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CAPÍTULO 2 A DEFINIÇÃO CONSTITUCIONAL DAS COMPETÊNCIAS

2.2 O PLANEJAMENTO DAS CIDADES BRASILEIRAS

2.2.1 A evolução normativa federal brasileira em matéria de parcelamento do solo

O problema fundiário no Brasil remonta aos primórdios do cadastramento das terras em solo nacional, caracterizado por precariedade na medição das áreas, na descrição de limites e confrontações e na promoção da discriminação de terras públicas e particulares.

De certa forma, contribuiu para o agravamento do problema um sistema registral imobiliário que era quase todo voltado para o livro das transcrições (conhecido como o sistema registral do fólio pessoal), com as notórias deficiências, dentre as quais, além da precariedade das descrições, a ocorrência de descrição de mais de um imóvel em uma mesma transcrição e o desrespeito ao princípio da continuidade por meio do registro de alienações de imóveis adquiridos por sucessão hereditária, sem prévio registro da partilha etc.66

A primeira regra brasileira que sistematizou o parcelamento do solo urbano foi o Decreto-Lei n. 58/1937, o qual era vocacionado a tratar do loteamento e da venda, por oferta pública, de terrenos para pagamento em prestações. Por força do referido Decreto-Lei, todo proprietário de terra urbana ou rural que pretendesse vender seu terreno dividido em lotes, mediante pagamento a prazo, estava obrigado, antes de anunciar a venda, a depositar, no competente cartório de registro de imóveis, o memorial de loteamento comprovando a prévia aprovação do empreendimento pela Administração Pública (no caso de imóveis urbanos, pela Prefeitura Municipal).67

Como observa o ambientalista Paulo Affonso Leme Machado (2013, p. 468), pela laconicidade do Decreto-Lei n. 58/1937:

66 Sobre as deficiências do sistema registral à atual Lei de Registros Públicos (LRP) –

Lei n. 6.015/73, que instituiu no Brasil o sistema do fólio real; cfr. Henrique Ferraz de Mello (2013, p. 62). Vale ressaltar que, apenas em 2001, com a edição da Lei n. 10.267, é que o sistema registral brasileiro passou, efetivamente, a exigir maiores rigores na descrição dos imóveis rurais. Alguns dispositivos da LRP foram modificados no sentido de prever que, “nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação (...) será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA” (cfr., v.g., Lei n. 6.015/73, art. 176, §3º).

Não se especificavam as exigências sanitárias a serem observadas em todo o País. Os espaços públicos, na prática, muitas vezes, eram somente as ruas. Deixavam-se de exigir equipamentos urbanos e comunitários, tais como, faixas non aedificandi e locais destinados ao lazer, à saúde, à cultura.

Os loteamentos interessavam só ao Direito Civil. A intervenção da Administração Pública era acessória, colocando-se em relevo a compra e venda dos lotes. Procurava-se mais ressalvar o comprador em seus direitos imediatos quanto à propriedade imobiliária, preocupando-se fundamentalmente com os regulamentos do registro da operação no cartório competente.

O Decreto-Lei n. 58/1937 (juntamente com o seu regulamento – Decreto n. 3.079/1938) foi alvo de críticas por diversas razões, dentre as quais, além das descritas na citação acima, o fato de que a necessidade de prévia aprovação da Prefeitura e de depósito no Registro de Imóveis do memorial de loteamento tinha por objetivo as alienações de lotes à prestação, excluindo da publicidade registral os imóveis vendidos à vista.

Diante de tais deficiências, em 1967, foi editado o Decreto-Lei n. 271, que dispôs, em seu art. 2º, que os Municípios poderiam, quanto aos loteamentos, obrigar a subordinação dos projetos às necessidades locais, inclusive quanto à destinação e utilização das áreas, de modo a permitir o desenvolvimento local adequado.

Ademais, por força da referida norma, os Municípios poderiam recusar a aprovação de projetos ainda que fosse apenas para evitar excessivo número de lotes com o consequente aumento de investimento subutilizado em obras de infraestrutura e custeio de serviços. Inovação interessante surgida com o Decreto-Lei n. 271/1969 foi a previsão, em seu art. 4º, de que, desde a data da inscrição do loteamento, passam a integrar o domínio público do Município as vias e praças e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

Para Paulo Affonso Machado (2013, p. 468), o Decreto-Lei n. 271/1967 já muda a perspectiva do loteamento; com efeito:

O Banco Nacional da Habitação intervém com suas normas gerais, ainda que estas não constem nesse decreto-lei, mas que se reporta às mesmas (sic).

