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ENQUADRAMENTO TEÓRICO

S ER D OCENTE H OJE : Q UESTÕES P ROBLEMATIZANTES DA D OCÊNCIA NO E NSINO S UPERIOR

4. O quarto predicado defendido por Shulman como atributo da profissão prende-se com a existência de uma comunidade profissional responsável, que tem como principais atribuições

2.2. A Criação do Espaço Europeu de Ensino Superior

2.2.2. Desafios ao Exercício Docente no Contexto do E.E.E.S.

É incontornável o reconhecimento das implicações do denominado Processo de Bolonha, processo esse que impõe mudanças significativas ao ensino superior que trespassam a vida das instituições nas mais diversas dimensões. Abstendo-nos de enunciar os evidentes esforços de reajustamento organizacional associados à plena implementação das orientações de Bolonha, deter-nos-emos com maior detalhe nas implicações deste processo para o exercício profissional dos docentes do ensino superior.

Para os docentes em particular, podemos destacar a título de exemplo o reforço de uma cultura da internacionalização (Zabalza, 2004) visível quer no incentivo à mobilidade, quer nas métricas associadas a processos de avaliação e acreditação ao nível da produção científica.

Mais especificamente, e com maior relevância neste trabalho, evidenciamos as mudanças preconizadas na orientação do ensino-aprendizagem inerentes à criação do EEES, as quais nos parecem colocar alguns desafios à maioria dos docentes e que, no dizer de Garcia López (2006) permitiram colocar em “primeiro plano a dimensão docente no ensino universitário” (p.547), sendo a qualidade da docência hoje apontada como uma prioridade estratégica para as instituições de ensino superior já não na Europa mas em todo o mundo (Cid-Sabucedo, et al., 2009).

A concretização do Processo de Bolonha configura-se assim num espaço de transição e desafio ao exercício profissional daqueles que actuam no espaço do ensino superior. Por um lado, preconiza-se um cenário de actuação profissional onde a dimensão pedagógica assume um lugar de destaque, com a adopção generalizada do paradigma, indicação que surge pela primeira vez expressa no Comunicado de Londres, (2007) sendo posteriormente reforçada no

69 Comunicado de Leuven and Louvain-la-Neuve (2009). Por outro lado, o reforço da pressão social determina a necessidade de prestação de contas e de garantia de qualidade do ensino (entre outros aspectos), impelindo a actividade docente para um escrutínio público mais acentuado do que até aqui. Estaremos, então, perante uma nova profissionalidade, onde a vertente docente ganha maior protagonismo, reconfigurada a propósito de uma nova forma de conceber o ensino e a aprendizagem e, uma profissionalidade mais pública, mais aberta ao juízo externo.

A mudança de paradigma

Assiste-se em Portugal, tal como no resto da Europa, a um discurso em prol da “mudança de

paradigma educacional” (Flores, 2007, p.10), intenção transversal a diferentes níveis de

ensino e aos seus professores (Boucher & Desgagné, 2001; Raymond, 2001a; Tillema, 2005), em que se preconiza, entre outros aspectos, o abandono do ensino magistral como estratégia de ensino preferencial (Esteves, 2010; Flores, 2007; Simão et al., 2003) e a aceitação do aluno gestor do seu processo de aprendizagem.

Bolonha propõe uma mudança de paradigma de universidade e de ensino, resultando em profundas alterações ao nível das políticas, da ética e da pedagogia na vida universitária (Estrela, 2010a). O ensino superior, e aqueles que nele actuam, vêem-se impelidos a abandonar as tradicionais formas de encarar a relação professor-saber-aluno, (como revela o estudo de Cid-Sabucedo et al. (2009) as actuais práticas docentes podem maioritariamente ser enquadradas no modelo de ensino tradicional centrado no professor), sendo chamados a adoptar novos paradigmas de formação portadores de novas concepções de ensino- aprendizagem e de alternativas às concepções de professor e de aluno dominantes.

Uma das consequências imediatas preconizadas pela criação do EEES prende-se com a recusa em manter como paradigma dominante o paradigma pedagógico da instrução, como se lhe refere Trindade (2010) e o abandono da crença “de que basta ensinar bem para que alguém

possa aprender” (p.84).

