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5.3 – Do Eu-pele ao Eu-pensante

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 174-178)

Capítulo III Processos Constitutivos do Eu: a

III. 5.3 – Do Eu-pele ao Eu-pensante

Vimos que o interdito primário de tocar incide, propõe Anzieu, sobre a pulsão de apego: “O interdito de tocar, diferente do interdito edipiano, não exige uma renúncia definitiva a um objeto de amor, mas uma renúncia à comunicação ecotátil como modo principal de comunicação com os outros.” (Anzieu, 1985/2000: 194)

Isso posto, queremos supor que, se colada à pele da mãe a criança experimentou proteção, sustentação e até mesmo a possibilidade de comunicação, o interdito de tocar, ao impor uma nova experiência de espaço, vai exigir a reestruturação desse modo de existência, um redimensionamento das relações objetais e o desenvolvimento de uma nova forma de comunicação. Como manter as relações com os objetos primordiais e a possibilidade de comunicação senão reestruturando o Eu e dando a ele novas possibilidades de exercício de sua funcionalidade? Para tal, é preciso que o Eu

tanto se desprenda de sua base corporal como também possa recuperá-la como um Eu-psíquico e um Eu-pensante; é preciso transformar o modo de comunicação corporal em uma comunicação à distância, mais simbólico; é preciso transformar o contato corporal em outro, internalizado e fantasiado (Green, 2000). Ou seja, nos inspirando em Green (2000), entendemos que a interdição da satisfação não mediatizada da pulsão do apego por contato corporal, deve gerar no psiquismo estruturas que ofereçam outra forma de contato, agora internalizado: o desenvolvimento simbólico e a configuração do ambiente interno, sede da realidade psíquica.

Como passar da simples consciência do objeto (quer dizer, de uma vivência corporal bruta) a seu conhecimento? Como avançar do eu consciente ao eu pensante, do eu que percebe os objetos externos ao que reflete sobre seus conteúdos internos? (Anzieu, 1993/1998: 34)

É nesse sentido que entendemos o caminho que nos aponta Anzieu, sem tecer sobre ele nenhuma consideração:

Se as angústias ligadas a essas fantasias [as que decorrem da separação das peles] chegam a ser superadas, a criança adquire um Eu-pele que lhe é próprio de acordo com um processo de dupla interiorização:

a) Da interface que se torna envelope psíquico continente dos conteúdos psíquicos (de onde a constituição, segundo Bion, de um aparelho para pensar pensamentos).

b) Do círculo maternante, que se torna o mundo interior dos pensamentos, das imagens e dos afetos. (Anzieu, 1985/2000: 89)

Talvez ele tenha dispensado esclarecimentos devido à evidente relação que estabelece com a Teoria sobre o Pensar de Bion.

É conveniente encarar o pensar como atividade que depende do resultado satisfatório de dois desenvolvimentos mentais básicos. O primeiro desenvolvimento é o dos pensamentos. Estes requerem um aparelho que deles se encarregue. O segundo desenvolvimento, consequentemente, é o desenvolvimento do aparelho que provisoriamente chamarei [atividade ou faculdade de pensar]. (Bion, 1962/1994: 128)

Vemos que a interiorização do círculo maternante e a interiorização da interface correspondem aos dois desenvolvimentos mentais básicos supostos por Bion: pensamentos e o pensar. Para Anzieu, o mecanismo de identificação projetiva e o processo de rêverie materna implicam a aquisição do Eu-pele, daí a aproximação que estabelece entre a ultrapassagem do Eu-pele e a Teoria sobre o Pensar de Bion. Em decorrência dessa aproximação, o nascimento do Eu-psíquico tem como correlato a gênese do Eu-pensante.

Diz Anzieu:

Descrever um objeto é fazer-se uma ideia (uma representação) dele; essa ideia do objeto é ainda confusa (Spinoza) e se tornará mais precisa em esquemas (Kant), dos quais existem duas grandes categorias: os esquemas17 de envolvimento e os esquemas de transformação... Tais esquemas concernem ao pensamento e ao pensar. (Anzieu, 1993/1998: 14)

Anzieu estabelece uma relação entre as experiências de envolvimento vividas com o círculo maternante, o desenvolvimento de significantes formais de envolvimento e os pensamentos, e outra entre a estrutura de interface do Eu-pele e o desenvolvimento de significantes formais de transformação e a atividade de pensar.

