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CAPÍTULO 2 A DEFINIÇÃO CONSTITUCIONAL DAS COMPETÊNCIAS

2.2 O PLANEJAMENTO DAS CIDADES BRASILEIRAS

2.2.2 O tratamento de áreas urbanas e rurais pelo Plano Diretor municipal

2.2.2.2 Da necessária integração entre cidade e campo

Integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência, estão previstas no rol das diretrizes gerais da política urbana, cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.89

São comuns análises jurídicas que explicitam e reforçam suposta nítida separação entre o território urbano e o rural, como se atividades e funções urbanas fossem incompatíveis com o espaço rural e vice-versa.

Essa perspectiva dicotômica de ordenamento territorial não tarda em revelar suas fragilidades, tal como demonstrado no tratamento da questão referente ao parcelamento do solo e às construções urbanas e rurais. A própria dinâmica de ocupação do território, que não respeita a letra fria de normas definidoras de divisas entre o campo e a cidade, é exemplar de como as funções dos territórios vão-se alterando.

É igualmente comum corrente jurídica que analisa o espaço rural desde uma perspectiva eminentemente urbana, sugerindo que tal área seria uma mera extensão do ambiente urbano, devendo ser supostamente prestigiada diretriz tendente à urbanização do rural. O resultado dessa perspectiva parece levar a uma crescente conversão de terras rurais em urbanas sem promover a necessária integração social e, tampouco, se preocupar com a sustentabilidade do ambiente fagocitado pela precária urbanização.

Como destacam Paula Santoro et al. (2004, p. 7), deve-se ter em mente a “pluriatividade” das famílias rurais. Em outras palavras, deve-se superar a ultrapassada concepção de que as famílias no meio rural vivem supostamente apenas do trabalho em atividades agrícolas. Hoje, é possível perceber que há muitas outras ocupações que

geram emprego e renda para tais famílias, como a construção civil, o artesanato, confecções etc.

Ademais, no que tange às atividades rurais, deve-se considerar a multifuncionalidade do polivalente mundo rural que, além da produção e extração de bens privados, como alimentos, fibras, agroturismo e outros produtos comerciais, também desempenha funções que se referem à reprodução de bens públicos, como manutenção da biodiversidade, conservação do solo, paisagem rural, herança cultural, segurança alimentar, entre outros. É, no espaço rural, onde mais se manifestam as diversidades regionais, onde há ocupação humana tradicional, a preservação da biodiversidade nativa, dos cursos d’água e dos mananciais hídricos, favorecendo a manutenção da qualidade e a disponibilidade da água para toda uma população.

Não só a cidade necessita do campo. A recíproca é verdadeira! Grande parte da população que vive na zona rural tem seu emprego e trabalho na região urbana, sem contar a utilização da infraestrutura e serviços urbanos, como o transporte coletivo, escolas, postos de saúde, hospitais, comércio e lazer. A política de desenvolvimento urbano, fundamentada no princípio do desenvolvimento sustentável, representa um modelo de desenvolvimento baseado na garantia do meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. O desenvolvimento da cidade, nesses termos, depende do desenvolvimento da região rural, tanto quanto o campo necessita da cidade.90

Com relação ao planejamento territorial, é necessário que haja melhor adequação dos instrumentos jurídicos reguladores da ocupação e exploração humanas ao interesse coletivo, levando em consideração as peculiaridades dos espaços urbanos, rurais e de transição entre um e outro.

Por exemplo, Gerd Sparovek et al. (2004, p. 14-24), lastreados em ganhos tecnológicos da cartografia digital que disponibilizam ferramentas para melhores desenhos institucionais, sustentam a conveniência de se traçarem políticas específicas nos espaços limiares entre o urbano e rural, denominados de Região de Entorno

Imediato (REI), em que, de forma gradual, o urbano se transforma em rural e vice- versa.91

Nessa ordem de ideias, ao que tudo indica, melhor enfoque do que um tratamento meramente dicotômico de oposição do urbano ao rural requer considerar a interdependência entre estes espaços e, por isso, acreditamos, na linha do que sustenta Renato Maluf (2004, p. 37-40), que a incorporação da área rural dos municípios nos respectivos planos diretores (em outras palavras, a municipalização da área rural) cria a oportunidade de aperfeiçoar a normatização sobre ordenamento territorial.

