• Nenhum resultado encontrado

Considerações sobre o caráter filosófico do pensamento de proudhon

No documento ATESE (páginas 89-95)

82. Muitas falhas dos comentadores de Proudhon derivam do fato de darem a atenção aos conteúdos tratados por Proudhon sem maior cuidado com o modo como apresenta esses conteúdos. Isto ocorre porque Proudhon tem sido considerado como um pensador maleável, capaz de circular por diversos campos de conhecimento integrando- os uns aos outros, mas nunca propriamente como filósofo .

O que tem escapado muitas vezes aos comentadores, em outras palavras, é a abordagem caracteristicamente proudhoniana, o estilo de pensamento com o qual ele aborda seus problemas. Procura-se compreendê-lo como se importassem apenas os resultados de suas pesquisas, ou como se compreender as peculiaridades de sua abordagem importasse apenas enquanto forma de se compreender a maneira pela qual ele atinge os resultados que atinge. Entretanto, o que ele tem a oferecer, mais do que determinados resultados de pesquisa, é precisamente uma abordagem, um estilo próprio de pensamento que pode ser aplicado ao exame de quaisquer temas e problemas, e não aos problemas específicos de tal ou tal outra ciência — portanto, o que ele mais tem a oferecer é, justamente, o que se espera de uma filosofia.

Proudhon oferece, em outras palavras, uma abordagem personalizada da qual deriva diferentes projetos intelectuais, e a partir da qual um objeto de estudo abordado pode revelar problemas que não revelaria sob outra abordagem, e um problema abordado pode apresentar sentidos que também não apresentaria sob outra abordagem, incluindo possíveis caminhos para uma resposta. E suas respostas, por fim, não respondem apenas aos problemas colocados, mas também a esse estilo de pensamento dotado de filtros próprios, a essa abordagem. A própria construção de seus problemas, a própria detecção de seus nós a desatar ou desafios a enfrentar (ou lançar para o enfrentamento de outros), se dá também como uma resposta essa abordagem personalizada, filtrada por ela. Como filósofo que é, Proudhon está ciente desse caráter personalizado das suas formulações, e também está ciente do que ele porta de problemático.

Sabe-se ciências da natureza e, do mesmo modo, também as ciências humanas ou assim chamadas “humanidades”, com a exceção da filosofia — história, psicologia, sociologia, economia política etc. — definem-se fundamentalmente cada uma por seu campo ou objeto de pesquisas específico, ou seja, por aquilo que se investigam, embora tenham cada qual suas alternativas de abordagem. A filosofia, diferentemente, se define exclusivamente pelas suas inúmeras abordagens, cada qual com seu estilo, e pelo debate entre elas, podendo estender-se a qualquer campo ou objeto86.

86 A menos que se queira definir o objeto da filosofia como o “universal” ou como “a totalidade da realidade”, formulações tão amplas e inespecíficas que não carregam muita informação útil para a

O que importa é notar que a imensa maioria dos comentadores de Proudhon tem emergido de outras áreas que não a filosofia, e é quase sempre como pensador nessas diversas áreas que ele tem sido examinado, com grande desatenção87 para o caráter filosófico de seu pensamento.

Enquanto praticante de diversas ciências humanas, Proudhon tem sido examinado acima de tudo como economista político, jurista e sociólogo88 — e neste último caso, pode-se encontrar pelo menos um comentador, Georges Gurvitch, que o considera não apenas como praticante, mas como fundador dessa ciência dos fenômenos sociais, paralelamente a Augusto Comte. Gurvitch está entre os raros que avançam um pouco para o campo da filosofia proudhoniana. Devem-se destacar também, neste sentido, Henri de Lubac e, sobretudo, Francisco Trindade, cada qual com diversos materiais bons e úteis publicados sobre o anarquista francês.

83. Proudhon, entre outras coisas, se pretende algo como um cientista social — pois pretende fundar uma ciência da sociedade, que se chamaria “socio-economia”. Para isto, se aprofunda no exame de quais os melhores procedimentos e diretrizes para se instaurar o processo de conhecimento de um determinado tipo de objeto — o que caracterização dessa atividade. Mas essa discussão escapa ao escopo da pesquisa. A título de sugestão, algum critério de distinção do campo próprio da filosofia poderia ser extraído talvez da observação de que, nela, os juízos de valor exercem um papel tão claro, constante e presente quanto as afirmações a respeito de como as coisas são ou não são, ou do que elas são afinal. Nas ciências exatas e da natureza, tais afirmações predominam largamente sobre os juízos de valor, e isto também se pode dizer quase sempre, embora de modo consideravelmente menos incisivo, das ciências humanas, ou demais “humanidades” para além da filosofia.

