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CAPÍTULO 4 A DINÂMICA RELAÇÃO ENTRE AUTONOMIA E

4.1 DAS OBJEÇÕES E DOS ASPECTOS CONTROVERTIDOS REFERENTES AOS

4.1.1 Da eventual violação à liberdade associativa

A despeito de certos representantes do mercado imobiliário alegarem, com base em interesses mercadológicos, que o desenho institucional dos “loteamentos fechados” seria preferível à instituição de “condomínios de lotes”,122 pode-se dizer que a litigiosidade represada em um “loteamento fechado” é bem significativa e custosa para o Poder Judiciário.

Com efeito, considerando que, nesta modalidade comunitária, deverá ser constituída uma associação representativa dos proprietários dos lotes, para viabilizar a arrecadação de contribuições visando, entre outros serviços (v.g.: segurança interna e eventual coleta de lixo), à manutenção dos bens públicos que passam a ser administrados pela pessoa jurídica de direito privado.

Como se pode antever, não é raro que haja proprietários que não se disponham a entrar na associação e, daí, surge o problema: caso determinado proprietário de lote não se disponha a assinar o estatuto associativo, poderá ele ser compelido a pagar as contribuições associativas?

O certo é que milhares de demandas são propostas por associações de moradores irresignadas com a inadimplência de proprietários recalcitrantes. Cientes do direito fundamental da liberdade associativa (insculpido no inc. XX do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”), as autoras das ações de cobrança alegam enriquecimento sem causa dos

122 Em sua tese de doutorado intitulada “Loteamentos Fechados”, Eleusina de Freitas (2008, pp. 116-119)

apresenta estudo desenvolvido pelo Sindicato das Empresas de Compra, Venda Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (SECOVI-SP), em que aponta que a formatação de “condomínios urbanísticos” gera aumento nos custos de produção em face da diminuição do aproveitamento da gleba, da manutenção da infraestrutura e do IPTU incidente sobre áreas comuns e vias de circulação. Seriam esses, basicamente, os motivos da preferência do mercado imobiliário pelo modelo de loteamento fechado em relação ao do condomínio urbanístico.

proprietários inadimplentes, uma vez que estes desfrutam de benefícios com a atividade desempenhada pela associação de moradores.123

A matéria ainda carece de definição pelo Supremo Tribunal Federal, que terá a oportunidade de tratar da tese no julgamento do Recurso Extraordinário n. 695.911/SP, sob a relatoria do Min. Dias Toffoli, tendo sido reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada em 21/10/2011 (por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento n. 745.831).

No referido recurso à Suprema Corte, o Procurador-Geral da República já se pronunciou (em parecer datado de 18/04/2013), advogando a tese a favor das associações de moradores, com base no princípio da vedação do enriquecimento ilícito, o qual também “encontra amparo nos objetivos da República, como relevante fator na construção de uma sociedade livre, justa e, principalmente solidária (art. 3°, I, da CF). A negativa de alguns moradores de custearem as despesas comuns afronta ainda o princípio constitucional da solidariedade, que impõe a todos um dever jurídico de respeito coletivo, que visa beneficiar a sociedade como um todo”.

Por ora, prevalece, contudo, no Superior Tribunal de Justiça, a tese de que “as taxas de manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados ou que a elas não anuíram”, firmada pela Segunda Seção do STJ, no julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia n. 1.280.871/SP, tendo sido relator do acórdão o Ministro Marco Buzzi, julgado em 11/03/2015 e disponibilizado no DJe de 22/05/2015.

Em trecho do voto da Min. Maria Isabel Gallotti, bem se verifica que, às vezes, a associação de moradores pode não ter mesmo a razão:

Neste caso agora em julgamento, por exemplo, o que alega o réu em contestação é que são 290 imóveis e que, nas assembleias, só participam vinte proprietários; que a associação só cuida da rua principal, que a dele está relegada ao descaso; que essa associação apenas prejudica quem não mora na via principal. Isso porque impõe o uso de uma tarja no carro, dizendo que é associado; quem não tiver essa tarja de associado tem de entrar por uma outra entrada e ser

123 O art. 884 da Lei n. 10.406/2002 assim dispõe sobre o enriquecimento sem causa: “Art. 884. Aquele

que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido”.

revistado, identificados todos os ocupantes do carro; o correio, ele não recebe mais em casa, porque desde que criaram essa associação de moradores, as correspondências são entregues na guarita, e o pessoal da guarita só entrega [a correspondência] a quem passa por aquela cancela de associado, e, portanto, ele tem que parar o carro, saltar e pegar a correspondência.

