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A teoria em sentido extra-acadêmico

No documento ATESE (páginas 100-103)

88. Que um vago caldo de associações, envolvendo umas com as outras uma quantidade indefinida de noções ou conceitos, não chega a ser propriamente uma teoria, é algo evidente, e como se sabe, essa evidência tem peso histórico e já é firmemente sedimentada desde muito antes do século XIX, embora houvesse ainda nessa época larga margem de discussão quanto ao que seria uma teoria propriamente caracterizável como “científica”. Mas ressaltar aqui essa velha diferenciação entre a teoria e a mera associação de idéias ou noções sem qualquer necessidade ou exigência de rigor, que poderia ser mais facilmente qualificada como doxa (opinião), é importante precisamente porque Proudhon

se recusa a fazer essa diferenciação — mas imitá-lo nisto não ajudaria a compreender o porquê dessa recusa.

Para compreender isto, importa notar que tal procedimento — de citar uma seqüência de nomes só para sugerir uma tendência ou corrente geral de pensamento — muitas vezes chega a ser utilizado por Proudhon não apenas para agrupar teóricos, pensadores, mas também, e igualmente, para agrupar homens que tomam certos posicionamentos da vida política e social em função de uma determinada mentalidade ou linha de pensamento, sem chegarem a constituir formulações teóricas. Proudhon tende a chamar todos esses caldos de associações de “teorias”, sejam teóricos ou não os nomes que apresenta como imersos em cada caldo. E segue usando indiferentemente o mesmo termo, “teoria”, também para aquilo que de fato se costuma compreender por esse termo, ou seja, para as formulações que buscam a coerência e a mais cuidadosa estruturação racional e argumentativa. Tudo isto, dos vagos caldos de associação que formam certas mentalidades difusamente presentes no pensamento de um indivíduo ou sociedade, até as formulações mais rigorosamente articuladas segundo sólidos critérios de coerência, é para ele, igualmente, “teoria”.

Esse procedimento de Proudhon, que parece, à primeira vista, uma “confusão” de autores muito diferentes — e à segunda vista talvez uma confusão quanto ao correto sentido de “teoria” — é não apenas proposital, mas plenamente coerente com sua busca de uma filosofia popular, conforme se verá. Em vista do modo como Proudhon lida com isto, considerar os autores mencionados por ele, nestes casos, como se exercessem de fato alguma influência sobre a filosofia proudhoniana individualmente, não é uma boa estratégia para compreender essa filosofia, pois pode facilmente induzir a erros.

89. Tal procedimento retórico, recorrente em Proudhon, pode ser compreendido como um “deslizamento para o caldo geral” ou “deslizamento para o caldo de associações”. Fazem parte desse caldo não apenas noções inter-associadas, mas também certas associações — conexões, articulações, junções — específicas que os envolvidos no mesmo caldo costumam estabelecer entre essas noções. Associações que não são

praticadas sempre rigorosamente, mas aproximadamente da mesma maneira pelos diversos autores cujos nomes são ajuntados por Proudhon nessas ocasiões.

90. Entenda-se que se trata de mais do que retórica no sentido raso de um mero recurso lingüístico: este recurso, especificamente, exprime algo do modo de pensar de Proudhon. Não é apenas uma figura de linguagem, é uma configuração de pensamento, um traço do próprio estilo de pensamento que é caracteristicamente proudhoniano, e não apenas do seu estilo de linguagem. Não há enfeite. A retórica, aqui, recupera o seu sentido original mais profundo, em que se conecta à própria lógica na qual se exprimem as articulações do pensamento. Pode-se dizer, inclusive, que a compreensão dessa configuração de pensamento — traço essencial de seu estilo filosófico — é um pré- requisito para a correta compreensão de Proudhon.

91. Tomando uma certa distância em relação a Proudhon quanto a isto, e tomando essa distância rumo ao ponto de vista daquilo que caracteriza as exigências acadêmicas, pode-se dizer que quanto mais claramente se determinam quais são as exatas as noções em jogo e/ou como são exatamente essas conexões entre elas, mais se caminha do vago caldo de associações para a efetiva formulação teórica. Supondo que uma formulação teórica represente uma forma de pensamento mais consistente ou de algum modo “melhor”, o papel a ser desempenhado por um método seria, a princípio, o de orientar essa transição em vista de bons resultados. Neste caso, é no mínimo algo inusitado que um pensador, formulando justamente um método para a construção de teorias, trate como “teoria” indiferentemente o que se reconhece sob esse nome e o que se afigura como mero caldo de associações. Mas é precisamente o que Proudhon faz.

92. Não é de estranhar que os leitores de perfil acadêmico, assim como os que praticam diferentes ciências humanas, encontrem dificuldades para assimilar um pensamento que circula tão intimamente em meio a noções indeterminadas, e que tendam a ver nisso um sinal de descompromissado com relação às exigências teóricas, como se o pensamento de Proudhon se desenvolvesse à maneira das opiniões desregradas, articuladas de maneira arbitrária, que circulam corriqueiramente no senso comum. É uma imagem ilusória. Proudhon não é um pensador de má formação que se esforça para

atingir o rigor teórico: pelo contrário, se esforça para tornar o seu discurso teórico mais popular, e geralmente consegue fazê-lo porque é, de fato, um homem do povo, um membro das classes trabalhadoras. Mas sua habilidade no manejo de conceitos e abstrações não deixa nada a desejar a qualquer membro de academia em sua época, e é, na verdade, surpreendentemente acima do normal. Note-se que Proudhon, fazendo auto- crítica, chega a avaliar negativamente o livro Criação da ordem na humanidade precisamente porque é, como se verá, um trabalho bastante árido e rigoroso em termos conceituais, e de alto nível de abstração teórica, na verdade mais acessível para o leitor acadêmico do que para a população em geral, e Proudhon preferia que fosse o contrário.

E) DESLIZAMENTOS COM FOCO REFERENCIAL E RESPONSABILIDADE

No documento ATESE (páginas 100-103)