87 Evidentemente não é a estrita formação em filosofia o que torna um estudioso apto para o legítimo e aprofundado exame filosófico de algo, e o próprio Proudhon, sem formação oficial realmente extensa em qualquer área (autodidata), é exemplo mais do que claro disto, entre uma infinidade de outros que se poderia citar. Mas infelizmente, não é o caso da grande maioria dos comentadores, pois muito poucos deles caberiam aqui ao lado de Proudhon como exemplos. Em geral, os comentadores têm-se limitado ao exame de um ponto de vista muito rente às suas formações, e não têm apresentado boa formação filosófica, seja em termos oficiosos e acadêmicos, seja como autodidatas, deixando ao deus-dará esse aspecto fundamental do pensamento proudhoniano. Falta arriscarem por-se em contato com gente mais mergulhada em filosofia para um trabalho conjunto, coisa importante inclusive porque Proudhon, este vastíssimo espírito libertário, se é filósofo, também está longe de ser apenas filósofo, e alguém mais aprofundado nos estudos filosóficos, por sua vez, também não poderia sempre dar conta das outras inúmeras áreas para as quais ele avança.

88 Na mesma linha de raciocínio, aliás, deveria ser mais considerado também como historiador praticante, e além disto — porque não é de maneira nenhuma a mesma coisa — como formulador de uma nova abordagem específica para os estudos históricos, cuidadosamente praticada por ele, e cujas afinidades e diferenças com as atuais alternativas no pensamento historiográfico ainda estão por ser levantadas.

constitui um exame característico sobretudo da teoria do conhecimento, bem mais do que da sociologia, da história, da economia etc, que em geral, cujos estudiosos costumam já dispor de antemão de uma resposta para isto. Acrescente-se que quando Proudhon, especificamente, avança pensamentos nessa direção, não trata de procedimentos úteis exclusivamente para um determinado tipo de objeto, mas procedimentos que podem ser aplicados, mais amplamente, a objetos de pesquisa extremamente variados.

Teoria do conhecimento é uma das áreas da filosofia, e é na filosofia que as questões dessa área se encontram nas melhores condições para serem examinadas a fundo. E pensar, além disto, quais os valores éticos e políticos que devem orientar a construção de tais procedimentos, é uma atividade que envolve necessariamente a formulação de juízos de valor, juízos sobre como seria bom que as coisas fossem ou como seria bom que as coisas não fossem. Portanto, trata-se, para dizer o mínimo, de uma atividade já de caráter plenamente extra-científico empreendida por Proudhon.

Isto não significa que seja uma atividade necessariamente aleatória, arbitrária ou desregrada, desempenhada no terreno da pura opinião e não no terreno da construção teórica. Mesmo quando se estuda Proudhon como fundador de algo como uma sociologia, por exemplo, ou como fundador de uma nova corrente de pensamento jurídico89 ou de economia política, não se tem dado suficiente atenção a este ponto: que Proudhon, antes de ser sociólogo, economista ou jurista, é — porque precisa sê-lo, em vista do caráter inovador se suas formulações — filósofo. Quando mencionam o aspecto fortemente filosófico do pensamento proudhoniano, no entanto, seus comentadores — habituados às mais variadas ciências humanas, mas não à filosofia — tendem a concentrar-se nos objetos de estudo que lhes parecem, por assim dizer, os “mais filosóficos” em Proudhon, já que não se encaixam em nenhuma das ciências positivas conhecidas: deus e as demais questões de teologia, a partir do originalíssimo “anti-teísmo” proudhoniano; e as questões 89 No caso, pode-se atribuir a ele a fundação do que se costuma compreender como sociologia jurídica, linhagem que, na esteira das correntes que trabalham com o direito consuetudinário (direito dos costumes), considera os conteúdos do direito e a caracterização da justiça como construções históricas espontâneas parcialmente formalizadas, e não como entidades com valor absoluto e atemporal, nem como uma questão de regulamentação puramente convencional e utilitária à maneira do direito positivo atualmente dominante.

envolvendo valores morais, uma vez que Proudhon formula, de fato, toda uma complexa teoria moral, aliás conectada ao seu “anti-teísmo”.

