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5.2 – Alguns esclarecimentos a respeito interdito de tocar

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 169-174)

Capítulo III Processos Constitutivos do Eu: a

III. 5.2 – Alguns esclarecimentos a respeito interdito de tocar

Partindo da consideração da importância das experiências da pele, do tocar e ser tocado, para o processo de constituição de Eu, Anzieu precisa se haver com a questão do que levaria mãe e bebê, a abrirem mão de contato tão íntimo e prazeroso. O que levaria à ultrapassagem do Eu-pele? Ou, em seus termos, como pode o Eu passar de um funcionamento em Eu-pele para um funcionamento próprio ao Eu-psíquico? Sua hipótese é bastante freudiana: o tátil só é criador quando se encontra, no momento necessário, interditado. (Anzieu, 1985/2000: 179)

Como é de seu estilo, Anzieu faz uma vasta pesquisa para fundamentar como a interdição ao toque está presente em diversos setores da cultura ocidental e como, muito frequentemente, ela é condição e motor de transformações. Se considerarmos apenas o nosso campo de interesse, a psicanálise, ele faz notar como seu processo de criação é atravessado por

interdições ao toque. Na verdade, interdições de dupla natureza: a do contato corpo a corpo pelo risco de ter um excesso de erotização despertado, e o contato manual, o tocar o corpo com as mãos, como, por exemplo, faz o médico ao examinar um paciente ou como, na pré-história da psicanálise, encontramos em “Freud hipnoterapeuta” (Anzieu, 1985/2000: 179). Sabemos que a psicanálise nasce de uma interdição ao toque, quando Freud “suspende toda troca tátil com o paciente em benefício da única troca de linguagem” (Anzieu, 1985/2000: 178). Segue Anzieu:

Nesta situação, seus pacientes – e Freud a eles faz eco – se põem cada vez mais a sonhar. A análise metódica desses sonhos – os seus e os deles – o conduz, em outubro de 1897 – à descoberta capital do complexo de Édipo. (Anzieu, 1985/2000: 179)

Ele mostra que na história da psicanálise, como também na história infantil de cada indivíduo, foi preciso que a distância fosse introduzida e que o contato fosse interditado, “para que se instaure [instaurasse] uma relação de pensamento, um espaço psíquico, um desdobramento do Eu em uma parte auto-observante” (Anzieu, 1985/2000: 180). Ou seja, para que o espaço psíquico, a capacidade reflexiva do Eu e o pensamento se constituíssem como realidade clínica.

De forma semelhante, se as experiências de pele e a comunicação silenciosa alimentavam mãe e bebê no calor da intimidade corporal, é necessário que ela seja interditada para que o simbólico se desenvolva como ponte a unir os corpos, as peles e os psiquismos, então, separados: “O prazer do contato do corpo materno é a base tanto do apego como da separação” (Pinol-Douriez & outros, 2000: 240).

Se podemos dizer que Anzieu é o autor – se não quem introduz, pelo menos quem mais valoriza e enriquece, no campo psicanalítico, uma teoria sobre a pele, sobre as experiências de pele – será ele também, respeitando os limites de nosso conhecimento, quem irá teorizar a respeito da interdição do tocar como um dos elementos constitutivos, indispensáveis ao Eu:

O interdito edipiano (não casarás com tua mãe e não matarás teu pai) se constrói por derivação metonímica do interdito de tocar. O interdito de tocar prepara e torna possível o interdito edipiano ao lhe fornecer seu fundamento pré-sexual. O tratamento psicanalítico permite compreender muito particularmente, com quais dificuldades, com quais falhas, com quais contrainvestimentos ou sobreinvestimentos esta derivação se opera em cada caso. (Anzieu, 1984a/2007: 175)

