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Nas vizinhanças de Kant e de Hume

No documento ATESE (páginas 67-69)

58. Em uma passagem bastante significativa no Prólogo do livro Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria, se lê de Proudhon, por exemplo, a seguinte frase: “Um pouco de filosofia afasta da religião, disse não sei qual pensador irônico, e muita filosofia traz de volta a ela — esta observação é de uma verdade humilhante” (PROUDHON55, p. 45). A alusão, sutil mas perceptível para leitores de formação filosófica, é à relação entre Kant e Hume, cujos nomes não são mencionados. O primeiro deles, em uma frase de efeito famosa, declara ter sido despertado de seu “sono dogmático” pelo ceticismo do segundo. Proudhon associa esse “sono dogmático” à religiosidade.

No conjunto das menções de Proudhon a Kant que se espalham por algumas de suas obras, pode-se acompanhá-lo elogiando o que lhe parece um empenho kantiano no sentido de afastar-se da consideração do “absoluto” — “Deus” para os religiosos — enquanto conteúdo, mediante a consideração do absoluto apenas enquanto forma no pensamento, forma que, diz Proudhon, já não é de fato o “absoluto” como algo extra- humano, e sim algo imanentemente humano. Suas críticas a Kant sempre denunciam, nele, uma limitação nessa guinada iniciada no sentido de uma ruptura histórica com o pensamento religioso, uma falta de radicalidade, assinalada pela permanência da atribuição de um valor positivo ao absoluto afastado como conteúdo inacessível. Na filosofia kantiana, tudo o que se apresenta como dado sem a exposição de sua gênese histórica e social — por exemplo categorias como tempo, espaço etc., nas quais Proudhon detecta construções no fundo lingüísticas e de caráter histórico — figura para o anarquista francês como um retorno, por contaminação indireta, à mesma “sonolência” dogmática da qual Kant pretendia ter despertado.

208. No fim do século dezoito, um filósofo alemão empreendeu com novo alento o inventário do espírito humano, e a classificação das categorias. Segundo Kant, todos os nossos pensamentos, quanto a seu objeto, são concebidos no tempo e no espaço; quanto à sua forma, eles se remetem a doze gêneros, ou para dizê-lo melhor a doze pontos de

55 Cf. PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistema de las contradicciones economicas o Filosofia de la miseria. Madrid: Júcar, 1975, tomo 1.

vista56, pré-formados no entendimento57. São esses pontos de vista gerais (sob os quais toda série é necessariamente construída)58, que Kant, a exemplo de Aristóteles, chamou de categorias.(...)

209. Todas essas categorias são uma imitação das categorias gramaticais, vulgarmente chamadas partes do discurso. (...) Ora, qual pode ser a utilidade desta classificação em lógica? (...)

As categorias, supondo sempre que sua enumeração e determinação sejam rigorosas, são para a metafísica59 o que os corpos simples são para a química: servem para exprimir o que lhe é ininteligível, a substância, a causa, a paixão etc. O entendimento não faz nada sem elas; ora, a questão não é saber sobre o que o entendimento opera, mas como ele deve operar.

(PROUDHON: Da criação da ordem na humanidade,60 p. 162-163)

Demonstrando sempre, independentemente de suas críticas, grande admiração pela filosofia kantiana, e ocasionalmente a intenção de ser lido como um “continuador” (entenda-se “radicalizador”) de um movimento histórico iniciado por Kant, Proudhon pretendeu inclusive, com insistência, dedicar o terceiro capítulo de Da criação da ordem na humanidade — foco bibliográfico central desta pesquisa — a um importante tradutor das obras kantianas na França, Tissot. Mas não pôde fazê-lo, porque Tissot, ciente de que a obra não se pretendia de modo algum uma herdeira legítima da filosofia de Kant, mas quando muito uma herdeira distante, bastarda e de direitos questionáveis quanto a isto — e também decerto receoso ante a expectativa de ver seu nome associado ao de radical “subversivo” do porte de Proudhon — recusou terminantemente a dedicatória. Em respeito à recusa, tal dedicatória foi redirecionada, por ocasião da publicação — aliás também significativamente — a um antigo professor de línguas e filologia de Proudhon. 56 “Pontos de vista” são um gênero de itens constitutivos das “séries”, que constituem o que Proudhon

define como o objeto mais imediato da atenção de sua Teoria Serial. O tema será tratado no Capítulo II desta pesquisa.

57 No original, “préformés dans l’entendement”.

58 Mais uma vez, referência de Proudhon à sua própria teoria. Ele procura sugerir, aqui, de que modo esta passagem do pensamento kantiano — como a rigor qualquer passagem de qualquer construto teórico — poderia ser traduzida nos termos da Teoria Serial, visando verificar se, na “série” que equivaleria a tal construto teórico, há ou não boa construção e pertinência ao objeto tratado. Cf. Capítulo II desta pesquisa.

59 Proudhon declara usar a palavra “metafísica” com o sentido de método.

As edições Tops-Trinquier (de 2000) e Marcel Rivière (de 1927) do livro Da criação da ordem na humanidade oferecem, em nota de rodapé da primeira página do Capítulo III — coincidentemente a página 127 em ambas — esclarecimentos resumidos sobre o caso, que podem ser completados com a leitura das correspondências61 de Proudhon.

59. A crítica de Proudhon à causalidade62, por outro lado, herdeira — também ilegítima, mas talvez já não tanto — das preocupações de Hume, está no centro de sua teoria do conhecimento, bem como de seu posicionamento no debate entre Comte e Cousin. Curiosamente, esta proximidade com Hume não tem sido sequer notada pelos comentadores.

É verdade que também não é preciso examinar detidamente Hume para assinalar essa presença, nem para compreender a formulação dessa crítica por Proudhon, que embora não chegue a refutar a formulação humeana, a estende em uma direção que já não é de modo algum a mesma, dando-lhe o sentido histórico-antropológico de um movimento de transformação na mentalidade social, rumo ao abandono do princípio de causalidade — movimento aplaudido pro Proudhon e do qual Hume teria sido, por assim dizer, o anunciador. Mas ainda que desta maneira enviesada, tal presença — a da crítica humeana à causalidade — é uma que não há como deixar passar despercebida em Proudhon, e merece ser ao menos bem assinalada.

No documento ATESE (páginas 67-69)