84. Poderia-se afirmar que a filosofia se distingue das ciências porque seu campo de pesquisa envolve, como um de seus objetos centrais, os juízos de valor? — Como constatação histórica, sim, isso é algo que se observa quando se acompanha o processo pelo qual as ciências foram se separando da filosofia: no processo, elas foram deixando de lado esse campo dos valores, especialmente no caso das ciências exatas e da natureza.

Contudo, quando se considera as coisas deste modo, trata-se ainda da filosofia considerada claramente de um ponto de vista exterior a ela, da filosofia considerada como aquilo que já não é investigação de tipo propriamente científico, daquilo que resta quando se descarta o que, em Proudhon, parece ser sociologia, economia, ciência jurídica, história etc. A filosofia tende a figurar, por essa via, como uma espécie de ciência dos valores, já que os valores são aquilo que as ciências positivas mais deixam de fora.

O problema é que na verdade não é possível definir a filosofia estritamente como ciência dos valores, ou mesmo do que quer que seja. Este é um ponto em que é preciso insistir: que a filosofia, ao contrário das ciências — e mesmo das assim chamadas ciências humanas — não é uma atividade que se defina fundamentalmente pelo seu campo de pesquisa, pelo tipo de objeto que se dedica a estudar. Em filosofia, o fundamental são os procedimentos, a abordagem, o modo como se examina o que quer que seja, e uma mesma linha de pensamento filosófico, uma mesma filosofia, pode ser — e corriqueiramente é — aplicada pelos filósofos ao exame de objetos os mais díspares que se possa imaginar.

Trata-se de uma maneira de pensar diferente da científica. E uma das diferenças fundamentais é precisamente essa: a filosofia, considerada pelo que se produz no conjunto da comunidade filosófica, elabora abordagens — muitas e muito diversificadas — para o exame dos assuntos, seja qual for a área desses assuntos, das ciências naturais às ciências humanas. Se essas formulações não são — como de fato não são, ou pelo menos não deveriam ser — de modo algum alheias aos problemas e aos objetos de estudo

com os quais o filósofo se envolve originalmente e no início para construí-las, no entanto não se limitam a esses problemas e objetos de estudo que estão em sua origem, de modo que as teorias filosóficas são constatavelmente construídas para servirem de abordagem, no futuro, também ao exame de outros objetos e problemas possíveis que, com freqüência, ainda nem sequer foram pensados.

O que faz com que um filósofo seja propriamente filósofo é em grande parte — embora não se limite a isso — o fato de assumir um posicionamento frente às diversas abordagens filosóficas alternativas, e responder coerentemente por essa tomada de posição. Outros elementos igualmente fundamentais têm também o seu papel na caracterização dessa atividade, mas o fato de assumir um posicionamento e toda a responsabilidade intelectual por esse posicionamento, é um marco incontornável na caracterização do filósofo, a ponto de, sem isso, ter bastante dificultada a sua caracterização como “filósofo”.

Assim se faz importante, para a boa compreensão de Proudhon no futuro, inseri-lo no circuito por assim dizer “oficial” dos debates filosóficos com pesadores de todos os tempos. Essa inserção entretanto não é tão simples de se operar, porque para isso é preciso demonstrar, para a atual comunidade dos filósofos, o interesse efetivamente filosófico da teoria de Proudhon. Pode-se fazer isto apontando temas e problemas que historicamente têm caído sob a atenção dos filósofos, mas o fundamental é, sobretudo, procurar dar voz à abordagem proudhoniana, e ao que dela emerge na forma de projetos intelectuais, procedimentos metodológicos, problemas etc. E pode-se também esboçar um a localização de Proudhon apontando as direções em que, ao seu redor, se estabeleceriam os seus debates com outras filosofias.

É um pouco — bem pouco — disto tudo o que, a partir deste capítulo, se procura realizar nesta pesquisa, como primeiro passo de uma longa jornada a ser realizada coletivamente com muitos outros que, por esta via, o presente pesquisador espera interessar nesse viés importante e pouco explorado do pensamento proudhoniano.

No documento ATESE (páginas 89-95)