Apesar da simplicidade aparente que muitas vezes envolve formulações que conferem valor a uma constituição do ser anterior à instauração edípica genital, pensamos que o que nos apresenta Anzieu neste parágrafo possui uma complexidade que não estamos certos de ter apreendido com propriedade. Disto, queremos ressaltar que entendemos que não se trata para ele, apenas de estabelecer uma equivalência entre o interdito edípico e o interdito de tocar, nem de estabelecer uma anterioridade de um em relação ao outro. Primeiro, ele considera que o tocar é terreno comum para três problemáticas que habitam o psiquismo do humano: a prova de existência, a constituição do Eu e o autoerotismo nos cuidados dados ao corpo, e a sedução sexual. Depois, propõe que tanto o interdito de tocar como o edípico, se constroem em dois tempos, um primário e um secundário, e, terceiro, não podemos desconsiderar que ele nos oferece, como vimos no Capítulo I, uma causalidade não linear.

Assim, quando diz que o interdito de tocar prepara e torna possível o interdito edípico, e que este se constrói a partir daquele por derivação metonímica, Anzieu ressalta a relação entre os dois interditos e, consequentemente, entre as pulsões de apego e sexual sobre as quais eles incidem. Anzieu nos remete ao interdito como função psíquica que transcende a organização edípica. Ao mesmo tempo, sabendo que na metonímia os elementos compõem uma mesma estrutura, formam um contexto onde um e outro vão podendo se alternar, se entrelaçando e se diferenciando, ele situa o tocar, inerente à relação primária, como um campo de articulação entre eles.

Todo o interdito é duplo por natureza. É um sistema de tensões entre polos opostos; essas tensões desenvolvem no aparelho psíquico campos de força que inibem certos funcionamentos e obrigam outros a se modificar. (Anzieu, 1985/2000: 185)

E destaca quatro dualidades implícitas em todo interdito.

1 – Tanto o interdito de tocar como o edípico atingem as pulsões sexuais e agressivas. No que diz respeito ao interdito edípico – não casarás com tua mãe nem matarás teu pai – sexualidade e agressividade estão relacionadas, mas diferenciadas. Já a interdição ao toque visa a proteger a criança dos excessos pulsionais, sejam agressivos ou sexuais indiferenciados: não toque certos objetos ou certas regiões de seu corpo ou do corpo do outro, pois você pode

quebrar, machucar ou ser invadido por uma excitação que não é capaz de compreender e de satisfazer. Ressalta Anzieu que a interdição ao toque pode se tornar patogênica quando é a própria natureza da pulsão, e não sua intensidade, que é interditada, isto é, a agressividade e a sexualidade em si, quando “o prazer que as acompanha e as relações de objeto que modula, são barrados” (Anzieu, 1984a/2007: 176).

No entanto, diferente da interdito edípico, o interdição ao toque é, de certo modo, mais “relativa” e acreditamos que em função de sua vinculação à autoconservação: não toque o fogo porque você vai se queimar, mas também, não solte a mão de sua mãe, mantenha-se em contato com ela, para atravessar a rua. De outro modo diremos que o interdito de tocar está vinculado ao jogo entre dependência e autonomia, ou entre autonomia e segurança. Quando observamos, por exemplo, a criança que aprende a andar, a traçar sua própria distância, tanto mais longe ela poderá ir quanto mais segura se sentir.

A aprendizagem da autonomia se joga entre duas obrigações: manter os contatos requeridos para a preservação da vida física e psíquica, renunciar àqueles que mantêm o sujeito em uma posição regressiva que o impede de crescer. (Anzieu, 1984a/2007: 177)

2 – Na segunda dualidade dos interditos que descreve, ele os apresenta como uma configuração de interface, isto é, uma face voltada para o exterior, que recebe, filtra e significa as interdições vindas do ambiente, e uma face voltada para a realidade interna, para os “representantes representativos e afetivos das moções pulsionais”. Neste sentido, Anzieu diferencia as interdições dos interditos:

As interdições incidem sobre as condutas relacionadas aos objetos externos e ao próprio corpo. O interdito propriamente dito incide sobre a pulsão, sobre a realização pulsional bruta e não mediatizada. As interdições definem os perigos externos; os interditos assinalam os perigos internos. (Anzieu, 1984a/2007: 177)

Ou seja, o interdito é o que canaliza o pulsional, delimita suas fontes e reorganiza seus objetos e objetivos; embora se apoiem nas interdições externas, os interditos de fato respondem ao princípio de diferenciação, intrínseco ao funcionamento psíquico. Como interface, os interditos delimitam regiões de qualidades psíquicas diferentes, como por exemplo, cita Anzieu, o estranho (no sentido do inquietante, perigoso) e o familiar (no sentido do conhecido e protetor ou protegido). O interdito de tocar contribui para o

estabelecimento de uma interface entre o Eu e o Id; já o interdito edípico, trabalha no estabelecimento de uma fronteira entre o Eu e o Supereu.

