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A política e o descompasso do intelecto diante do fluxo

No documento ATESE (páginas 180-185)

164. Uma imagem ou representação que se lance adiante prevendo os movimentos futuros do fluxo das transformações históricas, e que vá se mostrando correta, irá se mostrar mais e mais pertinente para a representação do fluxo das coisas apenas até um máximo de pertinência possível — sendo que as exatas transformações do fluxo são irrepresentáveis, e portanto não há jamais correspondência absoluta do imaginado com os fatos — e para além desse ponto essa imagem tenderá a perder cada vez mais sua pertinência como representação adequada para essas transformações.

Em geral, a percepção humana se mostra em descompasso com o fluxo das coisas em função do lento desenvolvimento histórico de sua capacidade para percebê-lo e acompanhá-lo com o pensamento. Mas isso não significa que a percepção humana seja sempre necessariamente mais “lenta” que o desenvolvimento do fluxo das transformações em si mesmo. Ela pode lançar-se adiante e fixar, a título de previsão, uma imagem relativamente correta das transformações do futuro — mas naturalmente, ao fazê-lo, arrisca-se também a errar. Há momentos em que, apoiando-se em uma percepção antecipada das transformações futuras, os homens procuram correr mais que o próprio movimento das coisas, por assim dizer, impor ao momento presente certas configurações dos fenômenos que ainda não têm lugar, ou conforme a linguagem de Proudhon, ainda não são orgânicas, pois o fluxo espontâneo das transformações ainda não conduziu os fenômenos a essas configurações, embora pareça se encaminhar para elas.

A imposição de configurações fenomênicas que ainda não têm organicidade no ritmo natural das transformações tende a encontrar fortes resistências. Tal imposição artificial de um ritmo de transformações mais acelerado é, segundo Proudhon, uma atitude tipicamente autoritária.

165. É importante compreender que, no caso de Proudhon, o autoritarismo e o dogmatismo estão não apenas interconectados, mas também diretamente conectados ao próprio descompasso tragicamente incontornável da percepção humana em relação ao fluxo das transformações da realidade. Não há realidade humanamente possível sem a presença, em algum grau, desse autoritarismo, desse dogmatismo, desse absolutismo que pretende, por patológico idealismo, impor ao fluxo das transformações um ritmo que — pouco importa se mais lento ou mais rápido — não é o seu ritmo espontâneo.

Uma ação orientada por uma percepção do futuro, mesmo que seja uma percepção acertada, se pretende acelerar as transformações rumo à realização desse futuro, está atuando sobre o fluxo atual de um ponto de vista que lhe é externo — portanto um ponto de vista absolutizado — e que está em descompasso com ele. Trata-se de erro muito comum entre homens que se declaram progressistas e radicais em sua defesa do progresso, contra as forças do conservadorismo, mas que na prática atuam, deste modo, contra a própria progressão espontânea dos fatos e em favor da conservação, porque promovem reações contrárias aos próprio futuro que pretendem antecipar. Freqüentemente tais arroubos de aceleração artificial e autoritária do fluxo das coisas, que resultam na prática em reação e conservação, encontram apoio em formulações filosóficas delirantes cujo empenho progressista não encontra correspondência no fluxo real das transformações históricas.

No outro extremo da política, a religião, representante maior do conservadorismo, tende ao erro por lentidão, apegando-se ao fixo. Uma religião, quando se altera — e de fato às vezes se altera muito com o tempo, única razão pela qual algumas religiões apresentam longa sobrevida histórica — não admite suas próprias alterações, e se porta como se nada houvesse mudado, ou sequer as percebe; e quando se vê finalmente forçada a perceber e admitir tais alterações, em geral pipocam em seu meio reações bastante agressivas contra elas, reações que podem chegar a conduzir a crises de grandes proporções na história dessa religião.

O pensamento religioso não percebe bem e com clareza o seu próprio desenvolvimento ao longo do tempo, a não ser mediante a contaminação de um pensamento mais racional — de perfil portanto filosófico — que he permita distinguir e comparar as partes de sua história. em uma percepção mais puramente religiosa, o próprio tempo tenderia a figurar como uma unidade homogênea, sem alterações, o que significa que tenderia a anular-se a própria percepção do tempo, absorvida por uma perspectiva atemporal, a-histórica.

