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A produção da obra de um autor como Bion, produção que se desdobra e se renova ao longo de sua vida clínica, tem como característica, ao olhar que nós, leitores, a ela dirigimos a posteriori, a possibilidade de circunscrevermos momentos teóricos relativamente diferenciados que, em uma visão de conjunto,

muitas vezes apresentam a forma espiralar, o momento seguinte apresentando, sob novo vértice, de modo mais complexo ou talvez de maior abstração, o que no momento anterior estava posto como pré-concepção a ser realizada. Encontramos essa característica na obra de Freud, quando falamos da Primeira e da Segunda Tópicas, ou ainda quando reconhecemos uma primeira, uma segunda e uma terceira teoria da angústia. Em Lacan, passa-se algo semelhante: costuma-se falar do primeiro, do segundo e do terceiro Lacan.

Em Bion também reconhecemos momentos teóricos diferenciados e podemos optar por nos referirmos a um ou a outro desses períodos, ou “campos de ação”, como diz Figueiredo (2012a): em um primeiro momento, há toda uma produção relacionada aos trabalhos com grupos. A ela se segue a aproximação da clínica da psicose. Os fenômenos que observava deixavam à mostra a precária, se não ausente, capacidade desses pacientes de “fiar-se em seus instrumentos de investigação” (Bion, 1950/1994: 27), bem como a de utilizar as funções do Eu que permitiriam o conhecimento e a compreensão da realidade, externa e interna, e a linguagem verbal como forma de pensamento. As contribuições de Bion que nascem dessas indagações clínicas configuram o “período epistemológico” (Bléandonu citado por Figueiredo, 2012a) e culminam na formulação de uma Teoria sobre o Pensar que transforma completamente as concepções psicanalíticas sobre o pensar. Segundo Grotstein, em Bion a epistemologia é “irredutivelmente ontológica (o estudo da experiência de ser, da existência) e fenomenológica (emocional)” (Grotstein, 2007/2010: 65).

Num terceiro período, muitas vezes qualificado como mítico, Bion escreve, em diversos volumes, Memória para o Futuro, uma obra, segundo Figueiredo (2012a), “mais literária do que estritamente psicanalítica”.

Nossa relação com a obra de Bion tem origem no mestrado, cujo tema, A Gênese da Capacidade de Pensar, nos levou a considerar o “período epistemológico”, ainda que de forma parcializada. Naquele então, instigados pela clínica, nos inquietava a precariedade do funcionamento psíquico de alguns pacientes que muitas vezes pareciam isolados de si mesmos, vivendo em um mundo que pareciam não conhecer. Perguntávamo-nos sobre a natureza do material que traziam para a sessão, e sobre a pertinência de considerarmos a possibilidade de tratamento. Queríamos saber como as

experiências vividas e inscritas no corpo, e aí permanecendo em estado bruto, poderiam vir a ser simbolizadas. Deparávamo-nos com falhas na capacidade de funcionamento do aparelho psíquico, falhas muito primárias e, como lemos em algum lugar em Bion, quando algo falha, é preciso investigar.

Bion desenvolve sua teoria sustentado por uma dupla herança – Freud e Melanie Klein – que sua clínica com psicóticos o leva a questionar. Ele adota uma perspectiva diferente das de seus antecessores, ao dirigir sua atenção não tanto para os conteúdos das fantasias, mas principalmente para a “maneira com que o paciente conseguiu trazer semelhante material à consciência” (Bion, 1950/1994: 22), isto é, para a capacidade funcional ou operacional do aparelho psíquico, uma vez que Bion se interessava antes pela capacidade de fantasiar, não pelas fantasias; antes pela capacidade de representar, não pela linguagem.

A partir de Freud, ele indaga se a capacidade de pensar seria uma realidade sempre à disposição do aparelho psíquico e se os processos representacionais, em sentido estrito, seriam processos naturais. A partir de Melanie Klein ele indaga se o espaço psíquico possuía desde sempre a configuração de continente, de um espaço fechado onde os objetos pudessem ser colocados ou de onde poderiam ser expulsos – questionamentos que vincula à capacidade simbólica de seus pacientes psicóticos. Para Bion, o que era dado como evidente para Freud – a capacidade de pensar – e para Melanie Klein – a espacialidade psíquica continente – era posto sob suspeição pela clínica das psicoses, ou melhor, devia ser objeto de investigação. Ele descobre que esses dois aspectos – a capacidade de pensar e a configuração de um espaço psíquico continente onde os objetos podiam ser introjetados – estavam associados, e entende que o mecanismo de identificação projetiva estava associado a uma “incapacidade da personalidade psicótica de introjetar” (Bion, 1955/1994: 52, grifo nosso), e que isso implicava impossibilidade de síntese. Ou seja, sem possuir um espaço continente onde os objetos pudessem ser introjetados, a capacidade de síntese simbólica ficava impedida: “o paciente igualiza, mas não simboliza”, afirma (Bion, 1955/1994: 52). Isto representava, para ele, incapacidade funcional do aparelho psíquico, a incapacidade da atividade de pensar.

