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5.3 – O “retorno” a Freud através de Federn

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 129-136)

Capítulo II Vicissitudes do conceito de Eu pelos passos

II. 5.3 – O “retorno” a Freud através de Federn

Vimos que Federn não se acanha frente à complexidade que Freud empresta ao Eu em sua origem. Em seu desenvolvimento teórico ele acata tanto a característica do Eu de ser um sentimento que representa a totalidade da pessoa, como também lhe confere um “peso de realidade” (Carvalho, 1996: 6) como instância funcional que toma para si a tarefa de defesa da vida (Laplanche, 1985b). Na psicologia do Eu de Federn não há como separar os aspectos fenomenológicos, os metapsicológicos e a eficácia funcional do Eu: sentimento de Eu, investimento libidinal, estrutura e funcionalidade; como ponto de nodulação desses aspectos, a dinâmica das fronteiras.

Maria Teresa de Carvalho (1996), em sua pesquisa sobre o pensamento de Federn, tendo como referência o mesmo texto de Laplanche acima referido, organiza as elaborações de Federn, tanto no que diz respeito aos processos de desenvolvimento do Eu, quanto à dinâmica de flutuação das fronteiras em dois eixos, um correspondendo ao movimento metonímico de derivação, e outro ao metafórico. É como se as fronteiras do Eu perpetuassem, em suas flutuações, os mesmos movimentos que estiveram na origem dos processos de constituição do Eu.

Sob a perspectiva genética, o processo de derivação metonímica, foi, a nosso ver, o mais considerado pela teoria de Federn no que diz respeito ao

desenvolvimento do Eu. Este se refere ao processo de maturação em que o Eu se separa do ambiente e expande suas fronteiras incluindo em sua unidade novas funções, novas representações e novas associações. Ou seja, como por um deslizamento metafórico, o Eu se diferencia do todo indiscriminado que nele incluí o ambiente, e neste movimento de diferenciação deve assumir por sua própria conta a funcionalidade psíquica. Nesse processo de independência, ele amplia seu domínio de influência, isto é, tudo aquilo que está à sua disposição no momento atual, e que pode ser investido pela libido narcísica e incluído na síntese do Eu, como dissemos anteriormente a respeito da estrutura do Eu

Em continuidade a este movimento de derivação metonímica, as fronteiras do Eu flutuam em uma dimensão, propõe Maria Teresa de Carvalho, horizontal. A partir de uma perspectiva sincrônica (Carvalho, 1996: 1290) considera-se o que está incluído na síntese do Eu no momento atual e o que é “não-Eu” – o que não está incluído na síntese do Eu, mas que faz parte de seu domínio de influência e que, deste modo, pode vir a fazer parte do Eu nas pequenas flutuações das fronteiras, isto é, o sistema Pcs-Cs, explica.

No eixo sincrônico observamos o Eu em sua horizontalidade, como um corte na verticalidade diacrônica (Carvalho, 1996: 127); a cada momento, os movimentos laterais das fronteiras. Neste eixo, o processo de rememoração se dá pelas vias de condução pelas cadeias associativas, tal como concebido por Freud.

Se lembrarmos o desenvolvimento teórico de Anzieu, a derivação metonímica o faz focar também a região de fronteira que sustenta, em seus termos, a ilusão de uma pele comum a unir o Eu e o ambiente, e a separação das peles.

No que diz respeito ao eixo metafórico, no “mito de referência” de Federn, ele está relacionado ao fechamento das fronteiras que promove uma reorganização em toda a economia libidinal. Neste eixo são consideradas as diferenças estruturais, organizacionais dos diversos estados de Eu: fronteiras abertas permitindo o livre escoamento da libido, fronteiras fechadas, a discriminação interna ao Eu em seus componentes (sentimento corporal e

sentimento psíquico de Eu), etc. Nesse sentido, falar em estados de Eu implica que cada estado de Eu representa uma mudança geral na economia dos investimentos psíquicos.

A nosso ver, a abordagem de Anzieu é mais comprometida com o eixo metafórico do que podemos reconhecer na de Federn. Vimos que ele propõe a constituição do Eu também por um processo de estruturação metafórica em níveis crescentes de complexidade: o corpo, o Eu-corporal, o Eu-psíquico e o Eu-pensante.

