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Proudhon e a demarcação das fronteiras da filosofia

No documento ATESE (páginas 95-99)

85. O que essa diferenciação entre filosofia e ciências, afinal, tem a oferecer quanto ao esclarecimento do pensamento proudhoniano? Isto se responde em quatro observações a respeito do passado e do presente no campo das pesquisas científicas e acadêmicas.

Primeira observação. Essas diferenciações não seriam plenamente possíveis no século XIX, porque sua realização — a separação entre ciências e filosofia — ainda estava em seu curso histórico de desenvolvimento. Mas agora, não podem ser evitadas. Muitas vezes se alerta, em filosofia, para o que se chama de ilusão retrospectiva: o erro de se examinar um fenômeno do passado a partir de uma perspectiva atual, e com isto distorcer os fatos e perdê-los de vista, projetando sobre eles o que não existia ali, porque só passou a existir nos dias de hoje. Aqui, o perigo é exatamente o contrário: uma projeção ilusória do passado, sob a forma dos traços positivistas presentes na obra de Proudhon, que o colocam no mesmo caldo de quase todos os pensadores progressistas da época, tem bloqueado o acesso aos diferenciais oferecidos particularmente por esse autor em relação a esse caldo geral positivista. Uma forte herança real desse mesmo passado nos dias de hoje — o objetivismo acadêmico, sob certos aspectos coincidente com o objetivismo cientificista — tem contribuído para isso.

Tem-se procurado comparar, por exemplo, a eficácia dos resultados das pesquisas realizadas segundo a abordagem de Proudhon com a das pesquisas realizadas segundo os critérios de Marx, considerando-os estudiosos voltados para os mesmos objetos de pesquisa. Costuma-se preferir Marx do ponto de vista da crítica aos poderes econômicos, e Proudhon do ponto de vista da crítica à representação política. Os comentadores parecem não se dar conta de que está envolvido, nessa comparação, algo que ultrapassa em muito a consideração da eficácia no exame dos objetos de pesquisa, porque ambos, Marx e Proudhon, além de estudiosos de diferentes áreas das ciências humanas, são filósofos. Cada um deles representa, pratica e defende teoricamente um diferente estilo de pensamento, uma forma de pensar que lhe é própria, e que pode ser aplicada a

diferentes objetos de estudo. A de Marx, aparentada à de Hegel, já foi e continua sendo consideravelmente explorada. A de Proudhon ainda é quase completamente desconhecida. Há de fato valores em jogo nesses estilos de pensamento, nessas abordagens personalizadas que estão inscritas nos próprios procedimentos pelos quais cada filósofo examina seus objetos de pesquisa. Mas isto — esses estilos de pensamento, essas maneiras de pensar personalizadas — é algo mais essencial à filosofia do que o próprio exame dos valores morais, que se costuma atribuir a essa atividade como um objeto de estudo especificamente seu.

Segunda observação. O estilo de pensamento de um filósofo atua como um filtro que remodela de uma maneira muito particular tudo aquilo que ele capta ou emite enquanto filósofo. Esses filtros filosóficos consistem em todo um jogo valores, todo um jogo de critérios de avaliação, que não são necessariamente de caráter moral, no sentido tradicional de avaliações acerca do bem ou do mal — embora se possa considerá-los morais quando se toma “moral” no sentido mais lato e abrangente, de referências de todo e qualquer tipo pelas quais as pessoas avaliam as coisas, e que por isso orientam os costumes coletivos e comportamentos individuais. Toda teoria filosófica constrói e põe em prática um filtro personalizado, pelo qual aborda seus assuntos e, idealmente, qualquer assunto que possa vir a surgir — daí o caráter generalista e avesso às especialidades que a filosofia apresenta. As ciências humanas não deixam de apresentar os seus filtros, mas eles são decorrências complementares, e de importância secundária, em um esforço investigativo realizado em direção a objetos de um tipo específico e pré- determinado, e para elas o critério de validação das teorias — incluindo seus filtros de abordagem — é neste sentido o mesmo das ciências da natureza.

