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1 – A Psicologia do Ego de Heinz Hartmann e o Eu operacional

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 88-93)

Capítulo II Vicissitudes do conceito de Eu pelos passos

II. 1 – A Psicologia do Ego de Heinz Hartmann e o Eu operacional

Consideremos como primeiro exemplo as elaborações de Heinz Hartmann uma vez que, nos limites de nossos conhecimentos, entendemos ter sido ele o primeiro a objetivamente propor e a fazer uso teórico e clinico da cisão de das Ich em dois conceitos e duas entidades psíquicas diferentes – o self e o ego. Acreditamos que questões teóricas e clinicas o moveram neste sentido: para Hartmann, uma abordagem de das Ich que o inserisse na teoria das pulsões conferindo-lhe origem narcísica e um alimento pulsional, o manteria atrelado à teoria dos conflitos como um “satélite”, em detrimento de uma abordagem que considerasse suas características funcionais e um processo de constituição e funcionamento mais independente das vicissitudes pulsionais. Segundo pensa, ao fazer de das Ich um critério secundário em relação ao tema das pulsões, do inconsciente e dos conflitos pulsionais, a psicanálise terminava por limitar sua abordagem clínica, desconsiderando a infinita variedade de características e diferenças pessoais que diziam respeito à capacidade funcional de das Ich, fosse ela de defesa ou de adaptação à realidade.

Sua visão clínica compreende que a direção da cura não poderia considerar das Ich unicamente sob a perspectiva do conflito intersistêmico, com o Id e com o Supereu. O conflito com a realidade, posto em destaque por Anna Freud, implicava, a seu ver, um desenvolvimento técnico que considerasse das Ich em si mesmo, e sua dinâmica intrassistêmica, tendo em vista, justamente, sua maior autonomia para o exercício das funções adaptativas (Hartmann, 1951/1964). Na aproximação que faz do tema da esquizofrenia, por exemplo, a questão que o orienta é a de saber por que algumas pessoas reagem ao conflito retirando seu investimento do mundo externo e regredindo. A resposta para ele está justamente na falência das funções de das Ich, ou mais precisamente, na autonomia e integridade de das Ich para exercer as funções que garantem o desenvolvimento e uma relação “normal” com a realidade. Importante acrescentar que para ele essa questão não se coloca apenas no caso das psicoses, cuja etiologia Freud já havia situado no conflito que se torna intolerável entre das Ich e a realidade. Diz Hartmann: “... nós não achamos que podemos manejar a neurose de um paciente sem lidar com a interação desta com o funcionamento normal” (Hartmann, 1951/1964: 145).

Tendo em seu horizonte a questão da adaptação à realidade, tanto na patologia como nos indivíduos ditos normais, Hartmann debruça-se, teórica e clinicamente, sobre o tema da psicologia de das Ich ampliando e até modificando abordagens freudianas. Todo o desenvolvimento metapsicológico que propõe tem o sentido de fundamentar sua suposição de um funcionamento autônomo do ego – autônomo em relação às vicissitudes pulsionais – deixando-o livre para o exercício de suas funções. A ideia clínica de um “fortalecimento do ego”, marca de sua clínica, encontra aqui sua razão de ser.

Em outras palavras, para ele o ego tanto poderia ser alimentado por energia pulsional, libidinal ou agressiva, como por uma energia neutralizada, o que permitiria que se mantivesse fora dos conflitos e livre para o exercício de funções. Fortalecer o ego implicaria incrementar a neutralização das energias pulsionais, ampliando deste modo a esfera do ego livre de conflitos e sua capacidade de exercer suas funções adaptativas sem se comprometer com os movimentos pulsionais. Isto é, não se trata apenas de uma redistribuição

intersistêmica da energia pulsional – entre as instâncias psíquicas, o Ego, o Id e o Supereu – mas também de uma redistribuição dentro do próprio ego, entre energia pulsional e neutralizada.

Nesse sentido Hartmann encontra na teoria freudiana um grande obstáculo: o conceito de narcisismo. Ele entende haver inconsistência na obra freudiana, que se evidencia na noção de narcisismo quando da passagem para a Segunda Tópica, que ele lê como se Freud nos apresentasse uma “nova teoria” da mente, que teria em relação à primeira apenas algumas “afinidades” (Hartmann, 1956/1964: 290): contradição teórica na sustentação do conceito de narcisismo e na concepção de das Ich como instância funcional; e incompatibilidade clínica entre capacidade saudável de ajustamento à realidade, e dependência de das Ich às vicissitudes pulsionais. E mais ainda: como supor um processo de constituição narcísica ao mesmo tempo que um desenvolvimento livre do pulsional?

No conceito de ego por ele elaborado, Hartmann lhe confere autonomia primaria, isto é, enraizamento biológico inato (mecanismos e funções inatas) que seria, por assim dizer, matriz da esfera do ego livre de conflito. Diferenciando-se de Freud, para ele o Id não possuiria antecedência nem prevalência sobre o ego; muito pelo contrário, Id e ego possuiriam uma raiz biológica comum e se constituiriam concomitantemente, através de processos de diferenciação. Desse modo, Hartmann estaria desvinculando o processo de constituição do ego de uma origem pulsional e, (desconsiderando completamente o capítulo II do texto O Eu e o Id [Freud, 1923/2011]), dos mecanismos que pressupõem a ação da libido, como a identificação.