O estatuto legal mencionado já passa a enxergar o loteamento sob uma ótica publicista. Ainda que de um modo bem genérico, prevê a forma de intervenção dos Municípios.

De todo modo, o DL n. 58/1937 ainda figurava como o principal estatuto normativo a regular os loteamentos no Brasil.

Como forma de aprimorar as regras sobre loteamento, em 1979, foi editada a Lei n. 6.766, conhecida como Lei de Parcelamento do Solo Urbano (LPSU) ou Lei Lehmann, que passou a regular especificamente os parcelamentos de solo urbano, mantendo o vigor do Decreto-Lei n. 58/1937 quanto ao tratamento dos parcelamentos de solo rural.

A LPSU trouxe importantes dispositivos sobre direito urbanístico, abrangendo a obrigatoriedade do registro do memorial de parcelamento, para todas as hipóteses de loteamento ou desmembramento do solo,68 independentemente do fato de haver venda para pagamento em prestações.

Por exemplo, no que tange à infraestrutura nos loteamentos, o parágrafo único do art. 5º da LPSU destacou que se consideram urbanos os equipamentos públicos de abastecimento de água, serviços de esgotos, energia elétrica, coletas de águas pluviais, rede telefônica e gás canalizado.69

No que tange ao protagonismo municipal para aprovação de projetos de parcelamento do solo urbano, a LPSU dispõe em seu art. 6º que:

Art. 6º. Antes da elaboração do projeto de loteamento, o interessado deverá solicitar à Prefeitura Municipal, ou ao Distrito Federal quando for o caso, que defina as diretrizes para o uso do solo, traçado dos lotes, do sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas para equipamento urbano e comunitário, apresentando, para este fim, requerimento e planta do imóvel contendo, pelo menos:

I - as divisas da gleba a ser loteada;

68 Com relação à diferença entre loteamento e desmembramento, cfr. nota de rodapé n. 04 do presente

texto.

69

Sobre a definição e a classificação de equipamentos urbanos, a NBR 9284 de 1986 da ABNT (que vigorou até 15/06/2015, momento em que foi cancelada) classificava os equipamentos urbanos por categorias e subcategorias, segundo sua função predominante. Sobre o tema, cfr. Paulo Afonso Cavichioli Carmona (2015, p. 322-323). Segundo previa a referida Norma Técnica, eram considerados equipamentos urbanos “todos os bens públicos ou privados, de utilidade pública, destinados à prestação de serviços necessários ao funcionamento da cidade, implantados mediante autorização do poder público, em espaços públicos e privados”. A respeito de acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos, cfr. ABNT NBR 9050 /2015, válida desde 11/10/2015.

II - as curvas de nível à distância adequada, quando exigidas por lei estadual ou municipal;

III - a localização dos cursos d’água, bosques e construções existentes; IV - a indicação dos arruamentos contíguos a todo o perímetro, a localização das vias de comunicação, das áreas livres, dos equipamentos urbanos e comunitários existentes no local ou em suas adjacências, com as respectivas distâncias da área a ser loteada; V - o tipo de uso predominante a que o loteamento se destina;

VI - as características, dimensões e localização das zonas de uso contíguas.

Todavia, o referido estatuto legal não se mostrou imune às diatribes doutrinárias. Segundo Rui Geraldo Camargo Viana (2000, p. 13), a Lei n. 6.766/1979 fez piorar as condições de habitação, “dada sua inadequação à realidade brasileira, convertendo-se em empecilho à urbanização e fomentando as invasões e ocupações desordenadas, perpetradas e até dirigidas por titulares de glebas sem condição ou disposição de submeter-se às onerosas imposições da lei, frustradora de seus projetos de lucro”.

Ademais, leciona Paulo Sérgio Velten Pereira (2014, p. 763) que “o direito moderno – mais ético, social e operativo – deve ter como objetivo a construção de um urbanismo apoiado não em formalismos exacerbados, mas na realidade da vida, e que seja, antes de tudo, inclusivo das camadas populares da sociedade”.

