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3 – A pessoalidade do ambiente maternante na dinâmica do cuidado

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 151-156)

Capítulo III Processos Constitutivos do Eu: a

III. 3 – A pessoalidade do ambiente maternante na dinâmica do cuidado

O papel do ambiente na constituição psíquica tem sido destacado nas diferentes teorias psicanalíticas, embora de forma não unificada. Quando escreve o texto A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929), Ferenczi já nos apontava as graves consequências que a falha no acolhimento do infante, a falha em recepcioná-lo (Figueiredo, 2010) à sua chegada ao mundo externo, implicava. Ferenczi foi dos primeiros a enfatizar uma estreita relação entre a saúde mental e as relações de cuidado que o ambiente propicia à criança desde sua origem. Defendia a ideia de que a fragilidade da “força vital” do infante, isto é, sua frágil capacidade de resistir às dificuldades da vida (Ferenczi, 1929) inerentes, acreditamos, ao processo de constituição do humano, exigia que o ambiente se ocupasse em oferecer não apenas “condições particularmente favoráveis de proteção”, mas também, “amor, ternura e cuidado”. A sensibilidade de Ferenczi para as carências e traumas vividos muito cedo provavelmente guiava seu olhar clínico.

Ele entende que a relação de amor e cuidado que o ambiente oferece à criança desde o “início da vida, intra e extrauterina” é determinante de sua constituição psíquica e, de tal modo fundamental, que passa a ser necessária a atenção às sutilezas com que todo o processo é vivido.

Para Ferenczi, falhas nas relações de cuidado primárias deveriam ser clinicamente consideradas não apenas para fins diagnósticos, mas também como orientação da estratégia terapêutica. Atualizando suas palavras ao nosso contexto, entendemos que ele está dizendo que esses pacientes quando chegam ao consultório não possuem um Eu suficientemente desenvolvido que os capacite ao trabalho “que normalmente caracteriza nossas análises” – a equivalência que ele estabelece entre a clínica desses pacientes e a clínica de crianças permite esta compreensão. É necessária, diz ele, uma preparação para o tratamento que propicie ao paciente a possibilidade clínica de experimentar pela primeira vez relações de cuidado que o ambiente primário falhou em estabelecer ou não lhe ofereceu.

É só mais tarde que se pode abordar, com prudência, as exigências de frustração, que normalmente caracterizam nossas análises. (...) mas, espera-se, completada também pela faculdade de gozar da alegria lá onde ela realmente se oferece. (Ferenczi, 1929: 317. O grifo é nosso.)

Em seu comentário, Ferenczi chama a atenção para a sutileza implícita na natureza do cuidado, quer se trate dos tempos primários, quer se trate do cuidado terapêutico.

Figueiredo (2009b), em A metapsicologia do cuidado, nos apresenta o que propõe ser uma “teoria geral do cuidado”. Seu fundamento principal é que a função de cuidado – poderíamos acrescentar, de um cuidado suficientemente bom – implica um “equilíbrio dinâmico” entre as diversas modalidades de relação intersubjetiva como uma presença implicada e um cuidado em negativo, isto é, um poder retirar-se pondo-se em reserva de modo a “oferecer ao objeto de cuidado um espaço potencial desobstruído, não saturado por sua presença e seus afazeres” (Figueiredo, 2009b:143). Entre funções da “presença implicada” e da “presença em reserva”, o que Figueiredo nos apresenta é uma dinâmica intrínseca e necessária a uma qualidade suficientemente boa de cuidado que a mãe deve tecer propiciando, potencialmente, experiências que capacitem, em nossas palavras, o nascimento psíquico, e que o Eu, ao introjetar as funções cuidadoras, se descole do agente cuidador, ganhe autonomia, e possa exercer suficientemente bem as funções de cuidado de si mesmo.

