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2.1 – O Eu rudimentar é, primeiro e acima de tudo, um Eu-corporal

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 147-151)

Capítulo III Processos Constitutivos do Eu: a

III. 2.1 – O Eu rudimentar é, primeiro e acima de tudo, um Eu-corporal

experiência dos objetos, do que os conhecer. Apenas posteriormente o objeto poderá ser experimentado pelo pensamento.

Francis Bacon (citado por Kitsisis, 2000)

Para trabalharmos a noção de Eu-corporal como característica prevalente do Eu rudimentar, continuaremos adotando como principal referência o que nos foi proposto por Frances Tustin. Nesta encontramos a melhor definição de Eu-corporal e o esforço ímpar de descrever esse estado pré-verbal, pré-imagético e infralinguístico; um estado em que a essência do Eu se constitui de sensações, dominadas e centradas no corpo (Tustin, 1981/1984: 13). Ela nos apresenta todo um universo de sensações como sendo, em seus termos, o primitivo sentido de ser da criança – sensações-eu, define Tustin; nos termos de Federn, um sentimento corporal de existência. No estado do Eu-corporal a existência é sensorial e, sem representação de ausência, tudo o que existe, existe no corpo.

A clínica com crianças autistas muito pequenas ensinou a Tustin, originalmente de formação kleiniana, que era preciso conceber um estágio de desenvolvimento em que o cuidado maternante, e tudo o que representa, não haveria ainda “se estabelecido como experiência psíquica interior”. Do mesmo modo, a estrutura do espaço psíquico não teria ainda se estabelecido em sua tridimensionalidade. A experiência psíquica era inscrita em termos de sensações táteis, como aderida à superfície corporal; ou seja, a experiência se organizava, nestes estados, em estruturas bidimensionais.

Situada sob a perspectiva do que experimenta a criança em estado primário, Tustin nos propõe o termo “forma-sensação” para se referir às primeiras impressões das coisas. Não são formas geométricas, nem possuem propriedade espacial (Houzel in Tustin, 1994): apenas formas que organizam o fluxo aleatório de sensações e que se constituem como “os rudimentos da noção de limite contendo um espaço” (Tustin, 1986/1990: 99).

“Formas” ou formas-sensação são formações vagas de sensações, os meios primários, elementares, através dos quais o infante cria o seu mundo;

são pré-imagens (embora só possamos falar delas imageticamente). Mas de modo mais enfático do que encontramos em Tustin, ressaltamos que formas- sensação são também, e principalmente, rudimentos estruturais de uma plástica pessoal. Por exemplo, a imagem de ritmo e dança como estética de uma experiência intersubjetiva corporalmente vivida, é uma forma-sensação. Em nosso entender, as formas-sensação, como organização da experiência, organizam e propiciam a transformação do espaço subjetivo, isto é, constroem a espacialidade psíquica. Ou seja, a experiência é, em si mesma, transformadora do espaço psíquico e, paradoxalmente, ela se organiza a partir das transformações do espaço psíquico15. Neste sentido propomos que os significantes formais são representações arcaicas das formas-sensação das transformações da espacialidade psíquica.

O importante, diz Tustin, é a impressão da “forma” e não seu desenho. Como primeira impressão das coisas, as formas-sensação são, segundo a autora, os rudimentos do funcionamento estético, emocional e cognitivo.

Desse modo, em termos de Eu-corporal, os objetos também são formas de sensação – objetos-sensação, é como Tustin os designa. Puro elemento sensorial, pura organização de superfície como em uma folha de papel; pura “forma” que tem sua existência colada à superfície do corpo do bebê. Esclarece Tustin (1994: 98) que foi a concepção de objeto-sensação que permitiu que ela entendesse a noção de objeto em estágio tão primário, quando a relação de objeto está baseada na identificação adesiva (e não na identificação projetiva, como supunha Klein e, depois dela, Bion). Quando tudo corre bem para a criança, a tendência é que as “formas” se associem a objetos reais e daí evoluam para perceptos e conceitos (Tustin, 1986/1990).

Assim, seguindo a mesma lógica que leva Tustin a conceber as noções de forma-sensação e objeto-sensação, pensamos ser pertinente propor o termo sentimento-sensação: “Estas são experiências infantis muito primitivas, nas quais ‘sentimentos’ são experimentados de forma física tátil como sensações de vários tipos” (Tustin, 1986/1990: 69). Nos termos de Maldiney (1967/1973:

15 Esta concepção terá grande relevância clínica, uma vez que vai nos permitir conceber a possibilidade de transformação terapêutica da estrutura do eu, como veremos no Capítulo IV. espaço psíquico.

106): “A emoção não é efeito das qualidades do objeto (percebido ou concebido), mas uma dimensão da própria sensação”.

