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4.1 – A estrutura rítmica como primeiro continente

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 159-162)

Capítulo III Processos Constitutivos do Eu: a

III. 4.1 – A estrutura rítmica como primeiro continente

Haag (1988, 1994, 1995), a partir de sua clínica e da observação de bebês pelo método Esther Bick, do estudo dos desenhos pré-figurativos e de suas formas agidas na relação transferencial, nos apresenta hipóteses a respeito dos primórdios do desenvolvimento da experiência de continência e da construção de um espaço psíquico tridimensional. Além dos trabalhos de Bick, ela se apoia na clínica de Bion e nas formulações de Anzieu a respeito das fantasias primárias de pele comum e do descolamento de peles como processo de nascimento psíquico. Mas, em acréscimo, ela nos apresenta aspectos diferentes que participam dos processos de construção de uma espacialidade psíquica continente e tridimensional quando faz a hipótese da estrutura rítmica como sendo o primeiro continente.

Encontramos a experiência rítmica a perpassar as relações de cuidado, no ir e vir da relação interativa entre o bebê e o círculo maternante; na forma- sensação de um fluxo e refluxo rítmico e contínuo que acompanha as trocas afetivas de uma intersubjetividade corporalmente vivida. Entendemos, com Haag, que “o ritmo é a primeira forma vital e a primeira sustentação do sentimento de continuidade de existir” (Haag, 1994: 25). O ritmo, sem dúvida, é uma experiência de síntese, de integração e propicia um sentimento de continência e continuidade.

Mas numa leitura atenta dos textos de Haag, notamos que sua atenção, tal como a nossa, era para os aspectos estruturais, o ritmo como estrutura continente que ela via representada nos desenhos pré-figurativos das crianças: os zigue-zagues, o pontilhado, as dobras, as formas espiraladas e até mesmo o colorir do fundo, revelavam os traços da uma estrutura rítmica como expressão de uma forma-sensação continente... aberta.

Estamos acostumados a pensar a representação de uma estrutura continente como forma fechada. A própria noção do Eu como envoltório psíquico nos remete a essa imagem. Daí nossa dificuldade de avaliar a

16Extraído do título de um dos textos de Haag: “Hypothèse sur la structure rythmique du premier contenant.” In Revue Gruppo, n.2, France, 1986.

dimensão do que ela nos propunha; mas aí também residia sua originalidade e sua contribuição ao nosso tema.

A estética rítmica se constitui, ao nível do Eu-corporal, como experiência de continência que possui estrutura bidimensional, como organização de superfície e, neste sentido, Haag supõe uma “ritmicidade de ‘superfície’”. E se tudo corre suficientemente bem para o bebê, a hipótese de Haag é de que a experiência dos elementos que compõem as estruturas rítmicas é imprescindível para a construção da tridimensionalidade.

Haag associa a estética rítmica à experiência de fundo; não no sentido que utilizamos quando falamos da relação figura-fundo. Seus textos nos esclarecem que o sentido mais se aproxima ao que utilizamos quando nos referimos, por exemplo, ao fundo de um copo – o limite, o ponto último onde algo entra e, uma vez contido, deve retornar numa experiência de fluxo e refluxo tal como referida por Tustin.

O ritmo como primeiro continente está vinculado ao estabelecimento de “um mínimo de fundo” e a um ponto de retorno, propiciando, deste modo, a forma-sensação de um movimento que transcende a capacidade de uma organização bidimensional da experiência, e inaugura uma terceira dimensão. Ressalta, por exemplo, na relação mãe bebê, a experiência de interpenetração do olhar. Por interpenetração do olhar, ela fala da experiência de penetrar e percorrer o interior da mãe pelo olhar, e nele encontrar um fundo que o remete de volta a seu próprio interior; diferente de um olhar a fundos perdidos, tipo folha de papel, sem volume, sem espaço interior, que qualquer tentativa de penetração, atravessa. Digamos assim: da imagem de canos e tubos como formas-sensação de um Eu rudimentar a derramar-se sem fim, a uma experiência de um “fundo” configurando um ambiente continente, ou então de um ponto de retorno que impede o angustiante esvaziar-se, o cair no vazio.

Vimos que Bion já fizera notar que a função de rêverie, para além da continência, implica um movimento de retorno. Winnicott também chamou atenção para a função estruturante do retorno quando falou da função de espelho do olhar materno. O que diz Haag, em nada diverge nem exclui as abordagens desses autores, mas pensamos que vai além. O que lhe salta aos olhos em sua clínica é a forma-sensação da experiência, o ir e vir, o

experimentar o “fundo”, o ponto de “dobra”: elementos fundamentais, repetimos, na construção da terceira dimensão, mas antes de tudo – este é o foco de sua atenção – da estrutura rítmica.

Para Haag, a partir de Maldiney, a experiência rítmica é primordial como processo constitutivo do Eu e “precisamente na fundação do primeiro ‘fundo’ que vai progressivamente constituir também o primeiro envoltório circular” (Haag, 1995: 25).

O ritmo faz parte da vida. Falamos do ritmo biológico ainda em vida uterina. Mas entendemos, junto com Haag (1994), que as sensações rítmicas só transformam o espaço psíquico na interação com o objeto relacional, nas palavras de Haag, “no estabelecimento de uma ritmicidade relacional” que integra a ritmicidade biológica com a do ambiente maternante. Neste sentido, falamos do ritmo em vida gestacional, no movimento de dança no primeiro encontro entre o ritmo do bebê fetal e o ritmo materno, falamos de ritmo na cesura do nascimento. Se considerarmos agora a experiência da mamada como exemplo da experiência rítmica na relação de cuidado, podemos dizer do fluxo de sensações como o leite a percorrer o tubo digestivo, mas é no entrar e sair do bico do seio na boca, no movimento rítmico do mamar, na interpenetração dos olhares que geralmente acompanha os momentos da mamada, e na sensação dos braços que sustentam a cabeça e as costas do bebê, que a experiência do ritmo e fundo pode ser inscrita.

A presença de Bion nas elaborações de Haag é por ela reconhecida: por experiência de “fundo”, ela tanto nos remete à noção de tela de fundo, como dito acima, como também, como ponto de retorno ou ponto de ricochete, a um encontro transformador: algo da igualdade se perde entre o que vai e o que volta (Haag); o reflexo especular, se aprisionado no mesmo, perde a estrutura rítmica e pode levar à mesma sideração de Narciso bloqueando o processo de gestação psíquica (Anzieu, 1985/2000).

Vemos que a lógica é a mesma da rêverie, mas corporalmente dada: acolher, transformar e devolver. Propomos a ideia de uma rêverie corporal.

Citando Maldiney, Haag esclarece que a palavra “rutmo” não designa um movimento de fluxo, de escoamento, “mas a configuração assumida a cada instante, determinada por um movimento” (Haag, 2006a). Neste sentido, o

ritmo é uma “forma” – forma-sensação – forma de transformação em constante transformação. “O ritmo está no redemoinho da água, e não no curso do rio” (Maldiney citado por Haag, 2006a). Transformação e continuidade, elementos de uma estrutura rítmica que vimos presente desde a vida uterina, e que são inerentes às relações de cuidado suficientemente boas.

III.4.2 – As primeiras formas fechadas e a estrutura radiante de

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 159-162)