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A herança saint-simoniana observada mais de perto

No documento ATESE (páginas 135-140)

122. De Saint-Simon110, Proudhon extrái a valorização da perspectiva econômica como janela de abordagem, por assim dizer, para todos os fenômenos sociais, políticos e morais. E também uma extremada e constante valorização do desenvolvimento intelectual da sociedade rumo à ciência, desembocando em uma altíssima valorização da 109Cabe lembrar que o próprio Saint-Simon pertenceu a este grupo. Oriundo da aristocracia, antes de lançar-se à sua campanha proto-socialista em defesa da classe mais numerosa e mais pobre, procurou com sucesso, para financiar para isso, acumular capital por meio de especulação financeira — atividade que via como produtiva e perfeitamente válida.

110 Sobre Saint-Simon, cf. CHARLÉTY, Sébastien. Historia del sansimonismo. Madri: Alianza, 1969. Também

educação como uma das principais bases para as mais profundas transformações sociais, procurando sempre conectar tão intimamente quanto possível as esferas da educação e do trabalho.

Saint-Simon preocupava-se sobretudo com as condições pelas quais se poderia melhorar o destino da classe mais numerosa e mais pobre111, fazendo-a passar da condição de objeto de exploração das classes ociosas à de sujeito atuante na realização de seus próprios interesses — fórmula cuja influência se pode reconhecer na maneira pela qual Proudhon viria a descrever, no início de sua produção intelectual, suas próprias intenções, em uma carta de 30 de Junho de 1840 aos membros da Academia de Besançon, responsável pela avaliação das candidaturas a uma bolsa de estudos. A carta veio a ser publicada como prefácio à primeira edição de seu célebre O que é a propriedade?112, no mesmo ano, acompanhada de esclarecimento no sentido de que a

Academia não compartilhava das posições do autor e não se responsabilizava por elas113:

Quando solicitei vossos sufrágios, exprimi abertamente a intenção de encaminhar meus estudos para os meios de melhorar a condição física, moral e intelectual da classe mais numerosa e mais pobre (PROUDHON, P.-J., p. 1)

Mas Saint-Simon, seguindo um caminho bem avesso àquele que seria depois o de Proudhon, tendia à conciliação universal de todos os grupos de interesses econômicos da sociedade mediante o caráter de interesse comum — superior aos posicionamentos e conflitos de interesse — que julga estar presente no desenvolvimento técnico e científico da sociedade como um todo, desenvolvimento ao qual atribui um progresso crescente e cumulativo ao longo do tempo, e algo como a esperança de uma solução definitiva para os problemas mais graves da sociedade. Avançando para além de Saint-Simon na questão dos conflitos sociais entre os industriais e os ociosos, Proudhon, passa a examinar de 111 Cf. RUSS, Jacqueline. O socialismo utópico. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 97-98.

112 Cf. PROUDHON, P.-J. O que é a propriedade? São Paulo: Martins Fontes, 1988. Tradução do francês por Gilson Cesar Cardoso de Souza, com revisão de Edison Darci Haldt.

113 Proudhon teve que defender sua bolsa de estudos, sob o risco de tê-la cancelada em vista dos posicionamentos que assumiu em sua pesquisa. Apenas um membro da Academia, felizmente bastante influente, o defendeu, e com sucesso, embora ele próprio rejeitando explicitamente a tese de Proudhon: o socialista Blanqui.

maneira extremamente aguçada o complexo tecido dos conflitos de interesse na sociedade econômica, percebendo diferenças qualitativas profundas, recortes sócio- culturais diferenciados, abaixo das diferenças meramente hierárquicas, de poder político ou econômico — por si sós também mais complexas que aquelas observadas por Saint- Simon.

123. Mas há um ponto em que Proudhon, ao invés de substituir o ocioso pelo proprietário e pelo capitalista, mantém, e na verdade até radicaliza, e muito, a mesma crítica saint-simoniana especificamente dirigida à ociosidade — ou mais precisamente às atividades inócuas para a sociedade e que resultam, nesse sentido, ociosas e dispensáveis: Proudhon mantém isso quanto ao que Saint-Simon afirmava da instituição conhecida como “governo”, e quanto a todos os que tiram seu sustento estritamente de suas atividades no seio desta instituição. De fato esse socialista utópico, quase antecipando nisto o “anarquismo” proudhoniano, considerava as instituições governamentais como um epifenômeno passageiro, um resquício anacrônico de condições já ultrapassadas, e julgava que a organização econômica, se melhor realizada, faria desaparecer essas instituições evidenciando sua inutilidade. Proudhon segue, neste caso, precisamente o mesmo caminho, e com maior radicalidade, embora sem o mesmo otimismo, prevendo conflitos ainda maiores, mais profundos e principalmente mais freqüentes, para não dizer quase constantes, do que aqueles previstos por Saint-Simon na forma de “crises” históricas que acompanhavam, na com guerras e violência civil, os processos de transformação das sociedades ao longo do tempo.

Conforme Proudhon, ademais, para além do conflito geral entre as classes proprietárias e capitalistas de um lado, e de outro a classe trabalhadora — conflito que assinala a maior das diferenças hierárquicas da sociedade — aquelas outras diferenças, mais profundas e de caráter qualitativo, que ele detecta na constituição do tecido social, pluralizam e complexificam esse conflito geral, e não podem ser ignoradas nem tampouco solucionadas em uma unificação imaginária dos interesses em um único partido ou grupo de representantes políticos.

