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A filosofia e o método para a refundação da ciência

No documento ATESE (páginas 185-189)

170. É em face de suas críticas de um lado à religião e de outro à filosofia, que vão se levantar os argumentos de Proudhon em defesa do que segundo ele se deve compreender como ciência, enquanto atividade cognitiva que se opõe a essas duas como uma terceira fase que as absorve alterando as relações entre elas e, sintetizando-as, as ultrapassa.

Entretanto — e isto é um ponto importante a notar — Proudhon adverte que a ciência precisa de uma refundação. Ela precisa ser melhor fundada, precisa recomeçar com melhores fundamentos em termos teóricos e racionais. Até o século XIX a ciência — no sentido de conhecimentos assentados com alguma medida de segurança ou certeza — vem se desenvolvendo, segundo Proudhon, espontaneamente ao longo do tempo, em meio à população, sob a forma de experiências vivenciadas corriqueiramente e que se tornam habituais, e pequenas evidências que cotidianamente se assentam a partir dessas experiências, e que vão se acumulando.

171. Todo esse material e o seu processo de assentamento não tem ainda o devido esclarecimento do ponto de vista teórico. Se o processo de desenvolvimento desses conhecimentos pudesse ser esclarecido, ele seria assumido de maneira mais consciente e mais crítica, e potencializado. Este é o objetivo do método proudhoniano elaborado em Da criação da ordem na humanidade, e que sendo um método universalmente válido para todas as ciências, deve servir à sua refundação: o objetivo é promover a refundação da ciência de modo a potencializar o desenvolvimento do conhecimento. Essa potencialização tem duplo sentido. Proudhon pretende potencializar por um lado os processos de aquisição de conhecimentos, mas também pretende com isso, por outro lado, potencializar a capacidade humana de atuação sobre o mundo fenomênico, mediante esses conhecimentos.

172. Proudhon chama o seu método de “metafísica”, que é uma expressão diretamente extraída do próprio núcleo daquilo que mais se praticava como filosofia em sua época. decerto o que pretende com isto é ser provocativo, pois não está alheio a essa compreensão quando escolhe tal terminologia, inclusive se diz entusiástico (embora crítico) leitor de Kant, que é justamente quem se destaca, no ambiente filosófico da época, como aquele que teria colocado a questão da metafísica como fundamental para a

própria definição da atividade filosófica. A partir de Kant, muitos contemporâneos de Proudhon, quando se debruçam sobre as possíveis distinções entre filosofia e ciência, tendem a pensar a filosofia como a atividade responsável pela aquisição de conhecimentos por uma via puramente racional, cabendo às ciências o conhecimento de base empírica ou fenomênica. O campo de tal “razão pura” seria o da metafísica. Proudhon diz que para refundamentar a ciência é preciso “metafísica”, compreendendo esse termo no sentido de método, e ao contrário de Kant, procura fundar todo o conhecimento que chama de “metafísico” — conhecimento sobre as questões metodológicas — precisamente na observação dos fenômenos intelectuais.

Note-se que, segundo Proudhon, os fenômenos constituem tanto o mundo dito “físico” como o campo das ações ou mesmo o das ações intelectuais, sem que haja em Proudhon espaço para a afirmação de qualquer outra coisa para além do campo fenomênico, que se poderia chamar, em um sentido que coincide com o da filosofia pirrônica, de campo das aparências, abrangendo aquilo que aparece à mente sem que se deva necessariamente afirmar tal aparência como real ou como dependente de algo inaparente para além dela.

173. O modo como Proudhon caracteriza seu trabalho metodológico é parte de uma luta contra o que se costuma praticar em sua época como filosofia. Suas críticas à filosofia avançam de fato dessa prática de sua época para aquilo que está presente no fundo de toda prática filosófica em qualquer época: a tendência da filosofia, por sua própria e mais íntima vocação, para a fuga da realidade em formulações que nem sequer procuram corresponder a ela — crítica a uma certa natureza alienante da filosofia, segundo suas características mais profundas.