Outra crítica relevante ao sistema constituído pela LPSU tem a ver com a falta de inter-relação entre o licenciamento urbanístico e o licenciamento ambiental. Para Araújo, Guimarães e Fazzolari-Corrêa (2013, p. 81):

No que se refere à gestão ambiental urbana, tem-se hoje um conjunto pouco articulado de normas de aplicação nacional. A Lei do Parcelamento Urbano carece de atualização e não detalha o tema, além de conter alguns conflitos com as normas do campo do direito ambiental, em senso estrito. (...)

A permanecer o modelo atual, no qual o todo é visto por fragmentos, não há caleidoscópio que propicie imagens alvissareiras.

Com mais de três décadas de vigência, a Lei n. 6.766/1979, de fato, mostrou-se de pouca eficácia em grande parte dos municípios brasileiros e, por isso, não conseguiu evitar a criação de loteamentos informais e irregulares, surgidos em face da crescente demanda habitacional que vem acometendo nossas cidades, desde meados do século XX até os dias atuais.

Como forma de mitigar as disfuncionalidades do referido estatuto normativo, em 1999, foi editada a Lei n. 9.785, que alterou, de forma útil e relevante, vários dispositivos da LPSU. Dentre as principais novidades, podemos mencionar as seguintes: (a) suprimiu a previsão de exigência de destinação de, no mínimo, 35% da gleba para áreas públicas, passando a determinar que “a legislação municipal definirá, para cada zona em que se divida o território do Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas de lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento" (LPSU, art. 4º, §1º); (b) ampliou o rol de municípios que podem dispensar a fase de fixação de diretrizes referentes ao uso do solo, ao traçado dos lotes, ao sistema viário, aos espaços livres e às áreas reservadas para equipamento urbano e comunitário (LPSU, art. 8º); e (c) mitigou a intromissão dos Estados na aprovação de projetos de parcelamento (LPSU, art. 13).

Com relação à infraestrutura urbana, foi incluído o §5º ao art. 2º, no sentido de que a infraestrutura básica seria constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto sanitário e abastecimento de água potável, e de energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação.70

A propósito, cumpre ressaltar que a infraestrutura exigida expressamente dos empreendedores, já com a redação promovida pela Lei n. 9.785/1999, é a seguinte: execução das vias de circulação; demarcação dos lotes, quadras e logradouros e obras de escoamento das águas pluviais.71 Todavia, para se completar pelo menos a infraestrutura básica (de que trata o §5º do art. 2º da LPSU), faz-se necessária a implantação de rede de iluminação pública, de rede de abastecimento de água potável e de soluções para a energia elétrica pública e domiciliar. Resta, portanto, lacuna em relação a esses

70 Por força da Lei n. 11.445/2007, o referido § 5º do art. 2º da LPSU passou a ter a seguinte redação: “§

5º A infra-estrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação”.

71 Segundo dispõe o inc. V do art. 18 da LPSU, com redação dada pela Lei n. 9.785/1999: Art. 18.

Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de caducidade da aprovação, acompanhado dos seguintes documentos: V - cópia do ato de aprovação do loteamento e comprovante do termo de verificação pela Prefeitura Municipal ou pelo Distrito Federal, da execução das obras exigidas por

legislação municipal, que incluirão, no mínimo, a execução das vias de circulação do loteamento, demarcação dos lotes, quadras e logradouros e das obras de escoamento das águas pluviais ou da

aprovação de um cronograma, com a duração máxima de quatro anos, acompanhado de competente instrumento de garantia para a execução das obras. (Grifo nosso)

elementos restantes, que não estão sob a responsabilidade expressa do empreendedor, nem estão explicitamente sob responsabilidade do Poder Público. Tal lacuna vem sendo colmatada por normas municipais de parcelamento do solo, no exercício de sua competência concorrente para regular matéria de direito urbanístico.

Com relação à mitigação dos rigores de infraestruturação para assentamentos de baixa renda, a Lei n. 9.785/1999 previu (ao incluir o §6º no art. 2º da LPSU) tratamento diferenciado aos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas como de interesse social, admitindo “soluções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar”, bem como pode ser dispensada a iluminação pública.72

Para o tema da regularização fundiária, as principais novidades trazidas pela Lei n. 9.785/1999 foram a já mencionada mitigação de exigências urbanísticas antigamente previstas no §1º do art. 4º da LPSU, bem como a inclusão do art. 53-A e respectivo parágrafo único na LPSU, com a seguinte redação:

Art. 53-A. São considerados de interesse público os parcelamentos vinculados a planos ou programas habitacionais de iniciativa das Prefeituras Municipais e do Distrito Federal, ou entidades autorizadas por lei, em especial as regularizações de parcelamentos e de assentamentos.

