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5.1 – O sentimento de ser Um

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 112-119)

Capítulo II Vicissitudes do conceito de Eu pelos passos

II. 5.1 – O sentimento de ser Um

Em termos clínicos, Federn não deixa dúvidas quanto sua a proposta: apresenta, de imediato, a perspectiva através da qual o tema do continente psíquico pode ser abordado:

O psiquismo foi dividido analiticamente apenas para permitir melhor compreensão intelectual. Os fenômenos em si mesmos não podem ser divididos em seções e etiquetados em função das divisões. Por isto, por exemplo, quem compreendeu mal a análise tem necessidade da síntese complementar. O mal-entendido consistiu em considerar erradamente o termo “psicanálise” como uma dissecção do psiquismo do analisante em partes constituintes, enquanto na verdade o termo representa esse trabalho intelectual no qual estão implicados ao mesmo tempo analisante e analista. (Federn, 1952/1979: 337)13.

A clínica, segundo Federn, não pode perder de vista a capacidade de síntese do Eu, o que, em seus termos, possui uma especificidade: o Eu é sempre, e desde sempre, uma unidade sintética, e a questão clínica se coloca no que é incluído e no que fica de fora dessa síntese. Ele reconsidera a teoria do narcisismo, valorizando-a como expressão do estado de integração do Eu, do sentimento de ser Um, como sentimento de Eu.

Por exemplo, no artigo “O mal-estar na civilização”, Freud, (1930[1929]/2010) não sem hesitação e dificuldades, em busca de “uma explicação psicanalítica – isto é, genética” para o que ficou conhecido como “sentimento oceânico”, o “sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo” (Freud), comenta:

A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática, ou os limites são traçados incorretamente; casos em que partes do próprio corpo e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu; outros, em que se atribui ao mundo externo o que evidentemente surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele. Logo, também o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são permanentes. (Freud, 1930[1929]/ 2010: 17)

Vemos que as considerações de Freud a respeito dos limites do Eu em relação ao mundo externo o levam a considerar uma perspectiva fenomenológica correlacionando-a a uma topologia do Eu; abordagem interessante que ele, no entanto, não explora. Sabemos que sua abordagem estrutural do Eu deixa de fora a ideia de sentimento e de mobilidade das fronteiras do Eu.

É justamente este o ponto de partida de Federn: quando Freud diz que há casos em que partes do próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental, lhe parecem estranhas e como não pertencentes ao seu Eu, Federn diria que a capacidade de síntese do Eu está comprometida. Entende que o que sentimos como fazendo parte de nosso Eu e o que sentimos como não-Eu é questão da realidade psíquica das fronteiras do Eu.

Diferente dos “conceitos habituais” (Federn, 1952/1979: 194), em sua visão, o Eu é mais do que as soma de suas funções, de suas atividades, do fenômeno da consciência, tudo isso pertence ao Eu; mas o Eu “é mais vasto”. Ele inclui as experiências psíquicas subjetivas dessas funções: “não é uma abstração, mas uma realidade” (Federn, 1952/1979: 67); não é uma ilusão, mas uma sensação; não é uma simples teoria, mas uma experiência real (Weiss in Federn 1952/1979: 12).

Para ele, o sentimento de Eu, o sentimento de existir como um Eu, é o sentimento da unidade na continuidade do tempo, do espaço e da causalidade; é uma experiência mental primária, constante e variável, que persiste ou é restabelecida apesar das interrupções, por exemplo, em situações de adormecimento ou desmaio. Em termos fenomenológicos, ele entende que, do ponto de vista do indivíduo, se há um sentimento de Eu é porque há um Eu, uma vez que o sentimento de Eu é o que “demonstra” a existência do Eu. Poderíamos dizer, sinto, logo existo.

Federn diferencia consciência de senso afetivo de Eu e faz deste sentimento a via de acesso ao Eu. Em sua teoria o sentimento de Eu é a experiência subjetiva de seu investimento libidinal e de sua estrutura, é a medida do próprio Eu. Deste modo, se o sentimento de Eu se altera, é porque o próprio Eu foi alterado, o que, a seu ver, justifica fazer das variações do sentimento de Eu a via de estudo do próprio Eu. “Cada vez que há uma mudança de investimento do sentimento de eu, temos o sentimento das ‘fronteiras’ de nosso eu”. (Federn, 1952/1979: 70).

