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Diferenciais de Comte em relação a Saint-Simon

No documento ATESE (páginas 113-117)

104. Na perspectiva diferencial adotada nesta pesquisa, as divergências entre os autores são o que se focaliza, e suas similitudes e aproximações devem emergir sobretudo de maneira residual, ou como um pano de fundo contra o qual se destacam as diferenças em foco. Assim, por exemplo, no exame dos diferenciais apresentados por Proudhon em relação a Comte e Saint-Simon, esses autores tendem a parecer talvez mais próximos um do outro do que realmente sejam, e essas diferenças entre ambos tendem a ser ressaltadas apenas na medida em que Proudhon — que é o foco de atenção desta pesquisa — se diferencie de Comte de uma maneira e de Saint-Simon de outra. Se o foco da pesquisa fossem as relações entre Saint-Simon e Comte, as coisas se passariam de outro modo.

105. Na medida em que a compreensão de Proudhon exige diferenciar os dois, importa acentuar que a clara formulação da lei dos três estados por Comte é precisamente a fronteira diferencial que o separa de Saint-Simon, e que aquilo que se esboça nesse sentido nos últimos textos escritos por Comte como saint-simoniano, ou com ainda com alguma participação direta de Saint-Simon, já apresenta algumas contradições, que exprimem o início dessa ruptura que logo viria a se realizar. Em termos teóricos, o principal ponto de ruptura consiste precisamente na desvalorização das religiões

tradicionais por Comte como resistências retrógradas ao pleno desenvolvimento da ciência positiva, em um momento em que o pensamento de Saint-Simon, ao contrário, retornava ao cristianismo.

Mas há um outro diferencial que acentua a originalidade de Comte em relação a seu mestre, e que se encontra claramente presente também em Proudhon, portanto diferenciando-o de Saint-Simon. Em Saint-Simon havia sim a avaliação de que a história da civilização ocidental até o momento poderia ser dividida em fases que, de fato, se desenham aproximadamente como os três estados de desenvolvimento do intelecto apontados por Comte, embora com uma valorização do cristianismo que nele desaparece. E de fato, essas fases não seriam, segundo Saint-Simon, completamente superadas cada qual pela fase seguinte, mas coexistiriam todas elas atualmente, e teriam sempre de algum modo coexistido, apenas com a predominância da fase que é a que melhor satisfaz as exigências e necessidades do momento histórico vigente — o que ainda antecipa a formulação comteana. Tudo isto, que encontramos em Comte, é de Saint-Simon. Mas Comte formaliza essa idéia, torna-a mais abstrata, menos necessariamente conectada aos fatos históricos empíricos efetivamente ocorridos até o momento, e portanto, faz dela uma fórmula mais facilmente manipulável pelo teórico que queira aplicá-la à explicação de uma outra qualquer seqüência de desenvolvimento intelectual já não apenas da civilização ocidental, mas de uma sociedade específica qualquer ou até mesmo de um único indivíduo, em seu desenvolvimento intelectual pessoal, ou da humanidade como um todo.

Não é o caso de recusar, portanto, que isto tudo já estava presente em germe no pensamento de Saint-Simon. De fato estava. Mas não se apresentava de maneira tão simplificada, esquemática e abstrata, tão desapegada dos dados históricos e empíricos específicos dos quais foi extraída — portanto tão livre, como uma fórmula teórica, para a utilização instrumental de outros teóricos. Comte, deve-se lembrar, era matemático de formação, e não é à toa que conseguiu chegar a uma tal simplificação de modo a torná-la, para usar uma expressão familiar aos matemáticos, mais “elegante”, mais enxuta e precisa, e liberá-la para maior uso teórico sem a banalização que tão freqüentemente é

operada pela simplificação esquemática dos pensamentos de um mestre por seus discípulos.

106. Foi apenas isto o que inaugurou a imagem de Comte um autor de valor, e o que conduziu a ele, com o tempo, os reconhecimento por essa formulação, que mesmo em Saint-Simon já não era algo tão original. Segundo Georges Gurvitch96, já foi estabelecido “indiscutivelmente” pelo historiador de filosofia Émile Gouhier que a conhecida distinção saint-simoniana das três fases, que acabou por celebrizar Comte em sua formulação como “lei dos três estados”,

(...) não foi mais que um lugar comum, amiúde repetido nessa época. Encontram-se explicações detalhadas sobre esse tema antes de Saint-Simon e não somente no doutor Burdin e (ainda que em outros termos) em Benjamin Constant, como já em Turgot. E. Gouhier considera que Turgot expôs pela primeira vez essa distinção em Plano de dois discursos sobre a história universal; o segundo discursos (redigido aproximadamente em 1751) trata sobre o progresso do espírito humano; este texto não apareceu até 1807 nas Obras de Turgot (vol. II), publicadas por Dupont de Nemours. (GURVITCH, 1970, p. 29)

O detalhe de uma formulação mais precisa, abstrata e esquemática — naturalmente coincidindo também com circunstâncias apropriadas para que as atenções se voltassem para essa formulação — foi o que fez, em Comte, toda a diferença.