Além disso, com a intensificação da industrialização e a revolução nos transportes e nas comunicações, decorrentes da introdução da máquina no processo de circulação de bens, mercadorias e informações, as distâncias planetárias diminuíram, sendo que regiões antes longínquas, hoje, figuram como mercados potenciais para os produtos da indústria onipresente.

Não é sem razão que, como ensina José Afonso da Silva (2012, p. 21), já se fala em novo estágio da evolução da urbanização, em que haveria o fim da contraposição entre cidade e campo na organização do território, em virtude da difusão dos serviços e da tecnologia, que induz a constituir-se um contínuo urbano-rural, no qual o fornecimento de serviços tem primazia sobre a produção e transformação de alimentos e utensílios. Tal estágio estaria a caracterizar a cidade pós-industrial e “o fim das cidades”.

Escatologias à parte, é fato que a estruturação das cidades pelo Poder Público, como forma de enfrentar insuficiências, incoerências e disfunções das lógicas privadas e do mercado, é objeto de preocupação dos diversos ordenamentos jurídicos.92

91 Na lição dos referidos autores (2004, p. 20-21), o desenho de uma Região de Entorno Imediato “exige

um certo grau de modernização da análise cartográfica, a digitalização dos dados e a utilização de uma lógica mais próxima do pensamento convencional, que facilita o entendimento, a aceitação e assimilação, mas dificulta (ou modifica) os procedimentos em análise. Convencer alguém que esteja na área de transição (REI), de que ali onde esteja localizado – eventualmente sem transporte coletivo, sem arruamento, escola ou posto de saúde – seja realmente área urbana do município, é muito mais difícil. Afirmar que ainda não é urbano, mas já deixou de ser rural por já não haver agricultura convencional, por o ônibus passar ali perto e por causa das chácaras que dominam a paisagem será com certeza muito mais fácil e convincente. Nesse contexto explicativo, é fundamentalmente importante encontrar ou construir ferramentas metodológicas (cartográficas e estatísticas) que ‘pensem’ dessa forma; felizmente, isso já é possível, graças à tecnologia disponível atualmente, relativamente acessível”.

Antes de finalizarmos o presente tópico, vale a pena destacar que, em breve, o Supremo Tribunal Federal enfrentará o tema da constitucionalidade de lei municipal que legisla sobre o planejamento rural, por exemplo, limitando a expansão da lavoura de cana-de-açúcar em seu território.

A esse respeito, pode-se mencionar a Lei Complementar n. 5.200/2006, do Município de Rio de Verde, do Estado de Goiás, segundo a qual: “Fica limitado em 10% (dez por cento) de cada propriedade agricultável, por safra, o plantio de cana-de- açúcar no município de Rio Verde, condicionado, ainda, aos seguintes preceitos (...)”. Acresce que, no mesmo ano, o referido caput do art. 1º da referida norma recebeu nova redação pela Lei Complementar n. 5.206/2006, passando a ter a seguinte redação: “Fica limitado em 10% (dez por cento) da área agricultável do Município, por safra, o plantio de cana-de-açúcar em Rio Verde, condicionado, ainda, aos seguintes preceitos (...)”.93

No Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 633.548/GO, sob a relatoria do Min. Edson Fachin, em substituição ao antigo relator Min. Ricardo Lewandowski, será decidido se o Município de Rio Verde invadiu a competência da União Federal para legislar, privativamente, sobre direito civil e direito agrário (CF, art. 22, inc. I), ou então o tema prevalecente na dita lei municipal diz respeito ao direito urbanístico, cuja competência é concorrente e pode fazer com que a norma seja considerada compatível com a Constituição do Estado de Goiás e a Constituição Federal.

Verificadas as competências federativas e as principais normas referentes ao ordenamento territorial urbano, no próximo capítulo, apresentaremos a distinção entre “loteamentos fechados” e “condomínios urbanísticos”, para, então, no quarto e último capítulo, enfrentarmos, mais detidamente, o problema da validade da regulação municipal dessas duas modalidades de empreendimentos murados.

93 Sobre o tema, cfr. Marcos César Gonçalves de Oliveira (2010) e Hebert Mendes de Araújo Schütz

CAPÍTULO 3 LOTEAMENTOS FECHADOS E CONDOMÍNIOS