No momento o que queremos destacar é a propriedade clínica que Federn confere ao sentimento de Eu: o sentimento de estranheza é expressão de brusca alteração no investimento em determinada região da fronteira do Eu,

fazendo com que o objeto em questão seja apenas apreendido, e não mais sentido (Anzieu, 1985/2000: 125) como fazendo parte do Eu.

Ao fazer das variações desse sentimento fenômenos privilegiados na construção de sua psicologia do Eu, Federn é alvo de críticas do meio psicanalítico, inclusive de Freud. Kohut, por exemplo, que via convergências entre suas proposições e as de Federn, procura dele se diferenciar entendendo que estas estavam próximas demais da fenomenologia, difíceis de integrar ao corpo teórico da psicanálise (Kohut apud Carvalho, 1996: 33).

Segundo Maria Teresa de Carvalho (1996), Federn era questionado quanto à pertinência de se fazer uso, em psicanálise, de manifestações que seriam exclusivamente da ordem dos sentimentos, isto é, sem nenhuma conexão com as ideias. Para Freud, seguindo a apresentação que Carvalho faz das discussões entre os dois autores, o sentimento possui uma natureza evasiva, o que nos obriga a reportá-lo às representações. Federn, por sua vez, não concordava com a atribuição de conteúdo representativo definido ao sentimento de Eu. Para ele “a essência do Eu é da ordem do sentimento, é da ordem do afetivo puro” (Carvalho, 1996: 113) e o sentimento de Eu é “A experiência residual que permanece após a subtração de todos os conteúdos ideais.” (Federn, 1952/1979: 68).

Supomos que ao insistir nesta abordagem, Federn pretendia introduzir um algo a mais na psicanálise, afastando o Eu de uma abordagem puramente “intelectual” como pura abstração conceitual entre sujeito e objeto. Neste sentido, Anzieu é bastante enfático em sua referência a Federn: “O Eu, do qual Freud fez uma entidade, existe: o ser humano tem dele uma sensação subjetiva, sensação e não ilusão, pois corresponde a uma realidade que é, ela mesma, subjetiva.” (Anzieu, 1985/2000: 121).

É essa perspectiva que adotamos: o Eu como ser psíquico, uma entidade subjetiva que é sentida, que cumpre funções e garante a manutenção da vida. Além disso, em termos clínicos, pensamos que a ideia de que o sentimento de Eu possa expressar sua realidade estrutural amplia as possibilidades de escuta clínica embora, a nosso ver, os recursos que Federn oferece não sejam suficientes nesse aspecto. Neste sentido, Anzieu agrega

recursos: a impressão que temos é que ele reconhece no pensamento de Federn, mais enfaticamente do que este, a perspectiva topológica. Ele vai reconhecer nas manifestações dos estados narcísicos de seus pacientes – que para Federn se expressam como sentimento de Eu – uma forma de representação pictogramática: as noções de significante formal e a de Eu-pele respondem por níveis diferentes do desenvolvimento do Eu concebidos por Federn.

Diz Federn, causando no leitor certa estranheza a respeito de nossas próprias convicções quanto ao que sabemos da onipresença como ilusão: “No seio de uma multidão de atividades cotidianas, “Sua Majestade o Eu” esconde seu poder onipresente e único” (Federn, 1952/1979: 254). Em nota de rodapé faz o esclarecimento de que a onipresença, sendo um atributo divino, foi a Ele atribuída pelo homem à sua imagem e semelhança. E conclui: “Como em seu próprio corpo sentia seu eu, ele [o homem] presumiu a existência no cosmo de um eu cósmico...” (Federn, 1952/1979: 254).

Poder encontrar, por trás das atividades funcionais, o próprio Eu, é o caminho que nos ensina Federn: Quem é este Eu que opera? Um Eu-psíquico, um Eu-corporal, um Eu-infantil? Qual seu tamanho? Qual sua força? Questões que imaginamos presentes no pensamento clínico de Federn e que certamente ecoaram no percurso clínico de Anzieu. Federn analisa os fenômenos clínicos pela perspectiva do Eu, abordagem que podemos também atribuir a Anzieu. No entanto, se em Anzieu supomos uma orientação predominante tendo o ‘como’ como indagação – como o Eu exerce sua função? –, em Federn, as variações do sentimento de Eu o fazem perguntar quem é o Eu por traz das funções. Uma indagação de identidade, mas uma identidade que talvez devamos descrever como estrutural-analítica-sintética, uma vez que busca observar o Eu em seus componentes, em seus movimentos, em suas variações, mas também, e sobretudo, em sua síntese:

Para estudar a psicopatologia do eu, consequentemente, devemos começar por extrair de nosso conhecimento clínico e teórico todos os fatos das teorias que se relacionam à unidade do eu em si mesmo e não a suas funções. (Federn, 1952/1979: 194)

A análise de situações como o processo do adormecimento e do despertar, desmaios, experiência de anestesia, momentos críticos de

sentimento de estranheza, ou despersonalização, situações vividas por ele ou auto-observações relatadas por seus pacientes, ofereceram a Federn rico material em que a variação do sentimento de Eu é experimentada em seu estado de passagem.

De suas observações, ele precisava responder como o Eu pode ser, ao mesmo tempo, uma experiência de continuidade, sendo variável. Da análise de suas observações, o que ele apreende, por um lado, é a estrutura do Eu, e por outro, a existência de dois componentes do sentimento de Eu: o sentimento corporal de Eu e o sentimento psíquico de Eu.

Como uma primeira abordagem, a estrutura do Eu será por ele definida de modo semelhante ao concebido por Freud no Projeto:

... cabe definir o eu como a totalidade das respectivas ocupações Ψ, na qual se separa uma parte permanente de uma variável. Como se compreende facilmente, as facilitações entre os neurônios Ψ, como possibilidades de indicar sua expansão em momentos sucessivos ao eu alterado, também pertencem ao patrimônio do eu (Freud, 1895/1995: 37).

Tal como descrito por Freud nessa passagem do Projeto, para Federn, o Eu possui uma estrutura de um núcleo idealmente estável e coeso, e uma periferia flutuante; continuidade em seu núcleo e flexibilidade em suas fronteiras. Além do que, como figura que se destaca em um contexto que se constitui, neste ato, como fundo diferenciado, o não-Eu, para Federn, ao constituir um campo de influência, isto é, um campo de possibilidades do que pode vir a integrar a síntese do Eu, também é patrimônio do Eu (Carvalho, 1996). Ou seja, os conteúdos psíquicos Pcs-Cs, não investidos no sentimento de Eu, fazem parte do Eu como potencialidade. Nos termos de Federn:

O eu se estende às fronteiras variáveis, se modifica com cada pensamento, cada moção de afeto, cada percepção; separado dele encontra-se outros múltiplos investimentos que correspondem a tudo o que é “não-Eu” e particularmente ao mundo exterior (Federn citado por Carvalho, 1996: 125).

No entanto, já vimos que Freud, no Projeto, valoriza a configuração em rede do sistema psíquico: ele se interessa mais pelos conteúdos. Federn, por sua vez, está referido à configuração de bolsa conferida ao psíquico no texto do narcisismo. Neste sentido, ele vai se interessar pelo movimento das fronteiras, o sentimento de flutuação das fronteiras do Eu sendo o que traduz

as variações do sentimento de Eu. Ele vai se referir à metáfora da ameba empregada por Freud no texto de 1914, mas para dela destacar o movimento das fronteiras. As fronteiras flutuantes são continentes flexíveis que, a cada instante, delimitam a plástica do Eu. O continente flutua, o conteúdo varia. A concepção de Eu que nasce da teoria de Federn é plástica: continente e conteúdo mantêm entre si uma relação intrínseca, e neste sentido a imagem da ameba é bem representativa. “A noção de fronteira do Eu é importante para expressar o fato de que realmente sentimos que o eu se estende tão longe quanto pode ir o sentimento de unidade dos conteúdos”. (Federn, 1952: 234).

Federn vai valorizar a noção de fronteira como limite do Eu, como o que permite pensar o Eu em sua extensão e em sua espessura. No que diz respeito

ao tema do continente, a noção de fronteira passa a ser, a partir de Federn, importante referência para se pensar a síntese do Eu e os processos de diferenciação entre Eu e não-Eu, uma vez que é o sentimento das fronteiras o fator que vai dar sentido a essa discriminação.

No que diz respeito ao sentimento corporal de Eu e ao sentimento psíquico de Eu, Federn não os concebia como entidades distintas no seio do Eu (Carvalho 1996: 98). Sua ideia era a de que o Eu, como unidade psicossomática, se constitui de um sentimento corporal e de um sentimento mental. Esta unidade, no entanto, podia ser interrompida, o que fez com que a diferenciação entre os dois se impusesse.