A inevitabilidade desta mudança fortemente vincada nos documentos nacionais e internacionais é também atestada de forma consensual na literatura (Alarcão & Gil, 2004; Cruz Tomé, 2003; Cunha, 2010; Esteves, 2010; Estrela, 2010a; Flores, 2007; Leite & Ramos, 2010; Mérida, 2006; Mora & Gómes, 2007; Salvat, 2007; Simão et al., 2003; Trindade, 2010; Zabalza, 2004, entre outros). “A recusa do paradigma da instrução (Trindade, 2003) é, hoje,

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enquanto objecto discursivo, objecto do mais amplo consenso no campo da educação”

(Trindade, 2010, p.82).

Esta clivagem nos modos de fazer tradicionais, apoiados no ensino magistral, em que o professor assumia o protagonismo no processo de fazer aprender, dá lugar a uma nova expectativa face ao papel a desempenhar pelo professor e pelos alunos.

A mudança que se espera que seja operada no seio da educação superior não poderá ser confundida com a total rejeição da aula tradicional, devendo antes esta passar a ser assumida como um dos dispositivos pedagógicos, entre muitos outros, e não como o único ou principal (Biggs, 2006; Esteves, 2010; Flores, 2007; Gibbs, 2006; Mérida, 2006; Salvat, 2007; Simão et

al., 2003; Trindade, 2010; Zabalza, 2007). Reconhece-se a necessidade de assumir muitas e

diferentes formas de ensinar e ajudar a aprender e de privilegiar metodologias activas em detrimento de metodologias expositivas para atender à diversidade e pluralidade dos alunos (Fernandes; 2010; Zabalza, 2004).

Mais do que uma mudança radical no papel consignado ao professor, poderemos falar de uma generalização e alargamento de uma nova perspectiva de entender o processo de ensino- aprendizagem e, consequentemente, do papel do professor e do aluno, a toda a comunidade académica. Recorrendo às palavras de Esteves (2010)

“recusamos a dicotomização passado/presente quando este serve para se assumir que

todo o ensino superior tradicional foi centrado no professor e na sua acção, e que só agora se estão a descobrir e a começar a praticar formas de superação do ensino magistral, centrando os processos formativos nos estudantes e na aprendizagem” (p.52).

Para diversos autores o paradigma que sucede ao paradigma instrucional, no qual o professor é o actor principal, detentor do saber que lhe confere autoridade, é o paradigma da aprendizagem, cabendo aqui ao professor o papel de agente facilitador, sendo consequentemente atribuído ao aluno um maior protagonismo na construção dos seus próprios saberes (Alarcão & Gil, 2004; Brancato, 2003; Cruz Tomé, 2003; Cunha, 2005, 2010; Esteves, 2010; Estrela, 2010a; Fear et al., 2003; Fernandes, 2010; Flores, 2007; Garcia López, 2006; Leite & Ramos, 2010; Mérida, 2006; Mora & Gómes, 2007; Milliken, 2004; Navarro, 2007; Salvat, 2007; Simão et al., 2003; Zabalza, 2004).

Assim, atribui-se ao professor que actua no espaço do ensino superior o papel de criador de oportunidades de aprendizagem que, de forma estratégica, contribuam para que os estudantes adquiram e desenvolvam um conjunto de skills necessários para funcionar com sucesso no mundo do trabalho (Brancato, 2003).

71 Confrontando o paradigma instrucional com o paradigma da aprendizagem Fear et al. (2003), citando Barr e Tagg (1995) a quem atribuem a designação do novo paradigma, assinalam as seguintes mudanças:

 Ao nível da missão e dos propósitos institucionais, que passam do instruir para a promoção da aprendizagem;

 nas teorias da aprendizagem, que do aluno visto predominantemente como um receptor passivo se passa a privilegiar uma perspectiva de aluno construtor activo do seu conhecimento;

 na natureza dos papéis de professores e alunos, que da visão dos professores como detentores do saber, se reenquadram todos os envolvidos no processo de ensino aprendizagem como aprendentes. Como destaca Zabalza (2004) de um perfil ideal de professor entendido essencialmente como o detentor de um alto nível de conhecimento, capaz de o transmitir aos alunos (estrutura condutivista estímulo- resposta) vai assumindo um maior destaque o papel do professor enquanto facilitador da aprendizagem (perspectiva construtivista).

Podemos ainda assinalar o reforço da indissociabilidade entre ensino e investigação, no sentido em que a própria actividade de investigação se torna um meio de ensino (Cunha, 2005).

