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A explicação da ascensão do poder das ruas

No documento BID APolíticadasPolíticasPúblicas (páginas 127-130)

Que fatores explicam a propagação desse fenômeno e seu poderoso impacto sobre os proces- sos políticos da região? Três crises diferentes do sistema político podem estar ligadas à as- censão do poder das ruas. Essas crises podem ser descritas como a “fraqueza do Estado”, a “fraqueza da democracia representativa” e a “fraqueza da nação”.

Fraqueza do Estado. A primeira crise está associada ao enfraquecimento do Estado, tanto

com respeito à manutenção da renda dos setores que tradicionalmente o apoiaram (traba- lhadores organizados, proprietários rurais e classe média urbana) como com respeito à pres- tação de serviços adequados para os setores menos favorecidos da população, que obtive- ram novos poderes políticos em decorrência da democratização. De um lado, medidas de austeridade fiscal e o fim dos antigos monopólios estão desintegrando o antigo Estado cor- porativista e clientelista, eliminando privilégios e dando fim a antigas alianças sociais. Por outro lado, as expectativas geradas pela democracia foram frustradas pela necessidade de se lidar com circunstâncias econômicas desfavoráveis. Um Estado fraco, incapaz de atender às expectativas de melhoria geradas pela democracia, é uma das fontes de descontentamento e mobilização social.

Na Argentina, a renúncia do Presidente Fernando de la Rúa estava relacionada a esse primeiro tipo de crise. Ela foi o resultado de uma série de escândalos de corrupção, uma pro- longada recessão econômica, seguida de colapso da economia, e um profundo desencanto com os políticos, evidenciado pelo grito de guerra dos manifestantes: “¡Que se vayan to- dos!” (“Fora com todos!”). A crise argentina fez surgir uma ampla gama de movimentos so- ciais, dos “piqueteros” — um movimento de protesto social formado por setores desfavoreci- dos, porém heterogêneos, suscetíveis de manipulação política — até poderosas organiza- ções sociais de múltiplos objetivos criadas para compensar a incapacidade das instituições públicas de responder às necessidades sociais. Deve-se ressaltar que esses movimentos não foram capazes de institucionalizar um sistema de representação que pudesse substituir as instituições tradicionais da democracia, como os partidos políticos.

Fraqueza da democracia. Em termos gerais, a prática da democracia na região não lo-

grou gerar progresso significativo na satisfação de necessidades sociais não atendidas e na criação de governos transparentes, isentos de corrupção e não-cativos de interesses específi-

Os movimentos sociais tor- naram-se atores políticos complexos e influentes.

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Quadro 5.6 Manifestações civis que tiveram papel de importância na deposição de um presidente

País Presidente Data da deposição Fatores da crise

Argentina De la Rúa 21 de dezembro de 2001

—Insatisfação generalizada com a situação socioeconômica e com os políticos. —Colapso da economia. —Casos de corrupção. Bolívia Sánchez de Lozada 17 de outubro de 2003

—Insatisfação generalizada com a situação socioeconômica.

—Reivindicações dos povos indígenas. —Exportação de gás natural.

Bolívia Mesa 6 de junho de 2005

—Falta de suficiente apoio social e respaldo político.

—Exigência de nacionalização de recursos naturais, de um maior papel do Estado na economia, de melhor representação das comunidades indígenas e de autonomia regional.

Brasil Collor de Mello 29 de dezembro de 1992

—Crise econômica com hiperinflação. —Violações dos direitos humanos. —Corrupção e escândalos pessoais. Equador Bucaram 6 de fevereiro

de 1997

—Corrupção, clientelismo, nepotismo. —Desordem institucional.

—Tentativa de privatização de importantes empresas estatais.

—Eliminação de subsídios a serviços públicos.

Equador Mahuad 21 de janeiro de 2000

—Crise econômica.

—Perda da confiança no sistema bancário (congelamento das poupanças). —Dolarização da economia. Equador Gutiérrez 20 de abril

de 2005

—Disputa partidária pelo controle do Supremo Tribunal e destituição inconstitucional de juízes. —Disputa pela governabilidade no

contexto de um sistema partidário e político altamente fragmentado e regionalizado.

—Profunda decepção com o Congresso e o sistema político.

—Perda do apoio das forças armadas.

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cos. Ademais, o aumento da exposição dos governos democráticos ao escrutínio da opinião pública tendeu a exagerar suas transgressões, em comparação com as violações dos regimes autoritários, que lançavam mão de meios repressivos para se proteger de críticas. Fraquezas subjacentes aos processos democráticos não conseguiram impedir práticas autoritárias, clientelismo, populismo, corrupção e sujeição de instituições e políticas públicas a interes- ses específicos. Esse fracasso dos processos democráticos também teve repercussões no que diz respeito ao cumprimento de missões-chave do Estado, como a prestação de serviços efi- cientes e a promoção do desenvolvimento. Considera-se que as políticas públicas não obti- veram êxito em incorporar e responder às necessidades e demandas do conjunto de cida- dãos, resultando na exclusão de amplos segmentos da população dos benefícios do cresci- mento. Os partidos políticos tradicionais e os partidos, em geral, tornaram-se a principal ví-

Quadro 5.6 Manifestações civis que tiveram papel de importância na deposição de um presidente(continuação)

País Presidente Data da deposição Fatores da crise

Guatemala Serrano Elías 1º de junho de 1993

—Serranazo(tentativa de autogolpe de Serrano).

