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1 – Considerações iniciais: uma origem para o Eu?

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 136-139)

Capítulo III Processos Constitutivos do Eu: a

III. 1 – Considerações iniciais: uma origem para o Eu?

Conta a mitologia grega que, sentindo-se ameaçado pelo filho que em seu ventre Métis gerava, Zeus a engole grávida. Atena, a deusa que estava sendo gerada, nasce da onipotente cabeça do pai. Nasce já pronta, armada, lançando um grito de guerra. Vale acrescentar que apesar de estar revestida por uma armadura e de trazer na mão uma lança, na mitologia coube a Atena encarnar não uma divindade de fúria guerreira, das intensidades desmedidas, mas a divindade da guerra estratégica e defensiva, protetora dos homens, da vida política, da habilidade manual, das ciências e das artes. Atena representa, na mitologia grega a preponderância da razão e do espírito sobre o impulso irracional.

Inspirados pelo mito de Atena, começamos a pensar: qual o momento do nascimento do Eu? O Eu nasce pronto e armado como a deusa Atena, pronto para o exercício das funções que lhe são requeridas? Ou, ao contrário, o Eu nasce prematuro e deve se desenvolver? O que seria um processo de desenvolvimento do Eu: seu fortalecimento? A aquisição de relativo grau de autonomia em relação ao mundo interno e/ou ao mundo externo? Como nos referimos ao nascimento biológico, poderíamos falar de um processo de gestação psíquica?

Segundo os estudos de Tustin (1981/1984), a gravidez do corpo e a gravidez psíquica se entrelaçam, mas não coincidem no tempo. Biologicamente sabemos dizer do ato de concepção, do momento primeiro da existência do novo organismo e principalmente de seu nascimento, momento marcado pelo corte do cordão umbilical e pela abertura dos pulmões. Imaturo em suas habilidades físicas, o infante depende de seu meio como condição de sobrevivência. Seu crescimento e estado de maturação biológica, estritamente

falando, são lineares, geralmente observáveis, e podem ser avaliados e mensurados através das transformações qualitativas das estruturas, órgãos e tecidos dos sistemas vivos que os preparam para níveis mais elevados de organização e funcionamento.

Já no que diz respeito à concepção, ao processo de gestação e ao nascimento psíquico, frequentamos um terreno de imprecisões e hipóteses. A psicanálise cada vez mais se aproxima deste terreno produzindo teorias que nem sempre coincidem em suas propostas. Nossa intenção neste momento de nossa produção é a de nos aproximarmos desse terreno, os primórdios dos processos constitutivos do Eu, com intuito de enriquecer as construções e re- construções das distorções da topologia subjetiva. Teremos como baliza, por um lado, os aspectos que enfatizam predominantemente as experiências de relação continente/conteúdo e, por outro, autores que nos convidam a nos sensibilizarmos aos estágios pré-verbais dos processos constitutivos e do desenvolvimento do Eu; em comum, a suposição de que os processos de gestação psíquica possuem duplo suporte, no corpo biológico e no corpo social (Anzieu, 1985/2000).

Se nos permitirmos demorar um pouco nessas questões apenas introdutórias e nos reportarmos a Freud, encontraremos em seus textos referências pelo menos aparentemente paradoxais quanto ao momento e à condição do Eu em seu nascimento.

Do texto de 1914, Sobre o Narcisismo: uma Introdução, inferimos que para Freud existiria um estado psíquico primário que poderíamos caracterizar como pré-egoico, e que o Eu tem seu nascimento marcado por uma ação psíquica específica (equivalente ao corte do cordão umbilical). Não sabemos ao certo o que Freud tinha em mente quando se expressava em termos como “uma unidade comparável ao Eu”, isto é, quando confere certo estatuto de qualidade ao Eu. Mas se nos ativermos apenas a esse texto, ficaremos com a impressão de que o Eu, semelhante à deusa Atena, já nasce qualificado para as funções que lhe são requeridas.