Reflectindo sobre o impacto deste paradigma, que representa uma mudança progressiva a que se tem assistido no ensino superior Fear et al. (2003) consideram que uma questão a que se tem de atender é que não se trata da “implementação” de um paradigma assente em fórmulas únicas de fazer aprender, mas que se trata antes de mais da criação de uma cultura de aprendizagem (comunidades de aprendizagem) incorporando todos os membros dessa comunidade na descoberta de novos modos de potenciar a aprendizagem. A esta busca constante e experimentação denominam cultura do protótipo: questionamento, exploração e testagem de novas alternativas, inovação.

Para Trindade a resposta aos reptos lançados por Bolonha não passa pela adopção do paradigma da aprendizagem o qual, segundo o autor, padece de algumas fragilidades, ao não valorizar na mesma medida os três componentes do triângulo pedagógico de Houssaye (cit. Trindade, 2010). Como salienta “tem-se em conta, assim, as particularidades dos

aprendentes, mas não se valoriza, de forma explícita e como uma questão crucial, as particularidades epistemológicas e conceptuais da informação e dos objectos de estudo, o que constitui a referência do trabalho de aprendizagem dos alunos” (Trindade, 2010, p.85).

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“enquanto na pedagogia da instrução há que reconhecer a insensatez de uma perspectiva

que tende a valorizar a auto-suficiência da informação como uma crença que importa problematizar, no caso da pedagogia da aprendizagem a insensatez tem mais a ver com uma crença de sentido diferente, aquela através da qual se acredita que é possível não só estimular aprendizagens a partir, sobretudo, dos saberes dos alunos, como se estes fossem simultaneamente, uma condição, mais do que necessária, suficiente, para que tais aprendizagens pudessem ocorrer. No primeiro caso atribui-se então, primazia pedagógica à informação a divulgar, enquanto que o factor que se valoriza no segundo caso, é o aluno e as suas competências de processamento informativo” (idem, p.86).

Em alternativa ao paradigma da aprendizagem Trindade (2010) propõe o paradigma pedagógico da comunicação, o qual considera pôr em evidência e equilíbrio a relação entre o saber, o aluno e o professor.

Trindade (2010) advoga que a comunicação (interacções pedagógicas ou os processos comunicacionais) deverá ser a operação a atender por alternativa ao acto de instruir (paradigma da instrução) e à aprendizagem (paradigma da aprendizagem). Para o autor, esta perspectiva permite atender ao acto pedagógico inserido numa rede de interacções entre alunos e professores, enquadrado pelas posições e relações que cada um destes actores tem com o saber e que lhes confere distintos papéis.

Esta proposta de Trindade contempla alguns traços do modelo de ensino preconizado por Altet (2001) em que são assinaladas quatro dimensões em interacção recíproca: os alunos, o professor, o saber e a comunicação.

Para Trindade (2010) o paradigma da comunicação visa valorizar simultaneamente o papel do aluno, do saber e do professor, realçando o valor da comunicação e outorgando ao docente o papel de interlocutor qualificado.

“Neste terceiro paradigma nem os professores, nem os alunos podem ser remetidos para o

lugar do morto, o que significa que mais do que uma relação privilegiada a identificar entre dois pólos, se identificam, agora, relações de natureza mais plural, contingente e aleatória entre esses três vértices do triângulo proposto por Houssaye (1986). Relações estas que permitem identificar a comunicação, e não a aprendizagem, como a operação alternativa ao acto de instruir (…)” (Trindade, 2010, p.88).

Para Altet (2001) o ensino deve ser entendido como um processo interpessoal e intencional, assente na comunicação como meio de promoção da aprendizagem. Atribui, assim, ao professor o papel de gestor das condições de aprendizagem, abrangendo um campo de práticas diacrónica (função didáctica de estruturação e gestão dos conteúdos) e sincrónica (função pedagógica de regulação interactiva em sala de aula).

73 Em síntese podemos assinalar um conjunto de reflexos decorrentes da mudança de paradigma que temos vindo a assinalar:

i. A revisão dos papéis do professor e do aluno - Para Mérida (2006) esta viragem de paradigma implica uma perda do tradicional protagonismo por parte do professor, uma vez que se preconiza a aprendizagem centrada no aluno. A concepção de professor especialista na matéria é substituída pela de professor facilitador, capaz, como refere a autora, de demonstrar competência pedagógica e capacidade de estimular a aprendizagem dos alunos. A autoridade do professor deixa de se firmar no seu nível de erudição assentando antes na capacidade de tornar esse saber aprendível pelos alunos (Cunha, 2010; Zabalza, 2004).

