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4.2 – Linha Metafórica

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 103-106)

Capítulo II Vicissitudes do conceito de Eu pelos passos

II. 4.2 – Linha Metafórica

Freud introduz o terceiro capítulo do livro O Eu e o Id com o seguinte comentário:

Se das Ich fosse apenas a parte do Id modificada por influência do sistema perceptivo, o representante do mundo externo real na psique, estaríamos diante de algo simples. (Freud, 1923/2011: 34)

Para ele, restringir das Ich à linha metonímica seria uma redução de sua

complexidade. Os processos de identificação, anuncia logo a seguir, também determinariam em grande medida “a forma tomada por das Ich”. A complicação a que se refere parece derivar da constatação de uma transposição de aspectos de objetos externos para o corpo de das Ich, tal como é evidenciado nos quadros de melancolia e na constituição do Supereu. Este processo caracterizaria, segundo Laplanche (1985a), a linha metafórica de derivação na produção do conceito e na própria gênese de das Ich.

Lembramos que o processo metafórico é, em última instância, um processo de transferência, de transposição de um modelo, de uma estrutura, de um lugar para outro. Em termos psíquicos representa, essencialmente, “a constituição no sujeito de verdadeiros objetos internos, ou até, indo mais longe, constituição do sujeito a partir do modelo desses objetos” (Laplanche, 1985a: 140. Grifado no original). Propomos que essas duas fórmulas devem ser pensadas separadamente.

No capítulo VII do texto Psicologia de Grupo e Análise do Ego, datado de 1921, pensando a configuração do complexo de Édipo, Freud o descreve como decorrente de um “avanço irresistível no sentido de uma unificação da vida mental” de “dois laços psicologicamente distintos”: uma catexia objetal e uma identificação. No que diz respeito à catexia objetal, sabemos que se trata de um movimento da libido objetal em busca da satisfação pulsional.

Mas o que seria, metapsicologicamente falando, o processo de identificação, tão essencial à “forma tomada por das Ich”?

Freud adianta a dificuldade de responder a esta pergunta e informa apenas que na identificação “esforça-se por moldar o próprio das Ich de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo” (Freud, 1921/1980: 134). Isto é, você passa a ser o que o outro é ou o que o outro tem, perpetuando em si o vínculo afetivo que mantinha com o objeto.

Esse processo de identificação – quer se apresente como relação de objeto primária, independente de investimento objetal prévio, quer se apresente

em sua forma secundária, como substituição a um investimento objetal perdido – tem como modelo a própria ingestão de alimentos, e remete à fase oral da organização da libido: o trazer para dentro de mim algo de que eu necessito e/ou que eu amo, mesmo que para tanto seja preciso aniquilá-lo. Haveria aqui uma transposição do modelo corporal de ingestão para o psíquico de identificação, o que permite a Freud falar do canibalismo como exemplo desse tipo de identificação.

Nesse sentido entendemos quando Laplanche se refere à identificação como a “constituição no sujeito de verdadeiros objetos internos” (Laplanche, 1985a: 140). Isto é, a constituição no seio de das Ich de suas instâncias ideais e do Supereu, e que o destacamento do Supereu como parte independente de das Ich faz parte do processo de constituição deste por identificação às imagos parentais.

Sabemos, no entanto, que não podemos resumir os processos identificatórios a sedimentações de marcas de outras pessoas, a introjeções de imagens exteriores. O processo de constituição do Supereu também nos ensina sobre a internalização de relações estruturais para além da introjeção das imagos parentais. Propomos ser neste sentido que Laplanche também destaca em seu texto a identificação ao outro em sua abstração, a “constituição a partir do modelo do objeto” (Laplanche, 1985a: 140). Nesta fórmula o movimento metafórico nos parece mais evidente, e talvez tenha sido o que encontrou mais desdobramentos na psicanálise: a constituição de das Ich se daria por analogia, a partir de modelos de experiências ou relações estruturais. Reconhecemos aqui alguns aspectos do conceito de estágio do espelho a que nos referimos anteriormente: a identificação a um outro corpo apreendido em sua totalidade – puro invólucro, acrescentamos – separando um dentro e um fora.

Por esta perspectiva identificatória, reencontramos a noção de das Ich como estrutura psíquica, o que é relegado ao segundo plano na fórmula anterior, a da “constituição no sujeito de verdadeiros objetos internos”, quando o que é priorizado é a constituição de objetos internos como conteúdos psíquicos.

Se anteriormente demos voz ao processo de identificação como ser o que o outro é ou o que o outro tem, neste processo de constituição por analogia a um modelo, sugerimos uma outra legenda: o que ele faz, agora eu sou. O que estaríamos propondo é a possibilidade de pensar um deslizamento metafórico entre a função e o ser, ou então que a função é determinante da qualidade de existência. Estaríamos supondo um fazer na anterioridade do ser. Um fazer que, no desamparo inicial do infante, inclui o ambiente cuidador mas também o corpo. Dito de outro modo, pensamos que a qualidade com que das Ich pode cumprir suas funções narcísicas é inerente ao ser, e participa do sentimento de existência

Afastando-nos um pouco de Laplanche, mas mantendo sua linha de raciocínio, achamos importante acrescentar que reconhecemos na Teoria do Eu-pele de Anzieu (1985/2000) uma outra linha metafórica de constituição de das Ich como estrutura psíquica. Vimos que em sua elaboração da noção de Eu-pele, o movimento metafórico se dá do corpo para o psíquico, e não apenas do objeto para das Ich.

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 103-106)