Prossegue a Ministra, exigindo maior esforço argumentativo das associações de moradores, para que possam comprovar efetivo enriquecimento sem causa do morador inadimplente:

Mas nada obsta, mesmo que aprovada essa tese repetitiva, que uma determinada associação ajuíze ação contra um determinado morador de condomínio, loteamento, bairro, e alegue: faço serviço de limpeza, tenho uma guarita para segurança, entrego a correspondência na casa de todos. Nesta ação, ele [o réu] seria cobrado não do valor de taxa estipulada pela associação, mas apenas daquilo que o beneficia e na medida do benefício. A causa de pedir não seria a mera inadimplência de uma taxa imposta unilateralmente pela associação, não se sabendo se na medida do benefício proporcionado ao morador réu.

A tese que restou vencida no referido julgamento, proposta pelo Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, pela qual somos mais simpáticos, foi a seguinte: “As 'taxas', contribuições de manutenção ou de conservação criadas por associação de moradores ou administradora de loteamento só podem ser impostas a proprietário de imóvel adquirido após a constituição da associação ou que a ela tenha se associado ou aderido ao ato que instituiu o encargo”.

Nada obstante o debate sobre a garantia de arrecadação patrimonial das associações de moradores ainda aguardar pacificação em recurso extraordinário (o mencionado RE n. 695.911/SP), pode-se inferir, dos inúmeros precedentes existentes no STJ124 e de alguns já apreciados pelo próprio STF125 sobre o fenômeno do “loteamento

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À guisa de exemplo, mencionam-se os seguintes precedentes da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça: AgRg nos EAg 1.385.743⁄RJ, Rel. Ministro Marco Buzzi, julgado em 26⁄9⁄2012, DJe 2⁄10⁄2012; AgRg nos EAg 1.330.968⁄RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, julgado em 26⁄10⁄2011, DJe 7⁄12⁄2011; AgRg nos EREsp 623.274⁄RJ, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 13⁄4⁄2011, DJe 19⁄4⁄2011; EDcl no AgRg nos EAg 1.063.663⁄MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 13⁄4⁄2011, DJe 25⁄4⁄2011; AgRg nos EAg 1.053.878⁄SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 14⁄3⁄2011, DJe 17⁄3⁄2011 e AgRg nos EREsp 1.003.875⁄RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 25⁄8⁄2010, DJe 10⁄9⁄2010.

125 No Supremo Tribunal Federal, podem ser citados o RE n. 432.106⁄RJ, Primeira Turma, Rel. Min.

Marco Aurélio, DJe 4⁄11⁄2011; e o RE 340.561/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence (decisão monocrática), DJ 01/02/2005.

fechado”, o seguinte: (a) o desenho institucional dos “loteamentos fechados” gera grande litigiosidade, que sobrecarrega, custosamente, o já bastante atarefado Poder Judiciário nacional; (b) lei municipal não pode regular matéria referente a direito civil e, por isso, não pode impor aos proprietários dos lotes obrigações de pagamento das contribuições associativas; (c) leis municipais que autorizam o fechamento de loteamento não violam, por só esse fato, o direito fundamental à liberdade associativa, que pressupõe autonomia da vontade do sujeito titular do lote para se associar, permanecer e se retirar da agremiação quando bem lhe aprouver; em outras palavras, os adquirentes dos lotes que não quiserem se associar não poderão ser sancionados por regras municipais; e (d) há fortes indícios de que nossas cortes extraordinárias estão acostumadas e resignadas com a realidade do “loteamento fechado”; em outras palavras, o fenômeno do encastelamento comunitário parece ser algo absolutamente normal/natural na percepção dos ministros, a ponto de, em julgamento representativo da controvérsia referente à legalidade da cobrança de contribuições associativas e liberdade de associação em loteamentos fechados, não ter sido ventilado, por nenhum ministro, por exemplo, em obiter dictum, o tema referente à eventual irregularidade urbanística do loteamento e sua incompatibilidade com a Lei federal n. 6.766/1979, fato esse que poderia ser útil como reforço argumentativo, para fragilizar, ainda mais, a situação jurídica da associação recorrida.126

