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Deslizamentos com foco referencial e responsabilidade do autor

No documento ATESE (páginas 103-106)

93. Causando ainda maior perplexidade e maiores dificuldades para o pesquisador acadêmico do que em seus rápidos deslizamentos por uma série de nomes de pensadores agrupados de maneira por vezes bastante incomum — ocorre que mesmo quando apresenta o nome de apenas um autor, como se falasse especificamente sobre o pensamento dele. Na maioria desses casos (embora nem sempre) Proudhon refere-se menos ao que o autor efetivamente disse ou deixou de dizer, e mais ao que se desenvolveu ao longo do tempo em seu nome, a partir de seus discípulos, ou até mesmo ao que se desenvolveu em autores que apenas coincidem mais ou menos com ele ou lhe são de algum modo análogos — ou seja, refere-se, mais uma vez, ao caldo geral de noções e associações em que o autor está imerso.

Mas nessa variante ainda mais claramente anti-acadêmica do “deslizamento para o caldo geral”, variante também freqüente em Proudhon, o autor mencionado por ele figura como uma espécie de referência central que, de algum modo, assinala o referido caldo de noções inter-associadas, indicando qual é o caldo em questão. Inclusive autores diferentes às vezes são contrapostos por Proudhon como indicações de caldos diferentes.

Nestes casos, o nome de um autor, em Proudhon, serve para indicar determinado caldo de associações, seja porque esse caldo emergiu de fato das noções propostas por esse autor especificamente, a partir de seus intérpretes, seja porque o autor é o mais representativo daqueles que estão imersos nesse mesmo caldo de noções, portanto de certo modo o que melhor representa o próprio caldo como um todo. Essa variante do “deslizamento para o caldo”, que ocorre a partir de um ponto de referência específico, será tratada como deslizamento com (ou a partir de) um “foco referencial”.

Para mencionar alguns casos em que esse procedimento é bastante evidente, quando aparecem nos textos de Proudhon os nomes “Fourier”, “Saint-Simon”, “Hegel”, a referência muitas vezes é, claramente, ao conjunto dos fourieristas, dos saint-simonianos, dos hegelianos em geral — de todos os matizes e em todas as variações que tais doutrinas vieram a apresentar — incluindo a versão original do fundador da doutrina. É de suma importância, portanto, detectar em cada caso se a referência de Proudhon é especificamente aos elementos citados, o que é uma situação bem menos freqüente, ou se é, como na maioria dos casos, um deslizamento para o caldo geral que os envolve.

94. Curiosamente, como também se verá, Proudhon costuma responsabilizar em larga medida os fundadores de correntes ou tendências de pensamento, de certo modo, não apenas pelo que disseram de fato — o que os desculparia dos desvios dos seus discípulos — mas também pelo que seria possível dizer, extrair ou derivar interpretativamente de suas colocações sem chegar a contradizê-los. Ou seja, responsabiliza-os por engrossarem o caldo de uma tendência ou corrente ao não se incompatibilizarem com ela, e portanto, por darem-lhe livre curso através daquilo que disseram, ou mais precisamente por lhe darem passagem no “campo” que demarcaram com aquilo que disseram. Incompatibilizar-se com certas correntes de pensamento, e deixar claras as suas incompatibilidades, é para Proudhon uma responsabilidade importante à qual o intelectual não deve se esquivar.

Tudo se passa, em Proudhon, como se cada autor, ao dizer o que diz, demarcasse ao redor de seus ditos um campo de possíveis associações, de coisas possivelmente associáveis àquilo que ele disse. E ao que parece, ao fazê-lo o autor deveria, ele próprio,

responsabilizar-se por esse território de interpretabilidade aberto pelos seus ditos, o que significa lutar — polemizar — contra as apropriações indevidas desse território. Coerente com essa postura, ele próprio se esforça por demonstrar a incoerência, ou mais precisamente a incompatibilidade teórica de muitos de seus intérpretes e críticos em relação aos seus efetivos posicionamentos e às suas efetivas formulações, ao mesmo tempo que parece permitir algumas interpretações bastante elásticas, como as de Bakunin por exemplo, porque não chegam a ser incompatíveis com as suas efetivas formulações e tomadas de posição.