Em termos de processo de constituição do Eu não vemos com muita clareza no desenvolvimento teórico de Federn a descrição do desenvolvimento desse eixo metafórico. No que diz respeito às flutuações das fronteiras, não há dúvidas de que a visão de Federn inclui, em um eixo vertical, os diversos estados de Eu. Ele vai sustentar que os estados de Eu, uma vez que existiram, não desaparecem. Eles permanecem, recalcados, no inconsciente, até serem redespertados por novos investimentos. O redespertar de estados de Eu passados, implica, segundo Carvalho, um processo de associação à distância, o que não se faz por cadeias associativas como vias de condução. Segundo esta autora, uma representação ou um vínculo afetivo com o objeto pode promover um desinvestimento das fronteiras atuais do Eu mudando a estrutura e a economia dos investimentos psíquicos.

São esses estados de Eu recalcados que compõem o eixo vertical, a que Maria Teresa de Carvalho se refere como diacrônico, e propõe como esquema representativo o desenho do cone: um núcleo basal “como o que constitui a essência do eu e o que o lança nos processos de expansão de suas fronteiras, os cortes sincrônicos representando o momento atual de cada estado de Eu. Influenciados por Anzieu, preferimos a imagem da espiral, que pode representar melhor a integração dos dois eixos no processo de constituição do Eu: pequenas modificações no plano atual que se precipitam como transformação da estrutura no plano vertical.

Ao supor o recalque e o redespertar dos estados de Eu, a principal argumentação de Federn é clínica: observa que as fronteiras do Eu flutuam nos dois sentidos, isto é, não apenas no horizontal, fazendo variar o sentimento de

Eu nas possibilidades do que é domínio do Eu, mas também no vertical, fazendo do Eu atual um Eu do passado.

Ele reconhece, por exemplo, que na psicose, o Eu do presente possui a organização, a estrutura e a economia do estado de Eu do passado. Isto é, sem investimento narcísico suficiente para sustentar as fronteiras multiformes e ricamente mais estruturadas dos estados mais desenvolvidos, as fronteiras de um estado passado mais rudimentar é que são reinvestidas.

Federn foi um pioneiro no atendimento psicanalítico da psicose, e seus recursos teóricos ainda eram escassos. Hoje, com os ganhos que se vêm acumulando no tempo, nos sentimos mais capacitados para entender melhor aquilo a que então ele se esforçava para dar sentido. Diz ele: “É provável que na primeira infância nada seja percebido como distante; tudo toca fisicamente e mentalmente a superfície sensual do eu” (Federn, 1952/1979: 161).

Federn também se refere à mudança do estatuto representativo, do que é da ordem do pré-verbal, o que, após as elaborações de Bion, é muito mais fácil de entender. Mas em sua sensibilidade nos faz entender que também em termos de representação a paciente é levada a um tempo do mais primitivo:

Freud disse que existem dois modos de compreender a ligação entre os elementos inconscientes e sua representação consciente, a saber, a compreensão lógica e a experiência essencial. O psicótico possui pouca ou nenhuma compreensão do que é da lógica, mas muita do que é essencial. (Federn, 1952/1979: 162)

Federn é, a nosso ver, um autor de vanguarda, e parecia saber o quanto suas ideias causavam estranhamento entre seus pares. Comenta, após o relato do caso da paciente: “Anos mais tarde descobri que meus pacientes psicóticos compreendiam algo do que receio não viver o tempo suficiente para fazer compreenderem os psicólogos e psiquiatras.” (Federn, 1952/1979: 161)

Federn fala em recalque de estados de Eu; Maria Teresa de Carvalho, mais próxima de Freud, prefere se referir à superação de estados de Eu. Nós, por nossa vez, propomos falar em ultrapassagem de estados de Eu, no sentido em que um carro ultrapassa o outro que, no entanto, pode até ser perdido de vista, mas não desaparece. Isto é, a ultrapassagem de um estado de Eu mais primário pode nos levar a uma reconfiguração da estrutura, a uma modificação na região das fronteiras, permitindo uma reorganização do Eu. Mas ele

permanece como potencialidade a ser reinvestida sempre que se faça necessário, segundo Federn, em razão de uma falha de investimento do Eu. A nosso ver, o termo ultrapassagem de estados de Eu, parece melhor representar o pensamento de Federn, se não quisermos adotar o de recalque. Segundo Weiss, para Federn “a parte inconsciente do eu é formada por camadas estratificadas de estados recalcados do eu” (Weiss, apud Federn, 1952/1979: 20).