Parágrafo único. Às ações e intervenções de que trata este artigo não será exigível documentação que não seja a mínima necessária e indispensável aos registros no cartório competente, inclusive sob a forma de certidões, vedadas as exigências e as sanções pertinentes aos particulares, especialmente aquelas que visem garantir a realização de obras e serviços, ou que visem prevenir questões de domínio de glebas, que se presumirão asseguradas pelo Poder Público respectivo. (Grifo nosso)

A Lei n. 9.785/99, ao flexibilizar rigores urbanísticos, viabilizou não só o parcelamento com a produção de lotes mais baratos, mas também a regularização de

72 Dispõe o referido §6º que: “§ 6o A infra-estrutura básica dos parcelamentos situados nas zonas

habitacionais declaradas por lei como de interesse social (ZHIS) consistirá, no mínimo, de: I - vias de circulação; II - escoamento das águas pluviais; III - rede para o abastecimento de água potável; e IV - soluções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar”. Como consta de justificação do Projeto de Lei n. 31/2007, que visa revogar a Lei n. 6.766/1979 e instituir a Lei de Responsabilidade Territorial Urbana no Brasil, “a intenção do legislador parece ter sido reduzir os custos dos terrenos destinados à baixa renda, mas o efeito, na prática, é um tipo de segregação social que condena determinada parcela da população a um padrão urbanístico de menor qualidade. Não há nada que justifique tecnicamente essa diferenciação para empreendimentos novos.”

loteamentos que descumpriam os parâmetros contidos na redação originária da LPSU. Confira-se a esse respeito emblemático trecho da ementa do acórdão no julgamento do REsp 448.216/SP:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO URBANÍSTICO. LOTEAMENTO IRREGULAR. MUNICÍPIO. PODER-DEVER DE REGULARIZAÇÃO.

4. A ressalva do § 5º do art. 40 da Lei 6.766/99, introduzida pela lei 9.785/99, possibilitou a regularização de loteamento pelo Município sem atenção aos parâmetros urbanísticos para a zona, originariamente estabelecidos. Consoante a doutrina do tema, há que se distinguir as exigências para a implantação de loteamento das exigências para sua regularização. Na implantação de loteamento nada pode deixar de ser exigido e executado pelo loteador, seja ele a Administração Pública ou o particular. Na regularização de loteamento já implantado, a lei municipal pode dispensar algumas exigências quando a regularização for feita pelo município. (REsp 448.216/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T, julg.:14/10/2003)

Em 2001, foi editado o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257, que regulamenta os arts. 182 e 183 do texto constitucional, em seu capítulo que trata da Política Urbana, o qual estabelece como competência municipal a execução da política de desenvolvimento urbano (CF, art.182).73

Segundo o Estatuto da Cidade, consta, como uma das diretrizes gerais da política urbana, a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais. (ECid, art. 2º, inc. XIV). Ademais, na seção que trata dos instrumentos da política urbana, a regularização fundiária está prevista como instituto jurídico e político (ECid, art. 4º, inc. V, alínea “q”).

73 Vale destacar, a respeito da base normativa sobre a regularização fundiária no Brasil, que a

Constituição Federal de 1988 traz importantes normas acerca do tema, além do já mencionado art. 182. Por exemplo, no art. 5º, que dispõe sobre os direitos e as garantias fundamentais, está consignado que é garantido o direito de propriedade (inc. XXII); e que a propriedade atenderá a sua função social (inc. XXIII). Por seu turno, no art. 6º, que trata dos direitos sociais, figura o direito à moradia (incluído por força da Emenda Constitucional n. 26/2000). Pode-se mencionar, outrossim, como base constitucional para a política de regularização fundiária, a previsão da usucapião especial urbana com prazo de cinco anos (CF, art. 183, caput); e, quanto aos bens públicos, o instituto da concessão de uso especial (CF, art. 183, §1º), que foi regulado pela Medida Provisória n. 2.220, de 04 de setembro de 2001.