—Suspensão da Constituição.

—Dissolução do Congresso, do Supremo e do Tribunal Constitucional.

Paraguai Cubas 23 de março de 1999

—Anistia do General Oviedo.

—O Congresso, a Procuradoria-geral e o Supremo declaram o perdão

inconstitucional.

—Assassinato do Vice-Presidente Argaña. Peru Fujimori 19 de novembro

de 2000

—Autoritarismo e concentração do poder. —Fraude eleitoral.

—Corrupção política em grande escala. Venezuela Pérez

Rodríguez

20 de maio de 1993

—Caracazo: revoltas populares e violenta repressão.

—Grande decepção com os partidos políticos tradicionais e o sistema político.

—Crise econômica e medidas de austeridade.

—Abandono de programas sociais. —Duas tentativas de golpe de Estado: 3

de fevereiro de 1992 e 27 de novembro de 1992.

—Acusações de corrupção. Fonte: Compilação dos autores.

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tima dessa perda de confiança nos processos democráticos, o que agravou ainda mais a crise das instituições representativas.

Os protestos desencadeados pela fraude eleitoral e corrupção cometidas pelo governo do Presidente Alberto Fujimori, no Peru, podem estar associados a esse tipo de crise. As manifes- tações que culminaram na deposição do Presidente Fernando Collor de Mello, no Brasil, do Presidente Raúl Cubas, no Paraguai, e do Presidente Jorge Antonio Serrano, na Guatemala, também são atribuíveis, em grande parte, a fatores relacionados a deficiências dos processos democráticos. A queda do Presidente Carlos Andrés Pérez e o subseqüente colapso do sistema partidário tradicional da Venezuela podem ser atribuídos a uma combinação dos fatores em jogo nas duas dimensões da crise: reação das ruas à prolongada incapacidade do Estado de re- alizar melhorias nos padrões de vida (e as duras medidas de ajuste adotadas pelo governo) e a percepção de corrupção generalizada na classe política.

Fraqueza da nação. Uma terceira crise é a ausência de um senso compartilhado de nacio-

nalidade. Para gerar um sentimento de identidade nacional, o Estado precisa ser capaz de produzir uma visão de futuro comum, a partir da qual se pode criar uma comunidade de ci- dadãos dotados de direitos e deveres. Às dificuldades de se lidar com esse terceiro tipo de cri- se somam-se os fracassos sistêmicos relacionados aos outros dois tipos de crise. Quando se tem a sensação de que os benefícios se concentram em uma minoria, enquanto se de- mandam sacrifícios sempre dos mesmos grupos — que são exatamente os grupos majoritá- rios que não participam dos processos decisórios —, fica extremamente difícil promover o surgimento do sentido de pertencer à mesma comunidade política. Em tal contexto, é co- mum aparecerem movimentos que criam identidades paralelas com visões distintas da na- ção. Esse tipo de crise é o mais difícil de ser solucionado, pois implica conflitos fundamen- tais sobre a definição prática de direitos e responsabilidades de diferentes grupos de cida- dãos, assim como a forma de se estruturar o Estado em termos territoriais, com vistas à me- lhor incorporação dos interesses divergentes desses grupos.

Bolívia e Equador compartilham elementos desse terceiro tipo de crise. As constantes deficiências de desempenho do governo com respeito à promoção do desenvolvimento eqüitativo e à representatividade de seus processos democráticos são exacerbadas por con- flitos sobre nacionalidade, refletidos na mobilização de comunidades indígenas para a ob- tenção de maior expressão no sistema e em reivindicações de maior autonomia de diferen- tes regiões do país. Na Bolívia e no Equador, tais crises resultaram na renúncia de vários pre- sidentes, e a paisagem política permanece instável.

Os movimentos sociais têm raízes em fatores estruturais e circunstanciais. Estes últimos, como um aumento do preço dos combustíveis ou a proposta de privatização de uma empre- sa estatal, podem dar início a uma onda de protestos sociais. Por trás desses fatores circuns- tanciais normalmente estão fatores estruturais ocultos, como estagnação econômica pro- longada, pobreza generalizada, falta de oportunidades de emprego e corrupção política. Esses fatores estruturais explicam a intensificação do descontentamento dos cidadãos. Assim, os novos movimentos sociais por vezes são latentes, mas podem entrar em atividade quando desencadeados por determinados acontecimentos. Esses acontecimentos tornam-se catalisadores com os quais líderes sociais podem mobilizar a população para ir às ruas.

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