Na leitura de seus primeiros textos psicanalíticos, datados da década de 50, dois aspectos nos chamam a atenção: primeiro, frente à precariedade de simbolização da personalidade psicótica, Bion parece perguntar não o porquê das coisas, mas antes o quê: o que estaria acontecendo? O que é o material com que estaria lidando, qual seu o nível representacional?

Para ele, no mundo primitivo, ou na mente em estado rudimentar, anterior ao ato de pensar, existe apenas sequência de objetos, “fluxo de impressões e eventos” (Bion, 1992/2000: 57) e não consequências. São impressões sensoriais e experiências emocionais vividas em estado bruto, sem intermediação simbólica, logo, não disponíveis à utilização pelo aparelho psíquico.

De modo semelhante, em suas descrições clínicas desse período há inúmeras referências a termos como conter, contido, colocar dentro e deixar no interior, algumas vezes relacionadas a uma função em negativo, isto é, à ausência dela, outras a uma função em positivo, permitindo-nos supor que essas questões estiveram por algum tempo incubadas em suas observações clínicas (Grotstein, 2007/2010):

Disso [a identificação projetiva como forma de estabelecer ligação, como comunicação] dependiam diversas práticas que, no seu [do paciente] sentir, garantiam experiências recompensadoras, do ponto de vista emocional, tais como, para citar apenas dois procedimentos, a capacidade de colocar em mim sensações más e deixá-las em meu interior o tempo suficiente para que fossem modificadas pela permanência em minha psique, e a capacidade de colocar partes boas dentro de mim, daí resultando ele sentir estar lidando com um objeto ideal. A sensação de estar em contato comigo associava- se a essas experiências; o que constituía, estou inclinado a crer, uma forma primitiva de comunicação que fornece as bases de que depende, em última instância, a comunicação verbal. Foi-me possível deduzir, a partir de seus sentimentos para comigo quando eu era identificado com o objeto obstrutor... não aguentando ser receptáculo de aspectos da personalidade... (Bion, 1957a/1994:107).

Vemos aí, operando no raciocínio clínico de Bion, os primórdios da construção do lugar central que ele irá posteriormente conferir à função continente. Revela, além disso – como impressões de sua experiência clínica – aspectos que lhe serão caros na formulação da Teoria sobre o Pensar: a capacidade do psicanalista de conter ou não os elementos nele depositados, a relação entre o objeto continente e o que nele é depositado, e a função de transformação dos elementos psíquicos. Na relação transferencial, ele se vê na situação de precisar exercer uma “função de continência ativa” (Figueiredo, 2012a).

As consequências dessas abordagens são crescentes no pensamento de Bion e culminam com a sistematização de uma teoria sobre o pensar. Neste sentido, sua grande contribuição foi ter sugerido que, primeiro, o pensar constrói a personalidade e, em suas palavras, “se [a função] α é destruída, o pensamento torna-se impossível, e a personalidade cessa de existir” (Bion, 1992/2000: 89). E, segundo, que o pensar não é uma função que a mente exerça espontaneamente, e precisa ser aprendida na relação de cuidado. Ou seja, Bion vincula a existência ao pensar – “penso, portanto sou” (Bion, 1992/2000: 89) – e este, a determinada função da relação de cuidado, a função continente.

Propõe que o pensar é mais do que uma ação que acarreta uma descarga de energia, como descrito por Freud (1911/1980). Pensar é, para ele, um ato cujo fim transcende o processo em si mesmo, implicando a produção de algo que representa uma transformação do estado anterior: transformação do “fluxo de impressões e eventos” (Bion) e das emoções sem nome, os elementos β, em elementos pensáveis, os elementos α.

Vimos que Freud, já no Projeto (1895/1995), pré-concebe a função continente como condição para a constituição do aparelho psíquico. Bion segue no mesmo sentido, mas por via paralela: para pensar, é preciso conter, não a energia psíquica nem as pulsões: é preciso conter as emoções e os elementos primários das experiências, é preciso que permaneçam num ambiente continente o tempo necessário para serem transformados. Segundo Bion, pensar pressupõe a função continente. Do mesmo modo, em suas elaborações teóricas a noção de continente como elemento psicanalítico é desenhada em função da capacidade de pensar.

Deste modo, ao mesmo tempo em que elabora sua teoria sobre o pensar, ele também constrói uma teoria sobre a função continente, ainda que não sistematizada. Nesse percurso, não apenas torna explícito o tema da função continente no âmbito psicanalítico, nos oferecendo a possibilidade de sobre ela refletir, como também revela que ela é imprescindível, não apenas para o funcionamento psíquico, mas para o próprio sentimento de existir. Em termos clínicos, ele surpreende o campo psicanalítico ao nele introduzir uma preocupação clínica em relação ao continente ou, mais especificamente, à

função continente e sua relação com os conteúdos e seus efeitos sobre a construção da espacialidade psíquica.

Nosso empenho para a sequência deste texto será o de destacar alguns elementos da Teoria sobre o Pensar elaborada por Bion (1962/1994), que compõem sua teoria da função continente. Vamos nos organizar em torno de três ideias:

1 – Que características Bion confere à função continente?

2 – A função continente: do vínculo intersubjetivo ao vínculo intrapsíquico. 3 – As dimensões da espacialidade psíquica.

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 36-41)