Em filosofia, esses filtros de abordagem estão no centro da atenção, e embora precisem mostrar-se adequados, pertinentes e interessantes no exame daquilo que o filósofo toma como objeto de pesquisa, sendo quase sempre construídos a partir dos desafios oferecidos por esse exame, eles é que são o produto direto e imediato do esforço intelectual. E o critério fundamental pelo qual se avaliam esses filtros de abordagem é o debate, a confrontação dos filtros filosóficos uns com os outros. Isto é o que mais

fundamentalmente diferencia hoje a filosofia das ciências humanas. O critério de validação de uma teoria filosófica não está necessariamente em sua eficácia na busca da verdade acerca de um objeto de estudo específico, ou de um tipo específico de objeto — não poderia estar, porque uma teoria filosófica pode não ter nada a desvendar ou descobrir, mas algo a criticar, ou então algo a propor ou a criar — por exemplo uma nova mentalidade. Naturalmente, os critérios científicos são trazidos à baila também, e com grande peso, nos debates no seio da comunidade filosófica, e freqüentemente são lançados contra teorias, mas entre outros argumentos. Constituem um recurso de validação ou de invalidação de teorias, e não se confundem necessariamente com a própria finalidade de uma filosofia, havendo inclusive outros recursos dos quais se pode lançar mão nos debates entre as teorias.

Terceira observação. Essa situação generalizada de confusão entre as práticas filosóficas e as das diferentes ciências humanas, por parte dos comentadores de Proudhon a partir do século XX, se agrava muito em vista das circunstâncias históricas em que a filosofia proudhoniana foi produzida, e dos posicionamentos assumidos nesse quadro histórico pelo próprio Proudhon: o século XIX é justamente um momento crucial de ruptura entre as ciências e a filosofia, ruptura cujo elemento mais sintomático é a emergência do positivismo, e a partir dele, da defesa de uma objetividade construída principalmente pelo esforço de anulação ou minimização dos fatores subjetivos no processo de pesquisa. O foco de atenção dos que defendiam a ruptura — o mesmo foco de atenção que Proudhon adota — estava na associação íntima entre a filosofia praticada na época e o pensamento religioso, por sua vez conectado ao discurso de sustentação do posicionamento político mais à direita que se conhecia na Europa: o absolutismo de direito divino.

Os defensores da autonomia das ciências viam na filosofia um discurso voltado para abstrações ligadas ao mundo espiritual suposto pelos cristãos, e sem correspondência direta com a realidade social e o mundo material em que ela se inseria. Parecia claro, já desde a geração anterior à de Comte e Proudhon, que um processo de proporções revolucionárias estava em curso com o ritmo acelerado da industrialização, que era

preciso refletir a respeito, e que a reflexão filosófica não estava acompanhando esse processo.

Neste cenário, o caráter incontornavelmente personalizado das formulações teóricas dos filósofos tendia a ser encarado por muitos progressistas como parte do problema: a filosofia tradicional, quando se afastava das discussões espirituais de inspiração cristã e se empenhava para alcançar os acontecimentos, embrenhava-se no confronto das opiniões em torno do significado e valor de palavras-de-ordem e expressões genéricas de grande impacto, e com isto, parecia ainda presa ao purismo das abstrações sem vínculo com a realidade mundana, caindo, por fim, em um círculo de debates retóricos que exprimia mais a vaidade intelectual ou o brilhantismo diletante dos interlocutores, sob o impulso das utopias e ideologias políticas que queriam ver realizadas, do que a atenção a problemas reais e de interesse público. A produção intelectual acadêmica estava no centro disso, como uma espécie de eixo institucional que promovia ao seu redor esses debates.

Proudhon procura destacar-se e afastar-se desse círculo, desse giro dos intelectuais acadêmicos em torno de abstrações e retórica. Mas radicalmente pluralista, de algum modo parece detectar, ao mesmo tempo, o perigo tecnocrático de um discurso que se pretendesse puramente “objetivo”, isento de traços personalizados, e que por essa via escapasse do controle que, bem ou mal, era propiciado pela multiplicidade de hipóteses confrontadas nos debates filosóficos. O posicionamento claro frente às divergências, para Proudhon, é um ponto de importância fundamental — e a suposta objetividade que ultrapassa todos os posicionamentos e alcança a unanimidade, um perigo.

Quarta observação. Levados pelo mesmo objetivismo no fundo tipicamente positivista que ganhava rapidamente terreno no século XIX, e que não podia deixar de estar presente também em alguma medida no pensamento proudhoniano — objetivismo do qual o próprio perfil do pesquisador acadêmico e do praticante de ciências humanas de lá para cá não deixam de ser um herdeiros em alguma medida — os comentadores de Proudhon não têm observado com suficiente precisão a maneira, bastante personalizada aliás, como ele lida com a questão do posicionamento teórico em relação a suas fontes.

C) O ESTILO PROUDHONIANO NA REFERÊNCIA ÀS FONTES:

No documento ATESE (páginas 95-99)