3 – Todo interdito se desenvolve em dois tempos. No que diz respeito ao interdito edípico, ele segue Melanie Klein na consideração de um estado edípico precoce, pré-genital, que precede e prepara o Édipo genital. Do mesmo modo, existe um tempo primário do interdito de tocar, o que incide sobre a pulsão de apego, interditando o contato entre as superfícies do corpo como um todo e promovendo a reestruturação da fantasia de colagem de pele e da comunicação pele a pele; e um tempo secundário, mais seletivo, limitado ao contato manual, e que incide sobre a pulsão de domínio.

Segundo Anzieu, e isso muito nos interessa, é o tempo primeiro do interdito de tocar que promove o nascimento psíquico: “O interdito primário do tocar transpõe para o plano psíquico o que foi operado no nascimento biológico. Ele propõe uma existência separada ao ser vivente em vias de se tornar um indivíduo.” (Anzieu, 1984a/2007: 179)

Se o interdito se apoia nas interdições para ganhar forma, ou melhor, significação, o que vai operar como interdição é o distanciamento psíquico e físico da mãe. Daí a importância da quarta dualidade característica do interdito.

4 – De modo geral, o interdito é bilateral, isto é, tanto se aplica a quem emite a interdição como a seu destinatário.

Se o interdito primário de tocar não se estabelece, afirma Anzieu, o interdito edípico, como organizador da sexualidade genital e da ordem social, não se instala. Ou seja, na manutenção do corpo a corpo, sem que uma distância seja estabelecida entre o bebê e o ambiente maternante, sem que o Eu-psíquico se instaure como sentimento de identificação de base diferenciado do Eu-corporal, a própria organização da estrutura edípica fica prejudicada. Do mesmo modo, propõe Anzieu, o interdito de tocar favorecerá a reestruturação do Eu apenas se o Eu-pele tiver sido suficientemente adquirido. Caso contrário, imaginamos ser a situação extrema do autismo, a separação imposta pelo interdito, interrompe o processo de constituição do Eu-pele e do nascimento psíquico.

Muito menos frequentemente, felizmente, o comprometimento se apresenta em sua forma extremada. De modo geral, partindo da hipótese de

uma configuração de Eu-pele que representa relativa “normalidade”, encontramos em nossa clínica distorções e variações da estrutura do Eu-pele.

O Eu-pele “normal” não envolve a totalidade do aparelho psíquico e apresenta uma dupla face, externa e interna, com uma separação entre essas duas faces que deixa lugar livre para um certo jogo. (Anzieu, 1985/2000: 161)

Ou seja, se por questões inerentes à criança (Bion), por falhas do ambiente cuidador ou traumas cumulativos, o Eu-pele se constitui sem oferecer à criança a experiência de sua individualidade e sua justa medida, se a criança não pode experimentar o ir e vir de seus movimentos de independência, se no interjogo que alimenta as relações de cuidado o ambiente não oferece à criança a possibilidade de construir uma pele própria, no processo de separação, a possibilidade de cada um vir a ser dono de sua própria pele e ter seu próprio Eu, fica distorcida. Neste sentido, Anzieu fala das fantasias de pele rasgada, de pele esfolada, de pele roubada, de pele envenenada, dentre outras que porventura podem acompanhar esse processo constitutivo; vicissitudes que oferecem, segundo o autor, suporte para fantasias narcísicas e masoquistas, mas que também podem gerar uma configuração distorcida do Eu-pele.

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 169-174)