Opondo-se a esta visão da perda de protagonismo do professor decorrente de um paradigma centrado na aprendizagem como alternativa ao paradigma pedagógico da instrução, mudança decorrente do “novo mandato pedagógico que o projecto de reorganização do ensino

superior, a que a declaração de Bolonha conferiu forma” (Trindade, 2010, p.81), como

vimos, Trindade aponta como via alternativa a adopção do paradigma pedagógico da comunicação.

Como resposta a este requisito de uma formação centrada na aprendizagem, a concepção do papel do aluno implica o seu comprometimento e responsabilidade na definição do seu processo de formação, competindo-lhe estabelecer as suas trajectórias, as suas metas e as opções que se lhe afigurem mais adequadas (Salvat, 2007). Neste sentido, perspectiva-se também uma maior capacidade de aprendizagem autónoma por parte do aluno (Esteves, 2010), conduzindo a uma partilha da responsabilidade entre docentes e alunos na tarefa de formar e aprender (Alarcão & Gil, 2004; Fernandes; 2010; Mora & Gómes, 2007).

Se a mudança de paradigma se afirma como uma exigência e uma necessidade para todos os docentes do ensino superior de uma forma geral, não podemos deixar de assinalar as óbvias repercussões para aqueles que têm como responsabilidade contribuir para a formação de outros professores. Com efeito, as expectativas face ao que se espera do professor em geral neste paradigma que se estabelece transversalmente em todos os níveis de ensino obrigam a que particularmente os docentes que actuam na formação de professores assumam uma dupla responsabilidade: por um lado, fazer reflectir nas suas práticas esta nova forma de pensar e agir profissionalmente e, simultaneamente, formando professores capazes de promover um ensino potenciador do envolvimento activo do aluno na sua aprendizagem (Raymond, 2001a; Tillema, 2005).

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ii. A acentuação da lógica de trabalho interdisciplinar: outra transformação decorrente deste cenário, prende-se com a revisão das finalidades inscritas nos processos de formação, vincando-se a necessidade de que estes venham a gerar mudanças substanciais nos estudantes, dotando-os quer de habilidades exigidas pela sociedade de conhecimento, quer de capacidades profissionais para se integrarem no mercado de trabalho, traduzindo-se na perda da lógica da disciplinar para passar à lógica do perfil profissional (Mérida, 2006; Salvat, 2007) e, neste sentido, a uma lógica de interdisciplinaridade pouco habitual no ensino superior (Cunha, 2010).

iii. O reforço do trabalho colaborativo: ao mesmo tempo, perspectiva-se que o ensino superior centrado na aprendizagem e numa lógica de reforço das relações interdisciplinares favoreça a criação de comunidades de aprendizagem, na linha configurada Shulman (2004d) e Marcelo (1998) entre outros, para qualquer instituição de ensino. Neste sentido, encoraja-se o trabalho colaborativo entre estudantes e professores (Fernandes, 2010; Mora & Gómes, 2007; Salvat, 2007) contrariando o predomínio da cultura do individualismo face aos interesses do serviço (Zabalza, 2004).

iv. O estímulo à diferenciação pedagógica e ao apoio individualizado: em articulação com os pontos focados anteriormente, os diferentes perfis e trajectórias dos alunos conduzem ao reforço e ao alargamento a todas as áreas de saber de novos processos de acompanhamento mais individualizado do aluno, através de sistemas tutoriais, ultrapassando os habituais espaços lectivos (Gibbs, 2006; Mora & Gómes, 2007; Zabalza, 2007).

v. Os desafios à avaliação das aprendizagens: saliente-se ainda as repercussões da adopção dos novos paradigmas formativos no domínio da avaliação. Assim, pressupõe-se um maior destaque da avaliação contínua, com intuito de possibilitar a avaliação global do aluno ao nível das competências (saberes, capacidades e atitudes) e da utilização da avaliação essencialmente com fins formativos (Esteves, 2010; Fernandes; 2010; Mérida, 2006; Mora & Gómes, 2007), recorrendo à avaliação como sensor do processo e não como medidor de resultados (Mora & Gómes, 2007). Contudo, a avaliação continua a ser apontada como uma área onde os docentes sentem dificuldades (Alarcão & Gil, 2004; Ramsden, 2003; Zabalza, 2007). Como afirma Zabalza (2007) (a avaliação) “trata-se de uma competência profissional

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3.A NECESSIDADE DE UM CONHECIMENTO PROFISSIONAL SOBRE O ENSINO