Por outro lado, se recorremos ao texto pouco anterior ao do narcisismo, Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911), ou ao posterior, Além do Princípio do Prazer (1920), veremos, respectivamente, sob a

metáfora do ovo ou da vesícula protoplasmática, a referência a unidades primárias, formas simplificadas, a partir das quais estruturas mais complexas podem vir a existir. De fato, a partir destes textos não podemos falar, em sentido estrito, de nascimento do Eu, uma vez que o Eu está presente desde o início, e que o que Freud neles concebe são estágios de desenvolvimento do Eu. Encontramos no referido texto de 1911, no de 1915 (Os instintos e suas Vicissitudes) e no de 1925 (A Negativa), as noções de Eu-realidade original, (que caracterizaria o estado de origem), de Eu-prazer purificado, e de Eu- realidade definitivo, através das quais Freud busca elaborar não só a evolução das pulsões sob o predomínio dos Princípios de Prazer e de Realidade e sua consequência nas relações do sujeito com a realidade, mas acreditamos que também uma metapsicologia de estágios do Eu. Aqui não podemos falar em “unidade comparável ao Eu” uma vez que toda unidade, em seus variados graus de complexidade, é denominada ”Eu”. Poderíamos nos perguntar: que características são essenciais para configurar um Eu – o mínimo Eu?

A abordagem genética do Eu que ele então nos apresenta (e que pouco espaço possui na totalidade de sua obra) nos remete a um processo de complexificação do Eu: do Eu-corporal aos níveis diferentes de um Eu- psíquico, transformações e diferenciações sucessivas que o capacitam ao exercício de funções igualmente mais complexas.

Inspirados por esta abordagem genética poderíamos inferir uma característica plástica ao Eu, isto é, um Eu plástico, suscetível a transformações estruturais?

Segundo o dicionário Michaelis, em biologia a característica plástica diz da capacidade de ser moldado, do que facilmente se adapta às condições do meio, do que tende a formar tecido ou restaurar uma parte perdida. De acordo com Candiotto (2008: 110), em neurociência a plasticidade das células do sistema nervoso permite que os neurônios transformem, de modo prolongado ou até permanente, suas funções ou suas formas em resposta à ação do ambiente externo, podendo mesmo, de modo compensatório, restaurar funções perdidas ou produzir funções mal adaptativas ou patológicas. Ele acrescenta que a plasticidade será tanto maior durante o período de desenvolvimento do indivíduo, tendendo a declinar, sem se extinguir, na vida adulta. Para a filosofia,

ainda segundo o dicionário acima referido, plástico é o que tem o poder ou a virtude de formar.

Na psicanálise, a potencialidade do conceito de plasticidade permanece em estado latente. Em uma primeira abordagem, talvez pudéssemos falar, parafraseando Tustin (1986/1990: 99), de uma disposição para tomar formas. No entanto acreditamos que todas essas características referidas à plasticidade são pertinentes ao Eu e justificam a aposta em uma plasticidade do Eu: com Freud poderíamos dizer que do Eu-realidade original ao Eu- realidade definitivo, o Eu se trans-forma, se molda, se adapta, se re-estrutura... em função do ambiente, das exigências internas, mas, sobretudo – é o que queremos sustentar – em defesa da ordem vital ou de sua sustentação narcísica.

No capítulo anterior, na intenção de nos posicionarmos em relação às múltiplas acepções do conceito de Eu, nos deparamos com o paradoxo de uma concepção de Eu que tanto era um ser imaginário, pura ficção, como também uma estrutura funcional com peso de realidade. Vimos esta característica paradoxal se desenhar como consequente ao duplo movimento de constituição tanto do conceito como do próprio Eu: o metafórico e o metonímico entrelaçados. Deparamo-nos agora com um novo quadro de formulações igualmente paradoxais – a constituição do Eu de algum modo já constituído. Essas formulações ecoam em novos questionamentos que vão norteando nossas construções: se pensarmos retrospectivamente nos processos constitutivos do Eu, até onde devemos regredir, ontologicamente falando? Se pensarmos progressivamente, que consequências ou que vestígios dos processos de origem importam para o Eu nascente?

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 136-139)