Sabemos que as experiências de envolvimento e as de transformação rítmica são aspectos de uma mesma relação do bebê com o ambiente maternante, e que a diferenciação de um significante formal de envolvimento e a tecedura de uma estrutura de interface representam eixos diferentes dos processos constitutivos do Eu e que apenas hipoteticamente se apresentam igual e idealmente desenvolvidos. Acreditamos que, como faz Anzieu, separar o processo de interiorização desses dois aspectos da estrutura continente do Eu, tem por finalidade enriquecer o raciocínio clínico: podemos experimentar distorções no desenvolvimento do significante formal de envoltório e/ou distorções na configuração e desenvolvimento da estrutura de interface.

Anzieu logo anuncia a primeira condição para que o interdito de tocar possibilite um nascimento psíquico saudável: é necessário que mãe e criança possam suportar as angústias que o interdito de tocar possa suscitar – condição imprescindível, já apontara Bion, para que o aparelho psíquico se reestruture trazendo para seu interior as experiências de superfície. Isto é, que a criança internalize as experiências constitutivas vividas nas relações de cuidados ao nível do Eu-corporal; que ela internalize as qualidades afetivas, mas também as relações estruturais.

Acreditamos que a interiorização do Eu-pele implica a interiorização do próprio campo vincular, da estrutura de interface e da estrutura de envolvimento que mãe e criança tecem juntas desde o tempo de vida

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A utilização do termo “esquema” no lugar de significante formal é proposto por Serge Tisseron (1993q1998). Anzieu aqui o adota por referência ao texto de Tisseron.

intrauterina. É nessa medida que as configurações estruturais constituídas ao nível do Eu-corporal e vividas à flor da pele, com suas características individuais, são interiorizadas e transpostas ao Eu-psíquico, conferindo-lhe particularidade funcional.

Um segundo ponto merece destaque. Diz Anzieu: “a criança adquire um Eu-pele que lhe é próprio”. Ou seja, a ultrapassagem do estado do Eu-pele levaria à aquisição de um Eu-pele próprio. Esta estranha formulação nos parece sobredeterminada, no sentido de que traz implícitos pelo menos dois pensamentos: primeiro, o Eu-pele, do mesmo modo que o Eu-corporal, não desaparece – “a superação do Eu-pele não leva a abolir o Eu-pele”, diz Anzieu (1985/2000: 191) e acrescenta que o seu estatuto é complexo: “são ao mesmo tempo negados, ultrapassados e conservados” (Anzieu, 1985/2000: 194); eles precisam ser recalcados cedendo espaço para um funcionamento psíquico mais autônomo, mas também conservados. De recalcados, podem ser intensamente reinvestidos, como supõe a metapsicologia de Federn, surgindo à frente da cena psíquica e revelando, em sua configuração suas marcas constitutivas.

Para Anzieu, o Eu-pele se mantém como pano de fundo para as “correspondências intersensoriais”, isto é, explica o autor, como um espaço psíquico de “articulação” dos dados multissensoriais e de encaixe dos envoltórios psíquicos (Anzieu, 1985/2000: 195), ao que acrescentamos: provavelmente também como espaço de articulação e encaixe entre os diversos níveis de estados do Eu. Diz Anzieu, (1994/1995: 24) que se o núcleo do espírito é o eu pensante, o córtex é o Eu-pele.

Entendemos que o Eu-pele nunca perde seu estatuto de intermediário, e neste sentido, através dele, do corpo ao Eu-pensante, os estado de Eu se encaixam, se inter-relacionam, estabelecem fronteiras e se diferenciam; uma rica dinâmica anima a topologia psíquica.

Se a ultrapassagem do Eu-pele não implica seu desaparecimento, que sentido ela possui? Para Anzieu – este é o segundo pensamento que sobredeterminaria sua formulação – o Eu-pele, se suficientemente bem constituído, se transforma da fantasia de pele comum ao sentimento de ser dono da própria pele. Deste modo, diz Anzieu, “o eu psíquico desabita o eu

corporal e não mais localiza o sentimento no corpo senão que no espaço psíquico, que tende, então, a ser ilimitado” (Anzieu, 1994/1995: 115).

Já nos referimos no item anterior às múltiplas vicissitudes da transformação da fantasia de pele comum quando, no movimento de ser dono da própria pele, a criança experimenta a insuficiência de uma sustentação narcísica independente. O descolamento das peles, por vezes, pode se transformar na fantasia de manter sua pele colada à pele do ambiente maternante como recurso contra um colapso narcísico. Nas ilustrações clínicas que apresentaremos no capítulo seguinte, encontraremos em Aquiles a fantasia de possuir uma “cola forte” a unir sua pele à de sua mãe.

Queremos supor que, inserido na dinâmica das relações de cuidado, do corpo ao Eu-pensante, experimentamos pequenos nascimentos, transformações estruturais e qualitativas no sentimento de ser e nas possibilidades funcionais.

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 174-178)