O cuidado implicado é aquele em que a mãe se faz presente através de seus afazeres: sustentar, conter, reconhecer, interpelar e reclamar são funções do cuidado em que a mãe se implica, e se deixa implicar, em uma relação intersubjetiva com seu bebê. Figueiredo sistematiza três modalidades de experimentação da relação intersubjetiva como três formas diferentes de experimentar a relação Eu/não-Eu. A função de sustentar e conter, por exemplo, proporciona a experiência de continuidade e de relação continente/conteúdo, e, segundo nosso ponto de vista, nos diversos níveis e possibilidades em que ela se apresenta como um dos elementos estruturantes do Eu, como veremos posteriormente. A estas funções Figueiredo associa uma experiência de “intersubjetividade transubjetiva”, isto é, a constituição de um campo intersubjetivo que comporta uma “indiferenciação eu-outro total ou relativa” (Figueiredo, 2009b: 119).

O reconhecer, por sua vez, corresponde a uma relação de cuidado que pressupõe um grau maior de diferenciação Eu/não-Eu, uma vez que implica “dois sujeitos frente a frente exercendo um para o outro – embora a responsabilidade especial caiba ao cuidador – a função de reconhecer” (Figueiredo, 2009b: 137), quer no sentido do testemunhar, quer no sentido reflexivo. É nesse sentido que podemos falar, no que se refere à função de reconhecer, de uma intersubjetividade interpessoal. Figueiredo destaca a experiência da justa medida propiciada por essa função de cuidado, terreno em que a autoimagem e a autoestima lançam suas raízes. Deixamos para o instante apenas pontuado que supomos a possibilidade de desdobramento da experiência reflexiva como uma relação de duplo feedback (Brazelton, 1981/1987) criando uma região de interface, constitutiva do Eu. Entendemos que a função de adaptação ressaltada por Winnicott (1956/2000) está, em grande medida, relacionada à função reflexiva.

A terceira modalidade de experiência intersubjetiva está designada como “intersubjetividade ‘traumática’” no sentido de que compete ao agente cuidador, “marcado desde sempre pela diferença e pela incompletude”, apresentar “a diferença radical entre eu e o outro”, isto é, promover e sustentar o confronto das diferenças, nesta medida, ‘traumático’, condição, segundo Figueiredo, para que as subjetividades sejam instituídas. Para tanto, a mãe deve exercer

também as funções de interpelar, separar, inspirar, reclamar pela presença viva e interativa (Alvarez citada por Figueiredo, 2009b) do objeto de seu cuidado.

No entanto, diz Figueiredo, “até de doce de coco, que é bom, a gente enjoa”. Do mesmo modo que os afazeres são fundamentais no que participam do processo de gestação psíquica, é também necessário, como elemento de gestação psíquica, que a mãe se ausente de suas funções implicadas e se ponha em reserva: é preciso que proporcione espaço e tempo para que a criança possa, por sua fez, se fazer, ela também, criadora e ativa.

O ponto nodular da abordagem de Figueiredo é a noção de equilíbrio dinâmico, uma vez que todos os excessos promovem distorções traumáticas – traumas cumulativos e distorções do Eu (Khan, 1963/1977); excessos para mais e para menos nas funções implicadas e nas retiradas em reserva. Na trama tecida na intenção de um equilíbrio dinâmico, nos alerta Figueiredo, “é preciso muita atenção para a questão da ‘dosagem’” ou, poderíamos dizer com Ferenczi, “é preciso prudência”. Em sua teoria sobre o cuidar, Figueiredo nos revela a característica viva, de dinâmica vincular, que deve reger as relações de cuidado.

Mas como saber da questão da dosagem?

No texto O ambiente saudável na infância, Winnicott (1987/1999), em sua sensibilidade, diversas vezes utiliza o qualitativo “sutil” quando se refere ao que acontece entre a mãe e o bebê. Ou seja, não estamos falando dos processos maternos ou dos processos do bebê. Sem desconsiderar a dissimetria fundamental entre os ‘estados mentais’, Winnicott nos remete ao entre, ao campo do transicional, ao vínculo.