Mas era preciso ir além: Freud, no texto de 1914 define metapsicologicamente o narcisismo como sendo o investimento da libido em das Ich. Mas se para Hartmann das Ich era considerado apenas como um sistema da mente, e não como um objeto ou uma representação, ele se pergunta como a pulsão que investe objetos poderia investir um sistema ou uma estrutura de característica “impessoal”? Deste modo, no arcabouço conceitual que orienta a Psicologia do Ego desenvolvida por Hartmann, nem a noção de narcisismo primário nem a de narcisismo secundário se sustentavam,

uma vez que incompatíveis com a concepção de das Ichque ele preconizava.

Qual seria então, a entidade psíquica investida no narcisismo? Talvez não sejamos muito fieis aos fatos ao dizer que, como saída para o paradoxo teórico em que se encontrava, Hartmann tenha achado necessário justamente fragmentar o conceito de das Ich, diferenciando o ego como sistema psíquico – uma das três subestruturas da mente – da noção de self como se referindo ao si mesmo, à pessoa como um todo em oposição a objeto. Diz ele:

Na análise uma clara distinção entre os termos ego, self e personalidade nem sempre é feita. Mas uma diferenciação desses conceitos é fundamental se tentarmos olhar de forma coerente os problemas envolvidos, à luz da psicologia estrutural de Freud. (Hartmann, 1950/1964:127)

Ele entende que Freud teria atribuído ao termo narcisismo dois conjuntos de referência opostos e contraditórios, criando confusão entre eles, por estarem inapropriadamente fundidos os conceitos de ego e self: o investimento do ego como sistema, cuja contraposição é o investimento de outras partes da personalidade; e o investimento da pessoa como um todo, do self como objeto em contraposição ao investimento de outros objetos (Hartmann, 1950/1964: 287). Deste modo, falar de libido do ego ou de investimento libidinal do ego seria uma imprecisão, e acrescenta: “Isso, portanto, será esclarecedor se definirmos o narcisismo como investimento libidinal não do ego, mas do self. Também poderia ser útil aplicar o termo representação de self como oposta a representação objetal”. (Hartmann, 1950/1964: 127).

Assim, ao cindir o conceito de das Ich em ego e self de modo a melhor adequá-lo às suas propostas teórico-clínicas, Hartmann propõe que ao termo ego corresponda o que ele entende ser a tradução mais fidedigna do conceito freudiano de das Ich, isto é, sua acepção como subestrutura da personalidade, devendo ser definido por suas funções, e que ao termo self corresponda o sentimento de si mesmo, uma acepção mais próxima da linguagem popular. Mas não hesita em afirmar que o sentimento de si mesmo, tal como a percepção e o pensamento, são funções de das Ich e não se confundem com ele: dizem respeito ao self e não ao ego, uma vez que não fazem parte do que

ele entende ser a psicologia do ego proposta por Freud a partir da elaboração da teoria estrutural, ou seja, o ego como sistema psíquico.

Clinicamente, o que Hartmann propõe é uma mudança na concepção de saúde e consequentemente da proposta terapêutica: não interessavam tanto as relações de conflito do ego, mas antes seu fortalecimento fora da área de conflito, fazendo uso de suas funções em prol de uma adaptação saudável à realidade. Ele diz: “Quanto mais entendemos o ego e suas manobras e realizações em lidar com o mundo externo, mais tendemos a fazer destas funções, adaptações, etc. uma pedra de toque do conceito de saúde” (Hartmann, 1939/1964: 4).

Em termos históricos, a divisão do conceito de das Ich efetuada por Hartmann parece ter se constituído, por um lado, como terreno fértil para o desenvolvimento das teorias que priorizaram a atenção ao self e pensamos que ela se inscreveu na cultura psicanalítica de tal modo que muitas vezes a encontramos implícita no pensamento mesmo daqueles que não tinham a Psicologia do Ego de Hartmann como referência, fosse em concordância ou em oposição, para o desenvolvimento de suas teorias. Por outro lado, a abordagem clínica por ele proposta gerou reações e polêmicas tanto em sua própria casa como também em território europeu.

Vemos assim a “era das escolas” (Figueiredo, 2009a) proliferar atravessada por disputas e preconceitos que sustentaram a divisão do conceito de das Ich. “As disputas, e mesmo um certo fechamento potencialmente dogmático, propiciaram elaborações extraordinariamente fecundas dentro de cada uma e de todas as correntes” (Figueiredo, 2009a: 16).

Nos Estados Unidos, por exemplo, e do interior da Psicologia do Ego (Carvalho, 1991), partindo da consideração da divisão da instância psíquica das Ich em ego e self, Heinz Kohut vai desenvolver a Psicologia do Self tendo como centro justamente a então relegada noção de narcisismo e, consequentemente, de self (uma vez que ele considera, a partir de Hartmann, que a questão do narcisismo diz respeito ao self e não ao ego). Kohut vai propor mudanças na concepção do desenvolvimento, mudanças metapsicológicas e metodológicas (Socor, 1997), desenvolvendo importantes

recursos clínicos e fazendo da Psicologia do Self um dos opositores à Psicologia do Ego. Sua tese vai permitir diferenciar a identificação ao objeto da identificação às funções, concepção que se revela de extrema importância para o nosso tema.

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 88-93)