Ocorre, no entanto, que encontramos em Proudhon essa noção — de três estágios de desenvolvimento intelectual sucessivos em termos de predominância, mas a rigor simultaneamente presentes em um mesmo indivíduo ou grupo social — formulada com o mesmo nível de abstração esquemática que a encontramos em Comte, senão com um nível ainda mais elevado. Uma nota de rodapé do próprio Proudhon, nas páginas iniciais de Criação da ordem, é bastante sugestiva neste sentido:

Embora no curso desta obra me sirva das palavras padres, filósofos, homens do poder etc., não designo sob esses nomes classes de cidadãos e não faço qualquer categorização de pessoas. Entendo com

96 GURVITCH, G. Los fundadores franceses de la sociologia contempotânea: saint-simon y Proudhon. Buenos Aires: Nueva Visión, 1970. Tradução para o português de J. Borba (especificamente para esta pesquisa).

isto personagens abstratos, que considero unicamente do ponto de vista de seu estado, dos preconceitos que lhe são próprios, do caráter e dos hábitos que ele dá ao homem: não descrevo realidades, nem faço o julgamento de indivíduos. (PROUDHON, p. 29)

O mesmo nível de abstração acompanha, com as figuras dos “padres” e do “filósofos”, as noções de “religião” e “filosofia”. Embora claramente extraídas de um exame dos fatos históricos como em Saint-Simon, as relações de tais abstrações com fatos concretos da época ou de épocas passadas, lembrados por Proudhon profusamente e em estilo jornalístico, se afiguram como uma aplicações a posteriori daquilo que já havia sido extraído da história por Saint-Simon. Embora seja quase sempre o que ele faz, no caso específico desses três estágios de desenvolvimento — religioso, filosófico e científico — não se vê Proudhon extraindo passo a passo essas abstrações da observação dos fatos históricos, de modo que essa extração deve ser compreendida antes como uma re-extração que não pretende recomeçar do zero. Pelo contrário, apenas refaz o caminho de abstração já percorrido por Saint-Simon e depois Comte, corrigindo a fórmula por um exame mais cuidadoso e detalhado daqueles fatos dos quais foi extraída. Mas o faz focalizando diretamente a construção dessa fórmula, aplicável ao exame de outros fatos, mais do que a compreensão desses fatos específicos por meio dela. Ou em touras palavras, o objetivo imediato de Proudhon é claramente re-construir de outro modo essa formulação comteana mais abstrata, e não entender por meio dela os fatos históricos que registra no livro, como fazia Saint-Simon.

Assim, o capítulo I de Proudhon chama-se A religião, e o capítulo II, A filosofia — e o que ali se encontra ajusta-se bem a esses títulos, por que são sobretudo discussões conceituais, embora firmemente articuladas ao exame dos contextos sociais e políticos dos quais essas discussões emergem e nos quais não deixam em nenhum momento, para Proudhon, de estarem imersas. Apesar dessa imersão, Proudhon não está simplesmente, como Saint-Simon, examinando um processo histórico que foi, primeiramente, dominado pelo pensamento religioso, e depois, dominado pelo pensamento filosófico; não está examinando esses dois momentos para depois disto, como corolário, realizar uma rediscussão dos conceitos de religião e filosofia. Pelo contrário, ele está rediscutindo

diretamente esses conceitos, inclusive carregando essa rediscussão com uma forte carga polêmica. E para isso é que recorre ao exame histórico de épocas dominadas por um desses modos de pensar e depois pelo outro.

Mas ao contrário do que poderia parecer, com essa inversão de prioridades, que a princípio parece aproximá-lo de Comte, o que se observa como efeito inesperado é que o foco no confronto atual entre essas duas maneiras de pensar, a religiosa e a filosófica, se intensifica enormemente em Proudhon — ao contrário do que se percebe em Saint- Simon, que tem, aliás, como ideal, a pacífica união de todas as tendências de pensamento, não diferindo muito de Comte quanto a este ponto.

C) O QUE HÁ DE FATO, EM PROUDHON, DE SAINT-SIMON POR TRÁS

No documento ATESE (páginas 113-117)