O sentimento psíquico de Eu, propõe Federn, “corresponde aos pensamentos ou mais precisamente às impressões que provêm da atividade de pensar” (Carvalho, 1996: 101). Representa o limite do Eu em relação ao território estrangeiro interior (Carvalho, 1996).

O sentimento corporal de Eu é o “a mais” que resulta do investimento unificante das experiências de corpo; pode ser “mais que o simples corpo nu da pessoa” (Federn 1952: 232), pois pode incluir aspectos do ambiente quando investido na unidade do Eu. Por exemplo, diz Federn, certamente com conhecimento de causa:

... é evidente que uma pessoa que emigrou para outro continente tem um eu corporal modificado e expandido de modo considerável em relação a seu eu corporal

precedente. Muitas dificuldades de adaptação a um novo país provêm da permanência da orientação precedente. (Federn, 1952/1979: 232).

O sentimento corporal de Eu representa seu limite em relação ao que se constitui como estrangeiro no mundo exterior. Nessa dissociação entre o sentimento corporal de Eu e o sentimento psíquico de Eu, o que surge como realidade para Federn é o sentimento de uma fronteira, inconsciente, que separa e permite pôr em contato esses componentes do Eu. Era sua convicção que, em termos topológicos, apenas com a suposição de uma fronteira é que as diferenças poderiam ser sentidas.

A realidade topológica das concepções de Federn permite-nos imaginá- las em sua espacialidade. Por exemplo, de forma alegórica, poderíamos dizer que para ele o sentimento psíquico de Eu é um sentimento de interior enquanto o sentimento corporal de Eu é mais externo; seria um Eu mais de superfície, embora o corpo como lugar de superfície não seja uma realidade por ele considerada (Carvalho, 1996:142) – pelo menos, não de forma temática (esta questão será uma fronteira na qual se encostam as pesquisas de Anzieu). Se algo é sentido como atravessando a fronteira do sentimento corporal de Eu, é considerado como sendo do mundo exterior. Neste sentido, Federn vai falar de um senso de realidade em acréscimo ao teste de realidade. Se um evento ocorre entre as fronteiras do sentimento psíquico e do sentimento corporal de Eu, ele é experimentado como possuindo realidade psíquica.

Ou seja, se um pensamento não é reconhecido como sendo próprio do pensador, ele não é sentido como conteúdo psíquico, e possui realidade objetiva; segundo Federn, este é o caso das alucinações psicóticas e do sonho (Carvalho, 1996: 179). A outra situação, em que o pensamento ganha realidade psíquica, Carvalho (1996: 169) explica que ele é reconhecido como sendo uma produção própria, contida pelo Eu-corporal: “Damos livre curso a nossa imaginação sem a impedir pelo julgamento ou pela razão, pois o eu-mental está desinvestido” (Carvalho, 1996: 169).

Federn vai propor que o Eu não é apenas um ser de fronteira, uma superfície, como descreveu Freud em 1923, mas que ele também possui fronteiras internas a sua própria organização. Deste modo, ele vai falar de fronteiras entre estados de Eu atuais e estados de Eu passados, fronteiras

entre regiões do Eu, entre o consciente e o inconsciente, entre o sentimento corporal de Eu e o sentimento psíquico. Do mesmo modo, vai supor uma fronteira, esta sentida como mais nítida, entre o Eu e o Supereu.

Adiantamos que para Federn, a flutuação das fronteiras do Eu é sustentada por um investimento libidinal narcísico de características próprias. Mas o que ele diz é que o investimento das fronteiras do Eu traz para a síntese do Eu seus conteúdos e suas funções, dando extensão ao sentimento de Eu. Se as fronteiras variam, o sentimento de Eu, os conteúdos do Eu e a funcionalidade do Eu também podem variar. Nos estados normais, pequenas variações podem ser expressão da capacidade plástica do Eu; mas também podem estar na origem de grandes distúrbios patológicos como a despersonalização.

Para ele, as fronteiras do Eu são estruturas vivas, narcisicamente investidas, barreiras sensitivas que reagem, que são atravessadas, que mudam de lugar, e cada movimento desses provoca mudanças no sentimento, no tamanho, na capacidade funcional, e nos conteúdos do Eu, constituindo um estado de Eu particular, isto é, um certo experimentar a própria existência e a do universo não-Eu, o que implica determinadas características funcionais e determinadas competências do Eu.

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 112-119)