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ENQUADRAMENTO TEÓRICO

S ER D OCENTE H OJE : Q UESTÕES P ROBLEMATIZANTES DA D OCÊNCIA NO E NSINO S UPERIOR

4. O quarto predicado defendido por Shulman como atributo da profissão prende-se com a existência de uma comunidade profissional responsável, que tem como principais atribuições

1.2. A Especificidade da Actuação Profissional no Espaço da Educação Superior

1.2.2. A Reinterpretação do Significado de Autonomia: Entre a Independência e o Isolamento

A autonomia, como característica angular da educação superior, pode ser observada a partir de dois prismas: um mais macro, atendendo ao estatuto das próprias instituições, outro mais micro, ao nível da autonomia do próprio docente no desempenho das suas actividades de ensino e de investigação.

A autonomia institucional

A concepção de autonomia celebrada como princípio fundamental na Magna Charta

Universitatum (1988) e expressamente declarada nos principais documentos orientadores da

criação do Espaço Europeu de Ensino Superior, está patente também na regulamentação nacional por exemplo na Lei da Autonomia das Universidades (Decreto-Lei nº 252/97, de 26 de Setembro), na Lei de Bases do Sistema Educativo ( Lei nº46/86, Lei nº 115/97, de 19 de Setembro e Lei nº 49 /2005, de 30 de Agosto) e no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro).

Apesar do reconhecimento da autonomia como princípio fundamental do funcionamento das instituições do ensino superior, esta autonomia pode estar comprometida ou tem que ser

45 assumida como relativa, consequência de um acentuar da dependência política e económica das instituições, decorrente quer dos sistemas de financiamento públicos, quer das demandas suscitadas pelos mercados laborais (Elton, 2009; Nuñez, 2001b, Santos, 2010; Zabalza, 2004). Assiste-se a uma perda gradual de autonomia no ensino superior, patente na intromissão do sector político em diversas áreas, como por exemplo na regulação do funcionamento das instituições, no estabelecimento de parâmetros comuns nos planos de estudos ou nos sistemas de contratação (Zabalza, 2004).

Autonomia do docente

A autonomia docente, apanágio do exercício profissional, é também consagrada em diversos documentos internacionais, entre eles na Magna Charta Universitatum que passamos a citar: “A liberdade na investigação e no ensino é um princípio fundamental da vida académica,

devendo, governos e instituições, dentro das suas competências, assegurar o respeito por este requisito fundamental” (MCU, 1988).

Esta autonomia, que se refere a uma liberdade moral e intelectual para investigar e ensinar, tem por vezes tido como resultado um entendimento generalizado de que autonomia profissional é sinónimo de isolamento profissional (Brancato, 2003; Cunha, 2005, 2010; Elton, 2009; Fernandes, 2010; Zabalza, 2004). Deste (des)entendimento resultam consequências a dois níveis:

i. Fenómenos de resistência à mudança (bem documentados na literatura sobre os professores de outros níveis de ensino) e que para Zabalza (2004) se traduzem naquilo que denomina de reservas ou fenómeno de resistência cultural.

A actividade de investigação acaba por ser mais susceptível a ingerência externa (provavelmente decorrente dos mecanismos de financiamento, standards e métricas e avaliação, bem como de uma maior tradição de trabalho em equipa) do que a actividade docente.

“Nem as pressões das políticas universitárias dos governos, nem as pressões internas das

gerências universitárias, nem as pressões doutrinais dos pedagogos conseguiram transcender ao ‘mundo privado’ em que se encerra a acção docente (…). O ‘individualismo’, a atomização curricular’, a defesa da ‘liberdade de cátedra’, a opacidade das actuações docentes, etc. criaram um caldo de cultivo favorável ao deslizamento da actividade docente a uma espécie de território privado” (Zabalza, 2004,

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Se, por um lado, não se pode descurar os efeitos negativos desta resistência que, associada à ausência de tradição de trabalho colaborativo no âmbito do ensino, se manifesta na manutenção de “modalidades empobrecidas de actuação docente e sistemas pouco aceitáveis

de relação com os alunos” (Zabalza, 2004, p.34), resultando na esclerotização da actividade

profissional (Knight et al., 2006), por outro, há que aceitar que este fenómeno de resistência acarreta consigo efeitos positivos ao permitir a preservação de práticas inovadoras e criativas pré-existentes face aos movimentos homogeneizadores das novas políticas e pressões sociais (Zabalza, 2004), práticas essas que parecem por vezes inexistentes nos discursos e vagas transformadoras (De Ketele, 2003; Esteves, 2010).

ii. Ausência de trabalho colaborativo sistemático no âmbito da função de ensino

Os fenómenos de resistência à mudança, aliados a uma disparidade de incentivos para o envolvimento em trabalho de equipa no que diz respeito à investigação disciplinar comparativamente à vertente de ensino, leva a que seja possível encontrar mais facilmente equipas de trabalho em torno de projectos de investigação e inovação científica do que vocacionados para o apoio e desenvolvimento da actividade docente.

Com efeito, a tradição de construir redes e equipas de investigação nacionais e/ou internacionais é apanágio das instituições de ensino superior enquanto entidades produtoras do conhecimento. Um claro sinal do reconhecimento deste trabalho é a valorização dada pelas agências nacionais e internacionais de avaliação externa, nomeadamente na definição dos seus

standards de qualidade.

Já no que se refere à dinâmica de colaboração entre colegas sobre as práticas de ensino não parece ser um exercício valorizado nem pelos docentes, nem pelas organizações (Cunha 2005; Edgerton, 2004; Elton, 2009; Escudero, 1999; Nuñez, 2001b; Zabalza, 2004, 2007), encontrando-se referência a algumas iniciativas pontuais abordadas como casos, como as iniciativas nacionais relatadas nos escritos por exemplo de Flores (2007) e Leite e Ramos (2010).

A importância desta prática de trabalho colaborativo (e que ultrapasse as barreiras das áreas disciplinares- Cunha, 2005; Elton, 2009; Gibbs, 2004; Zabalza, 2007) recorrentemente exortada na literatura enquanto processo de aprendizagem preferencial dos professores era- nos já apontada por Zeichner (1993) como a chave para o desenvolvimento docente. Recorrendo às suas palavras, diremos que “a definição de aprendizagem e desenvolvimento

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em larga medida o potencial para o desenvolvimento docente” (Zeichner, 1993, p.58).

Voltaremos a esta temática no capítulo em que nos debruçamos sobre as práticas potenciadoras de desenvolvimento profissional.

Em síntese, não sendo a falta de autonomia uma questão marcadamente sentida no ensino superior até agora, os novos desafios e pressões externas a que está sujeito, poderão indiciar alterações neste terreno. O equilíbrio entre a definição do papel profissional do professor a partir das estruturas intra-profissionaisiii (comunidades epistémicas que detém o poder de especialistas) (Kogan, 2005) e a delimitação da profissão a partir de entidades externas está comprometido (Kogan, 2005; William, 2008). As métricas associadas aos processos de acreditação e avaliação, quer de cursos, quer de instituições, quer da própria investigação ilustram nitidamente a incursão de outras esferas no mundo académico. Face ao exposto parece-nos que o ensino superior e os seus docentes se encontrarão mais vulneráveis, enfrentando uma nova condição.

Ao mesmo tempo a autonomia científica e pedagógica que marca a actuação do docente no ensino superior estabelece como incumbência profissional a decisão sobre o que se ensina e ainda a escolha das formas como esses conteúdos são abordados (Pinto, 2006), o que nos remete para a questão seguinte.