124. A crítica de Proudhon, na verdade, dirige-se não apenas à representação única, mas ao próprio sentido de uma representação dotada de poderes políticos, e não meramente expressivos, e por outro lado à própria possibilidade de uma representação puramente expressiva, sem a contaminação pela assimilação, nessa expressão dos interesses, de alguma forma de poder político — de modo que o que se poderia projetar idealmente de seu rumo é um participacionismo pluralista, em que as diversas partes defenderiam diretamente seus interesses políticos, participando com as outras do conjunto das decisões sem a interferência de instâncias “superiores”. Mas Proudhon não constrói utopias, não faz essa projeção senão como meio para orientar um caminhar que, a seu ver, seria interminável.

Do ponto de vista de Proudhon, além disso, a representação política unificada de todo o proletariado não encontraria bases sociais reais, porque as diferenças qualitativas no seio da sociedade também não podem ser solucionadas pela unificação artificial dos interesses de uma única grande classe trabalhadora — pois isto significaria, na prática, a anulação das diferenças sob uma unidade que as reprime em cada indivíduo e sub-grupo social, ao invés de exprimí-las, e que poderia inclusive, e facilmente, sob o pretexto da escolha de representantes comuns para toda essa classe, cair sob o domínio de grupos específicos em detrimento do interesse de outros, no seio mesmo da própria classe trabalhadora.

Essas diferenças qualitativas e mais profundas presentes na sociedade em geral, e na classe trabalhadora em particular, e que não se pode ignorar nem se deve procurar abafar sob um sentido geral de unidade, segundo Proudhon, resultam das próprias particularidades de cada subcultura local no conjunto de toda a cultura, das particularidades de cada setor específico da sociedade. Elas se originam sobretudo do tipo e dos traços característicos das atividades que compõem o trabalho e as relações de trabalho em cada área da economia, em cada diferente profissão. Proudhon considera tais diferenças insuperáveis e, quase sempre, mutuamente conflituosas quando manifestam seus interesses e sentem as reações da sociedade, e quando os grupos interessados percebem, então, a necessidade de generalizar esses interesses para setores mais amplos

da sociedade, para fazê-los valerem mais efetivamente, e os jogos de forças em que terão de entrar para isso. Segundo Proudhon, rapidamente acabam por decorrer, dessas diferenças, reverberações em todos os campos de atividades da sociedade, e em última instância, divergências mesmo no seio da produção científica de uma sociedade — o que significa que ele não tem, de maneira nenhuma, a mesma confiança de Saint-Simon (e de Comte) na construção de uma unanimidade em torno da ciência.

125. E finalmente, numa guinada de valores radical em relação a Saint-Simon (e se verá que também em relação a Comte), Proudhon assume um posicionamento que é, em última instância, firme e profundamente favorável a essas divergências, propondo não a sua superação ou abolição, mas a sua transfiguração, por mobilização constante da sociedade e das instituições no sentido de habituá-las a uma luta sem fim para equilibrar, e manter sempre tão equilibradas quanto possível, as diferentes forças em jogo; combatendo portanto apenas as diferenças hierárquicas, e não as diferenças qualitativas por debaixo delas, que precisam então ser depuradas dessas diferenças hierárquicas — o que deve, de qualquer modo, alterá-las bastante. E como coroamento a essa visão bem mais realista das coisas, Proudhon considera esse bom combate, por parte daqueles que, com ele ou como ele o pretendam assumir, sempre necessariamente precário e necessitado de esforços incessantes, em vista das próprias diferenças, hierárquicas ou simplesmente de ponto de vista, presentes na sociedade, de modo que não há jamais “solução definitiva” a atingir — ou melhor, as soluções vêm sempre acompanhadas de novos problemas a considerar.

Como se vê, o que Proudhon herda de Saint-Simon, bem como aquilo em que se caracteriza justamente ao diferenciar-se de Saint-Simon, de fato não é pouco, e inclusive ajuda a diferenciá-lo também de Marx. Este último, por um lado, tende a considerar todas as diferenças qualitativas condicionadas pelas diferenças hierárquicas, igualando todos os interesses sociais segundo a classe econômica que os defende. E por outro lado, opera uma distinção conceitual bem delineada entre um setor econômico específico — a produção — e o resto das atividades sociais, forjando a partir desse delineamento a noção de uma infra-estrutura econômica como peso de determinação incomparavelmente maior

sobre todo o resto, qualificado como “super-estrutural” — e submetido às condições das relações de produção (“infra-estruturais”) — por exemplo todo o campo da educação e da produção teórica.

Sem formular uma distinção muito drástica entre o campo econômico e outros campos de atividade da sociedade — e na verdade até mesmo evitando ativamente essa distinção — o pensamento de Proudhon, nisto aliado ao de Saint-Simon, mantém uma concepção extremamente flexível dessa infra-estrutura econômica que dá sustentação a tudo o mais, e de suas relações com outros campos de atividades, possibilitando a compreensão de fatores não-econômicos como dominantes em determinadas circunstâncias, apesar de observar na maioria dos casos uma clara tendência ao predomínio de fatores direta ou indiretamente sócio-econômicos na determinação do rumo das coisas.

No documento ATESE (páginas 135-140)