Olhar bem de perto esta questão da “sutileza do relacionamento genitor- bebê” (Winnicott, 1969/1994) revela, segundo Winnicott, um nível de comunicação que não implica a “capacidade de objetivar” (Winnicott, 1969/1994), isto é, não é uma comunicação simbólica com um objeto objetivamente percebido e do qual o bebê se saiba diferenciado. Ele propõe que uma teoria da comunicação que se endereçasse a esses momentos iniciais de indiferenciação Eu/não-Eu, em que o bebê se experimenta em continuidade física com a mãe-ambiente, deve considerar que uma vez que o objeto é subjetivo, a comunicação não é explícita. Muito pelo contrário, é uma

“comunicação silenciosa”, corporal, pele a pele, por atitudes e comportamentos (acrescentamos nós), intersubjetiva, como propõe Figueiredo, mesmo que do ponto de vista do bebê ainda não possamos falar de nenhum “outro”.

Em sua teoria, Winnicott valoriza a capacidade de adaptação materna como fator de comunicação: “Existe comunicação, ou não, dependendo do fato de a mãe ser ou não capaz de se identificar com o bebê e de saber o que significa a necessidade, antes que as necessidades específicas se manifestem.” (Winnicott, 1987/1999: 95). Ou seja, a resposta materna daria sentido de comunicação ao que o bebê comunica sem saber que comunica. Ela, por sua vez, se comunica com o bebê através das atividades de cuidado, transmitindo amor e confiança segundo sua capacidade de adaptação.

Mas no que diz respeito à questão da dosagem, à composição de um equilíbrio dinâmico das modalidades de relações intersubjetivas, acreditamos que não podemos prescindir da participação do bebê na dinâmica adaptativa

:

... podemos dizer que a comunicação é uma questão de reciprocidade na experiência física.” (Winnicott, 1968/1999: 89)

Interessam-nos as noções de reciprocidade e mutualidade com as quais Winnicott qualifica o interjogo que vincula mãe-bebê nesses estados primários. Nelas vislumbramos um bebê mais participante da dinâmica que deve reger as relações de cuidado; um bebê em interação, inserido e envolvido com o ambiente maternante. A experiência mãe-bebê de reciprocidade concebida por Winnicott nos faz evocar a noção defendida por Brazelton de uma relação em duplo feedback que faz do bebê um parceiro na interação.

Segundo Brazelton (1981/1999), o bebê manifesta em comportamento seus limiares de vulnerabilidade e sua vitalidade, isto é, sua necessidade de contato. De suas pesquisas com recém-nascidos, ele nos apresenta, como exemplo, uma situação de interação rítmica entre mãe e bebê através do interjogo de olhares, como uma comunicação silenciosa: entende que o desvio do olhar por parte do bebê, refletia seus limiares de vulnerabilidade, a partir do qual ele se sentia exposto a um excesso de estimulação; do mesmo modo, na busca do olhar materno, ele solicitava e estimulava nela um movimento de adaptação, ao mesmo tempo que a gratificava. Ela olha, ri, brinca, estimula,

solicita, não apenas aprovando e devolvendo em espelho movimentos do bebê; no processo de adaptação, a mãe interpela, incita o bebê a ir além, ao encontro de suas expectativas sem, no entanto, ultrapassar as possibilidades da criança.

Essa microdinâmica que anima as relações de cuidado, revela sua característica rítmica; o jogo interativo, em duplo feedback, que o bebê e o círculo maternante estabelecem entre si, conferem ritmo às relações de cuidado e favorecem seu equilíbrio dinâmico. Este propicia ao bebê, nos casos bem-sucedidos, a experiência de justa medida. Ao ambiente cuidador, compete acompanhar os movimentos do bebê, como parceiros em dança – uma dança implica equilíbrio dinâmico –, sem o que o bebê pode experimentar uma invasão que rompe a pele delicada com que se protege, obrigando-o a desenvolver mecanismos de proteção compensatórios.

Deste modo acolhido pela mãe-ambiente, o bebê se sente tocado, vivo, envolvido e se envolvendo com um ambiente que, diferente dos objetos físicos, é animado e responsivo (Anzieu, 1985/2000: 80). Um ambiente que, neste interjogo, se faz também conhecer em sua pessoalidade.

III.4 – Eixos complementares dos processos constitutivos do

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