95. Utilizando ainda — e tornando, por assim dizer, mais “terrena” — essa metáfora do campo determinado pelos dizeres do autor, e a partir daí atravessado por seus intérpretes e por outros autores, pode-se dizer que alguns fazem essa travessia depredando o terreno, e é isto o que deve ser evitado. O autor é menos um “proprietário” do campo de pensamentos que ele próprio determina, e mais um “posseiro” que se utiliza dessa posse intelectual, e que deve responsabilizar-se pela sua guarda contra as depredações que, em última instância, a desfigurariam, inutilizando aquilo que ele território tem a oferecer de seu para todos os que o atravessam. Proudhon permite a livre passagem por seu território intelectual para os que, contrários ou favoráveis a ele, fazem “bom proveito” desse território, realmente aproveitando o que ele oferece de caracteristicamente seu, e principalmente para os que se dispõem por sua vez a trabalhar no mesmo terreno para produzir nele algo de próprio, até mesmo algo que apresente elementos críticos em relação ao tratamento originalmente dado a esse terreno pelo por Proudhon — mas que o critique reconhecendo as características que lhe são próprias, sem depredá-lo e distorcer-lhe a imagem.

Assim, algumas críticas de Bakunin a Proudhon, por exemplo, parecem rebatíveis se consideradas estritamente dentro da lógica própria do pensamento proudhoniano, e no entanto, observando a compatibilidade da perspectiva bakuniniana em relação ao seu próprio ponto de vista, Proudhon tende a considerar essas críticas mais atentamente, rumo à auto-crítica, ao invés de apenas defender dessas críticas o seu território intelectual tal como o delimitou originalmente.

96. Examinando com maior atenção a questão, para Proudhon parece haver sempre, por detrás das teorias — inclusive na interpretação dilatada que dá a esse termo — um sentido intrínseco a ser construído e perseguido tão clara, completa e radicalmente quanto possível, e importa apenas que as incoerências não o atinjam, que as formulações específicas que o exprimem não se incompatibilizem com esse sentido profundo. No entanto, elas podem atingi-lo, dependendo do modo como são conduzidas — e não é apenas o autor que as conduz, mas também seus intérpretes e críticos, porque esse sentido geral no fundo de tudo o que é dito por um autor não se constrói na lógica interna do seu discurso, à maneira acadêmica, mas na vida, em imersão prática desses dizeres nas relações sociais que o autor estabelece.

97. Há portanto, em Proudhon, uma exigência de coerência teórica conduzida por ele de maneira bastante peculiar, mais elástica que o habitual nos meios acadêmicos sob certos aspectos, e ao mesmo tempo mais rigorosa sob outros. Rigorosa especialmente segundo uma exigência de coerência que é de um tipo mais familiar para quem atua no terreno político do que para quem atua no campo puramente intelectual — de modo que Proudhon não desculpa o intelectual por omissão em relação à maneira como sua teoria, ou mesmo a linha geral de suas livres opiniões, é interpretada por outros. A responsabilidade não é apenas do intérprete. É o próprio autor dessa teoria ou conjunto de opiniões que deve empenhar-se no sentido de apontar as incompatibilidades e limites de interpretação, esclarecendo não apenas o que pensa, mas também o próprio campo polêmico em que esse pensamento se insere nos debates correntes na sociedade, e o modo como se insere neles, suas tomadas de posição, etc. — isto vale inclusive para suas mudanças de posicionamento, que podem apresentar aparentes incoerências lógicas, mas não incompatibilidades com o sentido geral que as orienta.

No documento ATESE (páginas 103-106)