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2 – Sobre a Noção de Eu Rudimentar

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 144-147)

Capítulo III Processos Constitutivos do Eu: a

III. 2 – Sobre a Noção de Eu Rudimentar

Pensamos, como Federn, que se há sentimento de existência podemos falar de um Eu, ainda que rudimentar. E que, neste sentido, o que importa é como esse Eu é experimentado e que recursos possui, ou de que recursos pode lançar mão para sustentar a vida, mesmo que sejam recursos fornecidos por um Eu auxiliar de cuja existência ainda não tenha conhecimento.

Na literatura psicanalítica, encontramos duas imagens que buscam representar o sentimento de Eu em seu estágio rudimentar: a metáfora do ovo, concebida por Freud (1911, 1920) e a de um Eu estendido. Para Freud, o estado psíquico primário é relativamente fechado aos investimentos do mundo externo, formando como uma barreira a esses estímulos, como um ovo, embora nele esteja incluído “o cuidado que recebe da mãe” (Freud, 1911/1980: 279). Esse modo de experimentar a existência é valorizado por Margareth Mahler (citada por Tustin, 1981/1984) e por ela designado como um estágio de autismo normal. Chamaremos este estado de Eu-ovo.

A outra imagem nos remete ao estado de um Eu estendido a todo o ambiente externo, como vimos enfatizado por Federn e que posteriormente, e por outras referências teóricas, autores como Bick, Winnicott e Tustin nos fazem entender e com ela ganhar certa familiaridade. No essencial, o que esses autores concebem é que o Eu rudimentar é vivido fisicamente (Tustin, 1972/1975), e dele fazem parte o ambiente cuidador e a própria ação do cuidado. “Não saber onde o corpo começa e onde ele termina é uma das primeiras experiências vividas”, afirma Ivanise Fontes (2010: 68). Ou seja, o bebê, o cuidador e o cuidado maternante criam um estado psicológico de

unidade: “... a mãe e o bebê, o mamilo (ou mamadeira) e a língua juntam-se no esforço de produzir, de confirmar, uma ilusão de continuidade...” (Tustin, 1972/1975: 36). O que é o mesmo que dizer com Winnicott (1960a/1983) que “não existe tal coisa como um lactente” se não considerarmos em continuidade a presença da mãe e o cuidado maternante.

As duas imagens ecoam a proposição freudiana de que o Eu em seu estado rudimentar é um Eu-corporal, e pontuam um estado de origem de indiferenciação e um processo de desenvolvimento qualificado tanto como diferenciação, separação, individuação, ou ainda, maior autonomia.

Essas duas concepções de um estado rudimentar de Eu se distinguem tanto em seus pressupostos como em suas consequências. A suposição do Eu-ovo, como um estágio primário de autismo normal que responde por uma concepção de bebê fechado aos estímulos externos não é compatível com a observação de autores, como Brazelton (1981/1986, 2011) que via os recém- nascidos ativos e responsivos. Tustin (1994), por exemplo, se dá conta, curiosamente, de que as crianças que desenvolvem defesa autista viveram com suas mães uma “relação que era anormalmente próxima”, fizeram com ela um “pacto fusional”, e juntas, “soldadas”, formavam uma “equação aditiva” e que isto as deixou “fracas”, “vulneráveis” e “incapazes de enfrentar situações da vida”.

Sugerimos que para Tustin, diferentemente do que propunha Mahler, uma metapsicologia de um Eu rudimentar que correspondesse a um quadro fenomenológico autista e se assemelhasse à imagem de ovo, mais representava uma falha no desenvolvimento dos rudimentos de um Eu “suficientemente forte” e funcionalmente capaz o bastante de “enfrentar situações da vida” frente à consciência da separação. Para se referir a essas falhas impeditivas do desenvolvimento do sentido de ser um Eu (Tustin, 1994: 108) Tustin se utiliza da bela metáfora “plantas de estufa”.

Ora, se consideramos a precocidade com que se instala a patologia autista psicogênica, podemos dizer que encontramos em Tustin uma sintonia com as proposições que adotamos a partir de Bion e de Brazelton (1981/1987), de que os rudimentos do Eu têm suas raízes na vida intrauterina. A formulação etiológica de uma relação anormalmente próxima entre mãe e bebê nos faz

supor que algum nível de separação é salutarmente suposto. A concepção de um estado fusional autista como um dos elementos etiológicos de patologias tão primárias parece bem designar uma falha grave naqueles processos embrionários de “fluxo e refluxo contínuo, rítmico” (Tustin, 1986/1990: 181) que envolvem a mãe e o bebê desde os tempos uterinos, como descreve Brazelton (1981/1987), e que se prolongam além da cesura do nascimento.

Sob a concepção de um Eu-ovo, foca-se, predominantemente, a regulação fisiológica, e não se consideram as interações sociais, isto é, a concepção de um bebê responsivo e estimulado pelo ambiente. Neste estágio, os processos fisiológicos predominam sobre os psicológicos: o bebê é passivo e fechado sobre seu mundo interior, tanto sensorial como psíquico, e só entra em contato com seu entorno através da satisfação de suas necessidades fisiológicas. Nesse caso, não cabe propor um modelo de relação intersubjetiva.

Na outra concepção, a fenomenologia de um Eu rudimentar que correspondesse a um sentido de ser estendido ao ambiente, expressa, por sua natureza corporal, um repertório de sensações relativamente indiferenciadas (Tustin, 1981/1984) dando ao Eu desse estágio rudimentar, o sentimento de ser um “fluxo de sensações físicas” que põe em continuidade, como sendo parte do Eu, tudo o que experimenta. É importante ressaltar, entretanto, que não se trata para Tustin de um estado desprovido de objeto, como podemos ler em Freud, nem que há uma relação de objeto em sentido estrito, como Tustin entende ter sido proposto pelos “teóricos das ‘relações-objetais’” (Tustin, 1981/1984: 15). Nesta concepção, diferente da anterior, o ponto de vista é predominantemente subjetivo e não se pode prescindir dos aspectos psicológicos. Apesar da ênfase dada à experiência de continuidade Eu - ambiente, veremos, ainda nos apoiando em Tustin, que a relação intersubjetiva não apenas é suposta, como é necessária.

III.2.1 – O Eu rudimentar é, primeiro e acima de tudo, um Eu-corporal

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