No caso concreto, referente ao julgamento do REsp 1.280.871/SP, na sessão de 11/03/2015, o Residencial Morada do Verde é que figurou como associação recorrida. Em termos urbanísticos, o referido loteamento está situado no Município de Franca/SP e teve o seu fechamento autorizado (regularizado) por meio da Lei n. 7.769, de 20 de dezembro de 2012, a qual dispõe sobre a concessão de uso de áreas públicas que especifica à Associação dos Moradores e Proprietários do Residencial Morada do Verde I. Vale ressaltar que a referida lei desafia ação direta de inconstitucionalidade n. 2008007-25.2015.8.26.0000, sob relatoria do Des. Evaristo dos Santos, tendo sido

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Não se ignora a circunstância de que, em recurso especial, os ministros se atêm à matéria explicitamente prequestionada (Súmula STJ 211), tampouco se desconhece que, por ofensa a direito local, não cabe recurso especial (Súmula STF 280, aplicada analogamente pelo STJ); reconhece-se, também, que o discutido nos autos (legalidade da cobrança de contribuições associativas e liberdade de associação em loteamentos fechados) é mais ligado a aspectos de Direito Civil e Constitucional; todavia, a indiferença quanto aos eventuais reflexos privados do Direito Urbanístico e, em especial à Lei de Parcelamento do Solo Urbano, ao que tudo indica, gera uma percepção de normalidade nos “loteamentos fechados”.

suspensos seus efeitos, em virtude da concessão de medida cautelar datada de 27 de janeiro de 2015.

Cumpre salientar, também, que a atribuição legal conferida à associação representativa dos proprietários de lotes, quanto à vigilância para fiscalizar o acesso de pessoas estranhas ao interior do loteamento, não configura suposta delegação inconstitucional do poder de polícia, mas tão somente o reconhecimento, pelo Poder Público, de que particulares podem exercitar, de forma complementar, a segurança patrimonial e extrapatrimonial dos moradores do loteamento.

Como desfecho do presente tópico, vale destacar a sugestão de Victor Carvalho Pinto quanto à previsão, em legislação federal, da figura da associação de direito real, in verbis:

Associações de proprietários são comuns em outros países e podem cumprir um importante papel na gestão dos serviços urbanos. Sua incorporação ao direito brasileiro seria de grande utilidade. (...) A institucionalização de empreendimentos desse tipo deve ser buscada pela introdução na legislação do conceito de associação de direito real, constituída de proprietários de terrenos contíguos, em regime análogo ao do condomínio em edificações.

Muitas atividades poderiam ser assumidas por elas, desde que essa fosse a vontade dos moradores e, quando necessário, houvesse autorização do Poder Público. Pode-se citar, por exemplo, os serviços de segurança privada, limpeza, coleta de lixo e paisagismo. Seriam beneficiados não apenas os moradores, mas toda a coletividade, na medida em que as vias e praças continuariam públicas e de livre circulação, mas melhor cuidadas. Além disso, o orçamento público seria desonerado, uma vez que tais funções seriam financiadas pelos próprios moradores. (Grifo nosso)

Especificamente quanto a esse tema, acreditamos que, uma vez admitida a validade da figura jurídica do loteamento fechado, a fim de se evitarem debates quanto à constitucionalidade do instituto da “associação de direito real”, em face da liberdade associativa prevista no mencionado inc. XX, a lei federal (privativamente competente para regular matéria de direito civil) poderá prever, na linha do que está contido no inc. I do art. 1.336 do Código Civil, que “é dever dos proprietários de lotes em loteamentos fechados contribuir para as despesas comunitárias na proporção da área dos respectivos lotes em relação à área total do terreno loteado, salvo disposição em contrário na convenção”.