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CAPÍTULO 4 A DINÂMICA RELAÇÃO ENTRE AUTONOMIA E

4.1 DAS OBJEÇÕES E DOS ASPECTOS CONTROVERTIDOS REFERENTES AOS

4.1.2 Da eventual violação ao direito de livre circulação

Uma das críticas mais veementes ao fechamento de loteamentos está no comprometimento do sistema viário de uma cidade e também na redução dos espaços públicos que poderiam ser de livre acesso à população, caso fossem obedecidos, à sua inteireza, os comandos contidos nos art. 17 e 22 da Lei n. 6.766/1979, os quais garantem a imutabilidade da destinação dos “espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos”, bem como sua destinação à Municipalidade, desde a data do registro do loteamento.

A propósito, o princípio da livre circulação está, por exemplo, explicitado no inc. XV do art. 5º da Constituição Federal, ao assegurar que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. O âmbito normativo de tal princípio alcança a liberdade de acesso e a utilização dos bens públicos de uso comum do povo.

Por outro lado, a corrente que admite o fechamento de loteamentos alega que, antes de haver o loteamento, a gleba, titularizada pelo pretendente a loteador, era unidade territorial praticamente inexpugnável (só acessível a seu dono).127 Com a urbanificação (na modalidade formação de novos núcleos urbanos),128 o Poder Público, em nome do melhor interesse dos munícipes e sensível às demandas locais, autorizaria, por lei, a implantação de loteamento fechado. A área que, antes do parcelamento, era inacessível passará à condição de acessível mediante controle e fiscalização.

A esse respeito, vejamos trecho do artigo de Marco Aurélio Viana (2016):

Argumenta-se que o fechamento de loteamento é medida inconstitucional, porque haveria ofensa ao direito de ir e vir dos cidadãos, o direito difuso à cidade, tipificando apropriação de bens públicos de uso comum do povo (ruas, praças etc.), por um grupo de moradores. (...)

Ora, a aprovação do loteamento fechado se faz com as vias públicas tendo destinação especificada (...). Antes de integrarem o patrimônio público, o que se dá com o registro, houve autorização para que ele seja fechado. O Município, dentro da sua competência legislativa, e de

127 Cfr. Marco Aurélio Viana (2016). 128

José Afonso da Silva (2012, p. 27) ensina que urbanificação é o processo deliberado de correção da urbanização, consistente na renovação urbana ou na criação artificial de núcleos urbanos. O termo “urbanificação” foi cunhado por Gaston Bardet para designar a aplicação dos princípios do urbanismo, advertindo que a urbanização é o mal, a urbanificação é o remédio.

acordo com o interesse local, permite que o empreendimento seja implantado na forma indicada, porque não se dá transferência de bem público para o particular. (...)

Se o Município pode desafetar bem público e aliená-lo, mesmo que seja de uso comum do povo, qual a razão para que se tenha por inconstitucional o direito o direito Município aprovar loteamento fechado? Se pode o mais, pode o menos. (...)

No caso concreto devem ser tomadas todas as cautelas afastando obstáculo à continuidade do sistema viário público existente ou projetado, prevendo a situação das áreas verdes, das áreas públicas de lazer, que serão objeto de concessão onerosa de uso, que depende de autorização legislativa, e demais providências que resguardam o interesse público. (Grifo nosso)

Dois pontos merecem ser destacados do trecho acima reproduzido. Primeiro, é problemática a alegação de que a Municipalidade poderia, ao seu talante, por meio de simples lei, desafetar bem de uso comum do povo, sem maiores rigores. Como veremos, mais adiante, o melhor entendimento é o exarado pelo Min. Herman Benjamin, da 2ª Tuma do STJ, quando do julgamento do REsp 1.135.807/RS, em 15/04/2010, sobre questão que envolvia desafetação de bem do Município de Esteio/RS. Vejamos trecho de seu voto:

Retirar da praça a natureza de loci communes, loci publici não é um banal ato de governo municipal. Significa grave opção administrativa reducionista do componente público, de repercussões imediatas, mas também com impactos, normalmente irreversíveis, no futuro próximo e remoto da evolução da cidade. Daí que, quando efetivada sem critérios objetivos e tecnicamente sólidos, adequada consideração de possíveis alternativas, ou à míngua de respeito pelos valores e funções nele condensados, a desafetação de bem público transforma-se em vandalismo estatal, comportamento mais repreensível que a profanação privada, pois a dominialidade pública encontra, ou deveria encontrar, no Estado, o seu primeiro, maior e mais combativo protetor. Como precisamente indica Victor Carvalho Pinto, “o desafio do Direito Urbanístico é reduzir as falhas de mercado sem ampliar as falhas de governo” (Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 71). Sem dúvida, a cidade sustentável acha-se permanentemente sitiada pela especulação imobiliária, de um lado, e, de outro, pela incompetência ou apatia, quando não por pura e criminosa má-fé do administrador municipal perante o destino da urbe no médio e longo prazo. Dupla ameaça essa que se torna irresistível, como sucede com infeliz frequência quando os interesses privados e os governantes de momento decidem coordenar esforços, amiúde propagando, paradoxal e enganosamente, a destruição da qualidade de vida na cidade como se fosse sua salvação ou cura milagrosa de seus males. (Grifo nosso)

Colocado o primeiro ponto em termos adequados, ou seja, verificada que toda desafetação demanda sério e consistente esforço argumentativo da Municipalidade para justificar, em nome do interesse público, a alteração de destinação de um dado bem, o outro ponto do trecho de Marco Aurélio Viana merecedor de destaque é o de que a aferição da constitucionalidade da desafetação de um bem público deve ser feita caso a caso.

Por exemplo: caso o fechamento das vias de um loteamento venha a implicar grave aumento das distâncias a serem percorridas pela população para se desincumbir de seus afazeres diários, a norma poderá ser declarada inconstitucional, eventualmente, por violação do princípio da proporcionalidade (em decorrência da excessiva/desproporcional restrição ao direito de locomoção).

A expansão das comunidades residenciais fechadas pode gerar graves problemas de mobilidade em certas cidades, em decorrência do aumento de fluxo de veículos nas vias que margeiam os muros dos loteamentos, sem que haja rotas alternativas para os condutores, em razão da ruptura do tecido urbano provocada pelos referidos muros. Vejamos um exemplo de problemática constituição de loteamentos fechados no Setor Sul do Município de Uberlândia/MG, apresentada no trabalho de Marcos Roberto Alves da Silva et al. (2012).

Imagem de satélite dos Loteamentos Fechados Jardins Barcelona e Jardins Roma (no Setor Sul do Município de Uberlândia/MG), evidenciando a não integração entre as vias e a existência de uma via entre os dois empreendimentos, margeada por muros em ambos os lados. Fonte: Silva et al. (2012, p. 12)

Como conclusão do presente tópico, entendemos que, via de regra, em nome da presunção de constitucionalidade das leis e da seriedade que norteia a confecção de normas e planos urbanísticos, a autorização de fechamento de loteamentos por parte de norma municipal não configura violação ao direito de locomoção. Entretanto, caso, na análise de específica situação em que a autorização de fechamento de um dado loteamento venha a configurar desproporcional restrição à locomoção dos munícipes não residentes no empreendimento, a norma municipal poderá estar eivada de inconstitucionalidade por violação do direito de locomoção.

A grave complexidade do tema reside, principalmente, no fato de que, em um primeiro momento, a fluidez do trânsito pode até se apresentar adequada, todavia, no médio e no longo prazo, com o eventual agigantamento da cidade, poderá gerar sérios problemas de mobilidade urbana.