De todo modo, nos parece relevante que sob a proposição de recalque e despertar de estados de Eu, Federn não só coloca em evidência a sobrevivência do passado ao lado de estágios mais desenvolvidos (Carvalho, 1996: 119), o que em psicanálise não é uma novidade, mas, além disso, ele permite pensar situações em que o Eu do passado, reinvestido, é o Eu do presente. Esta é uma situação diferente de quando o Eu do passado se torna um objeto de interesse para o Eu atual (Carvalho, 1996: 119). No primeiro caso, a estrutura, a economia e a dinâmica geral do Eu se altera e se vive, no presente, o estado de Eu do passado; no segundo caso, pequenas flutuações da fronteira do Eu é que “se ocupam do passado” (Carvalho, 1996: 119).

A concepção de Eu com que opera Federn não permite separar os dois eixos que o constituem. A psicose, por exemplo, implica uma falha do investimento libidinal e o reinvestimento das fronteiras de um Eu mais empobrecido. Se o Eu investido é o Eu do passado, seu campo de influência também é o do passado, suas representações, suas funções, suas associações, são as do estado passado. Deste modo, em termos clínicos, se acompanhamos Federn, à pergunta, quem é o Eu investido?, teríamos que acrescentar, quem é o Eu presente na relação transferencial?, quem é o Eu que associa?

No que nos interessa, perguntar “quem é o Eu em questão”, nos remete à realidade estrutural do Eu por trás do estado de Eu. Seguiremos a referência que Federn faz à análise dos sonhos na expectativa de conseguir esclarecer nosso ponto vista:

A interpretação dos sonhos procura o inconsciente, seu material e seus mecanismos. No entanto, o sonho em si mesmo é experimentado conscientemente e não se tem nenhuma dúvida de que o próprio sonhador, isto é, seu eu, está sonhando. No entanto,

durante o sono, o eu não existe, e só retorna de sua não existência porque é acordado pelo sonho manifesto. Quando reencontra seu investimento, o eu do sonho pode reagir ao sonho, o eu pode gozar do sonho ... É por isso que a interpretação do sonho é uma parte da compreensão completa do sonho, e um conhecimento preciso do eu do sonho é uma outra parte. A interpretação ganha precisão e valor se as contribuições do eu ao sonho puderem ser separadas do trabalho do sonho. (Federn, 1952/1979: 104)

Nesse contexto, a questão de Federn não é tanto com os conteúdos do sonho, seu potencial representativo; sua principal questão não era o desejo inconsciente. Se em Freud, a análise do sonho se movia em direção ao umbigo do sonho, àquilo que seria seu núcleo, Federn, em sua pesquisa, se mostra mais instigado em saber quem é o Eu que tem que se haver com o trabalho do sonho, qual a topologia psíquica no momento do sonho: o sonho, é o que ele nos propõe, trará essa marca. Ou seja, a estrutura do Eu aparece no sonho e determina o material do sonho.

Consideremos mais uma vez como exemplo, rápidas referências à paciente Eurídice, a quem voltaremos no Capítulo IV. Ela relata, angustiada, um sonho em que ela e a filha iam sendo levadas pela correnteza em uma situação em que chovia muito. Elas carregavam roupas e anéis que se perdiam na correnteza: “era muita água que corria sem parar e a gente ia sendo levada”, dizia. No momento, o que queremos pôr em destaque é que a proposição de Federn nos permite escutar, no relato deste sonho, a organização estrutural do Eu: não é que Eurídice se sinta sendo arrastada por uma torrente, mas sim que ela é um fluxo aleatório de sensações, torrentes emocionais e pulsionais desconhecendo qualquer possibilidade de esteio, de contenção, de significação, de forma. Ou seja, um Eu em que a função continente está muito precariamente constituída, as fronteiras do Eu, abertas; uma débil possibilidade de diferenciação – ela e a filha como um todo, praticamente indiscriminadas na torrente que as carrega.

Além disso, embora o sentimento de Eu expresse sempre sua unidade, o Eu possui mais ou menos diferenciações internas e externas, mais ou menos fronteiras, mais ou menos enriquecidas. Isto é, mesmo que consideremos o Eu em sua unidade, considerá-lo como uma massa homogênea seria empobrecê- lo e limitaria nossos recursos clínicos. “O eu sempre inclui experiências totais e parciais e deve sempre ser examinado de modo analítico e de modo sintético”,

propõe Federn (1952/1979: 69). Ou seja, é preciso considerar as diferenças internas ao próprio Eu, a interface que entre si estabelecem as múltiplas regiões de fronteiras. Segundo Anzieu (1985/2000), Federn teria nos ensinado que o psicanalista deve estar atento não somente ao conteúdo e ao estilo das associações livres, mas também aos estados de Eu e às flutuações das fronteiras do Eu.

No documento ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA DO CONTINENTE (páginas 129-136)