Tustin concebe um estado psicológico em que a experiência psíquica está baseada nas sensações corporais. Por exemplo, para seu paciente David a bola que desaparecera embaixo do divã, o furúnculo em seu dedo que a professora espremera, o seio-mãe que desaparecera e a própria Tustin que sairia de férias, eram a mesma coisa, pois despertavam nele a mesma sensação física de turgescência, de inchaço, e como tal eram intercambiáveis como fazendo parte de seu corpo. Estourar o furúnculo e o buraco que ficara em seu dedo era a explosão de sua raiva e a concretização de seu colapso iminente. Juntos formavam uma “espécie de modelo dos processos psicológicos” desencadeados como reação maciça à separação de seus pais, vivida por ele como dor psicológica insuportável. Segundo Tustin, esses sentimentos traumáticos excessivos, dada a sua precocidade frente à capacidade responsiva do Eu, foram vividos e inscritos em termos de sensações corporais (Tustin, 1972/1975: 45).

Em suma, diremos, a partir de Tustin, do Eu rudimentar como uma primeira organização subjetiva das experiências – experiências que, em estados tão rudimentares, são vividas e inscritas no corpo como sensações físicas. Esta é, a nosso ver, uma boa tradução de um Eu-corporal: um sentimento de existência fisicamente experimentado, em que sentimentos e objetos são vividos como “formas” sensoriais, inscritas no corpo.

Este estado rudimentar corresponde a uma experiência de adesividade que sustenta a fantasia de pele comum que caracteriza o Eu-pele em seu estado primário. Diferente das fusões adesivas autistas que nos remeteriam à imagem de uma moeda que não tivesse duas faces, na identificação adesiva que caracteriza o Eu rudimentar e faz parte dos processos constitutivos do envoltório psíquico, o mundo sensorialmente criado na superfície do corpo do bebê não leva à abolição da região de interface, de comunicação corporal (Haag, 1986).

Esse modo de percepção do mundo como sensorialmente colado à superfície do corpo é um dos fatores que sustentam a ilusão de continuidade entre o Eu e o ambiente, entre o bebê e o corpo de sua mãe. Outro fator é a

forma-sensação de um fluxo e refluxo como um jogo de trocas intersubjetivas entre o bebê e o ambiente maternante.

Referenciada a Bion, Tustin entende que, se no atravessamento da cesura do nascimento a criança traz consigo o registro das sensações do ambiente líquido no qual estava envolvida, e se suas primeiras alimentações e excreções estão associadas com líquidos e gases, nada surpreendente será supor que na passagem do meio líquido para o gasoso, as sensações associadas ao meio líquido tendam a ser “transportadas para as primeiras experiências da criança no mundo exterior” (Tustin, 1981/1984: 110) e a “subsistir na primeira ‘imagem’ corporal” (Tustin, 1986/1990: 181). Na clínica, ela encontra a referência à imagem de canos e tubos como primeira representação dos rudimentos de um Eu continente a organizar o fluxo desordenado de sensações; formas cilíndricas com aberturas nas extremidades, tal como a imagem plana do tubo digestivo ou de um rio a fluir entre as margens.

São rudimentos de continência imprescindíveis nesses tempos primários. Diferente do círculo – “outra categoria de forma elementar” – que indica, segundo Tustin (1986/1990: 130), a emergência ainda que momentânea de limites corporais mais definidos, da experiência de um espaço interior e da capacidade de memória, a forma-sensação de canos e tubos expressa características ainda mais primárias do sentido de ser. Se o encontro com ambiente cuidador assim o propicia, a forma-sensação implica, por um lado, certa organização no fluxo de sensações e por outro, abertos que são em suas extremidades, canos e tubos permitem o derramar-se em um ambiente continente e a ilusão de continuidade. Daí a angústia de liquefação, de esvaziamento, ser por ela considerada não só um estado de angústia muito primitivo, como também podendo acompanhar alguns estados psíquicos em que o Eu falha no exercício suficientemente bom de sua função continente.

Considerando “a natureza fluida da primeira imagem corporal proprioceptiva e o papel que essas sensações desempenham no estabelecimento de um sentido de existência” (Tustin, 1986/1990: 175), propomos dizer que Tustin estende a noção de rêverie materna a um estágio mais primário do processo de gestação psíquica: em sua existência fluida, o

bebê “derrama-se” no “‘útero’ da mente da mãe” sendo por ela abrigado tal como estava anteriormente abrigado no útero de seu corpo.

É em termos do “derramar-se na unidade”, do fluxo e refluxo contínuo e rítmico de seu ser, que a intersubjetividade vai ser corporalmente experimentada. Uma intersubjetividade que, quando harmônica, conduz a um sentimento de continuidade e à não percepção da separação dos corpos.

Enfatizamos que, além de sustentar a ilusão de continuidade, e talvez precisamente por isto, as relações de cuidado precisam se constituir também como terreno de trocas intersubjetivas. Veremos adiante que é apenas nessa medida que são alçadas à potência de processos constitutivos do Eu.

III.3 – A pessoalidade do ambiente maternante na dinâmica do

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 147-151)