Mas ao propor uma refundação da ciência, Proudhon propõe também, paralelamente, algo que seria como uma refundação da própria filosofia, à imagem daquilo que ele próprio procura praticar na formulação de seu método. Nessa refundação, a filosofia seria recolocada à serviço da ciência, mas como sua mais fundamental fonte de orientação, concentrando-se portanto em questões metodológicas e de teoria do conhecimento, e tomando qualquer outra questão filosófica como derivada destas.

174. Por outro lado, Proudhon parece supor que, nesse papel de orientação metodológica e fundamentadora das ciências, a filosofia passa a ter uma tarefa apenas inicial a cumprir: firmadas as ciências, ela deve desaparecer. O que produz uma reviravolta interessante nessa progressão proudhoniana pela qual a filosofia parece finalmente condenada a desaparecer em favor da ciência, é o próprio modo como Proudhon caracteriza a ciência, como última e mais avançada fase de desenvolvimento da atividade cognitiva humana: sua caracterização, como se verá, incorpora traços tão característicos da filosofia que ela parece renascer sob nova forma — mais objetiva em suas práticas intelectuais — no próprio interior da ciência.

175. Há portanto uma prática filosófica que circula ainda presa no labirinto de barreiras passionais e confusas dos símbolos religiosos; e uma que, mais liberta e rebelando-se contra esse labirinto, mostra-se mais fiel à sua própria vocação questionadora, iconoclasta, destruidora de símbolos, mas escapista, propensa à alienação, e que, ainda confiante nas asas de uma liberdade de pensamento que supõe absoluta, tende a perder o senso de realidade. A primeira, contaminada de religiosidade, pode ocorrer antes do desenvolvimento da segunda, ou pode ocorrer depois, como um refluxo ou retorno da filosofia ao conservadorismo religioso. O decisivo para a ruptura desse cabo-de-guerra entre religião e filosofia, para o fim dessa oscilação entre uma forma de pensamento e outra, seria a (re-)fundação da ciência, cuja iniciativa caberia aos próprios filósofos, radicalizando e realizando por completo seu empenho questionador, destrutivo, ao voltá-lo autocriticamente contra si mesma, propondo enfim, por essa via, algo de positivo fora de si: uma nova base para a própria ciência, que deve vir a substituí-la mais satisfatoriamente na luta pelo conhecimento.

Proudhon propõe, então, para cumprir esse papel autocrítico, uma filosofia ajustada ao bom senso de realidade fornecido pela objetividade das ciências, compreendidas como formulações teóricas com base no acúmulo de experiências e evidências cotidianas colhidas ao longo da história pela vida prática das pessoas, nas diferentes sociedades humanas. Propõe que essa filosofia, com a devida autocrítica, administre seu próprio fim e sua própria assimilação por tais ciências. E o faz, enfim, de

modo a sugerir que nessa assimilação, algo da própria filosofia — o que ela teria ainda a oferecer de efetivamente útil na construção dos conhecimentos — deve reviver no interior das ciências, como traços característicos de uma legítima atividade científica.

176. A essa filosofia em certa medida “suicida” caberia reconciliar-se com a faculdade humana de crer sem submeter-se a ela, promovendo um equilíbrio entre seu próprio impulso investigacionista e a fixação de crenças, de modo a recaracterizar ambas as atividades: o questionamento assimilado ao processo de fixação e avaliação da qualidade dos conhecimentos, e a fixação de conhecimentos relativizada, depurada do sentido de “crença” e submetida à constante provação crítica da razão — esse equilíbrio de uma coisa pela outra é precisamente o que descreve, para Proudhon, a atividade científica enquanto síntese de ambas. Este é o percurso do raciocínio Proudhoniano.

177. O nó de toda a construção do saber, como se vê, se encontra para ele na passagem da filosofia à ciência, como superações da barreira religiosa, a primeira uma superação agressiva e insatisfatória, a segunda, não tão agressiva — pois a ciência acolhe do pensamento caracteristicamente religioso o estabelecimento de crenças — mas ao mesmo tempo, é uma superação mais definitiva. Não obstante, tanto o pequeno papel positivo quanto o grande papel negativo desempenhados pela religião no processo do conhecimento, permanecem indiretamente em ação no interior de suas duas formas de superação, e especialmente na de última fase, que é a forma científica. Sua ação no interior desta última, porém, é consideravelmente remodelada.

No documento ATESE (páginas 185-189)