A propósito da regularização fundiária como diretriz geral da política urbana, logo após a publicação do Estatuto da Cidade, houve vozes doutrinárias advogando a inconstitucionalidade de dispositivos referentes à regularização fundiária, sob o fundamento de que ocupações irregulares devem ser apenadas, e não beneficiadas por meio de suposta “demagógica” política pública. Vejamos, a esse respeito, o entendimento da professora Helita Barreira Custódio (2004, p. 362):

Adverte-se que a regularização fundiária, temerariamente introduzida nas normas legais em exame, além de não se confundir com diretriz geral nem com instrumento geral do Direito Urbanístico, constitui perigosa diretriz e tendencioso instrumento de caráter político, contraditório e inquietantemente incompatível com o conteúdo das normas constitucionais (CF, art. 182, c/c arts. 23, VI, IX, 30, I, VIII, 216, 225), do Direito Urbanístico (CF, art. 24, I, 182, §§ 1º, 2º; Lei n. 6.766, de 19-12-1979, arts. 38 a 43) e do Direito Ambiental (CF, art. 225, c/c arts. 23, 170, VI, 182, §§ 1º, 2º, 216 e § 1º; Lei n. 6.938, de 31-8-1981). Neste sentido, é oportuno salientar que o plano diretor, definido como plano urbanístico geral aplicável no âmbito municipal, intermunicipal e distrital, integrante do Direito Urbanístico, de natureza essencialmente preventiva, não admite qualquer diretriz contraditória ou qualquer instrumento politicamente demagógico que possa estimular o uso nocivo da propriedade imóvel urbana (pública ou privada) com invasões ou ocupações ilegais, conflitantes e incentivadoras da ilegal indústria dos loteamentos clandestinos ou irregulares, das favelas ou quaisquer outras habitações sub-humanas ou contrárias à dignidade da pessoa humana, sem as mínimas condições sanitárias, de segurança, de tranquilidade, em gritantes contradições tanto às finalidades do Direito vigente quanto aos interesses sociais e públicos.

O certo é que, em contraposição à corrente que enxerga inconstitucionalidades no tratamento da regularização de assentamentos consolidados como diretriz da política urbana, após o advento do Estatuto da Cidade, outras normas acerca do tema da “regularização fundiária” foram editadas pelo legislador federal e estão regularmente vigorando.74

Vale destacar, também, que o Estatuto da Cidade, admitindo a insuficiência da Lei n. 6.766/1979, apresenta, como uma das diretrizes gerais da política urbana, “a

74 Podem ser mencionadas, por exemplo, a Lei n. 11.481/2007, que altera diversas leis para disciplinar a

regularização fundiária em terras da União federal e institui procedimento simplificado de demarcação de bens públicos para fins de regularização fundiária de interesse social; bem como a Lei n. 11.952/2009, que dispõe sobre a regularização ambiental e sobre a regularização fundiária rural e urbana em terras federais da Amazônia Legal.

simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais” (Lei n. 10.257/2001, art. 2º, inc. XV).

Especificamente sobre a regularização fundiária, nenhuma dessas normas teve a pretensão tão sistematizadora e abrangente quanto a Lei n. 11.977/2009, a qual, além de dispor sobre o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV (no Capítulo I) e sobre Registro Eletrônico (no Capítulo II), dedica todo o seu Capítulo III (arts. 46 a 71-A) ao tratamento da regularização fundiária de assentamentos urbanos, tal como veremos no próximo tópico.

Como observa Paulo Carmona (2015, p. 353), a Lei n. 11.977/2009 representa um novo marco jurídico para a regularização fundiária. Pelo tamanho do problema, as ações efetivas de regularização, que já contam com alguns diplomas normativos importantes (Estatuto da Cidade, MP n. 2.220/2001, Lei n. 11.481/2007 – Regularização de Imóveis da União), não podem ficar na dependência de políticas públicas isoladas e de interpretações oscilantes do Judiciário ou dos oficiais registradores de imóveis. Por isso, a Lei n. 11.977/2009 pode ser denominada de Lei Nacional de Regularização Fundiária – LNRF.

A regularização fundiária de assentamentos urbanos, por definição legal, contida no art. 46 da Lei n. 11.977/2009, consiste no conjunto de medidas jurídicas,