profissional, perspectivando a necessidade de uma atitude científica na formação profissional, indispensável para a construção e domínio dos conhecimentos considerados eficazes.

Por fim, é referida a Universidade de Serviço (do progresso social ou do saber útil), onde a missão passa a ser não só a criação e difusão do saber, mas a sua aplicação para o progresso social. Trata-se essencialmente de passar de uma concepção de universidade assente fundamentalmente em duas funções – ensinar e investigar – para um modelo de três funções, onde a universidade passa a ser um produtor directo de bens e serviços (Etzkowitz, 2001, Etzkowitz & Leydesdorff, 2001; Sutz, 2001) passando a receber atenção relativamente aos

inputs que dão à economia e ao desenvolvimento social (Etzkowitz, 2001).

Desta actual tripla missão da Universidade resulta, quanto a nós, uma visão mais alargada e, simultaneamente, mais unificadora das diversas estruturas ou subsistemas de ensino superior. A investigação já não é apanágio só de algumas e a formação profissional só de outras, pelo que se é absolutamente incontornável para situar historicamente a evolução da sua missão falar de Universidades.

Os desafios que se impõem ao ensino superior (nas suas diversas estruturas) conduzem ao que Bourdoncle e Lessard (2002) definem como um diálogo e um conflito simultâneos entre as três concepções acima referenciadas. Entre vozes que se insurgem contra o que consideram ser a descaracterização do papel da Universidade e vozes que apelam para uma renovação do lugar e funções da academia na sociedade actual, certo é que a mudança é inevitável.

Decorrente dos fenómenos de globalização e das inerentes pressões sociais e económicas, assistimos a mudanças nas políticas do sector, sendo ilustrativo o Processo de Bolonha e a

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criação de um espaço de convergência europeu, espaço esse instituído para esbater as barreiras transfronteiriças que ainda pudessem permanecer, facilitando a mobilidade de professores, investigadores, alunos e profissionais.

Denota-se nesta iniciativa, como dissemos, uma certa homogeneização das políticas educativas, decorrente do ajustamento às referidas exigências económicas e sociais, assim como a disseminação de discursos comuns em torno da qualidade e da acreditação (Alarcão & Gil, 2004; Escudero, 1999; Mérida, 2006; Nóvoa, 2010) com a consequente uniformização de ciclos de estudo e a criação de organismos de acreditação e avaliação, aspectos que passaremos a analisar com mais detalhe no ponto que se segue.