I) A FALTA DE APOIO FENOMÊNICO NAS TEORIZAÇÕES FILOSÓFICAS 166. Pode-se perceber que o problema da religião, enquanto atividade cognitiva, é intrínseco a ela e insuperável. Faz parte da religiosidade procurar deter o pensamento, o que a afasta da possibilidade de corresponder ao fluxo das coisas. Faz parte da filosoficidade, por assim dizer, procurar sempre mobilizar o pensamento através de questionamentos. Se a dúvida e o questionamento filosófico lançam o pensamento na dúvida e no impasse entre alternativas opostas, a propensão da filosofia para a fluidez não a detém aí, e ela logo partirá para o exame de cada uma das partes em impasse, subdividindo-as em novos impasses, e assim ad infinitum. Se os impasses fornecem alguma estabilidade, por outro lado a estabilidade de um impasse não basta para a caracterização de um efetivo conhecimento. A filosofia, por si só, não consegue estabelecer conhecimentos. Precisa de algo mais: precisa da fé na realidade dos fenômenos examinados, e que tomam forma a partir do seu equilíbrio — a partir dos impasses internos que lhe garantem a presença simultânea dos seus componentes, embora diferenciados uns dos outros, isto é, caracterizados por aquilo em que se opõem uns aos outros.

167. No entanto, embora Proudhon o apresente com uma certa simetria em relação ao problema religioso, como se apresentasse exatamente a dificuldade oposta, o problema da filosofia enquanto forma de conhecimento parece estar, para ele, na dependência do modo como se pratica a filosofia. O pensamento filosófico apresenta a necessária propensão para a fluidez, e diretamente lida apenas com elementos fixos, como qualquer outra forma de pensamento. Mas o melhor que se pode fazer em termos de conhecimento é precisamente o resultado de um certo uso desses elementos fixos, devidamente orientado por essa propensão para a fluidez que a filosofia apresenta. A filosofia parece apresentar todos os elementos para a realização de um bom conhecimento. Por que então Proudhon irá declarar a necessidade de uma superação da filosofia rumo à ciência?

Proudhon deixa transparecer uma simpatia muito grande pelo movimento constante de investigação que se observa na história da filosofia. Por outro lado, reclama do fato de que esse movimento, sendo muito intenso nesse tipo de atividade intelectual, tende a se desconectar do ritmo das coisas, a não acompanhar o ritmo das transformações históricas e das vivências pessoais na sua compreensão da coisas. O questionamento filosófico segue, em larga medida, independentemente de qualquer correspondência com os fatos fenomenicamente constatáveis. Quando não entra em descompasso com a realidade fenomênica por essa via, entra por outra, assumindo uma forte e explícita contaminação do pensamento religioso e fazendo coro a ele.

168. Observe-se que segundo Proudhon, mesmo quando se apega ao seu sentido mais puro e característico, e portanto à sua propensão radicalmente mobilista, e mesmo quando dá a essa propensão um caráter declaradamente progressista em meio as disputas sociais, políticas, econômicas etc, a filosofia, ao promover seu próprio descompasso em relação ao ritmo espontâneo das transformações fenomênicas, está mais uma vez promovendo, por essa via, alianças indiretas e talvez inusitadas, mas muito consistentes, com o fixismo conservador caracteristicamente religioso, uma vez que estimula uma visão das coisas que orienta as ações no sentido da imposição de um ritmo artificial às transformações, alimentando reações contrárias a tais transformações.

Esta última crítica atinge principalmente as filosofias mais ligadas à legítima vocação investigacionista, ou cética, dessa atividade intelectual. É uma crítica que aponta diretamente para o problema dos filtros filosóficos, formulado por Proudhon como problema do critério da certeza. É uma crítica dirigida contra o caráter subjetivo e desconectado da realidade objetiva — ainda que objetiva no sentido estritamente fenomênico — que as formulações filosóficas tendem a assumir, como se, no campo filosófico, toda e qualquer afirmação, até mesmo a mais absurda e puramente especulativa, encontrasse lugar para firmar-se com a mesma certeza que a mais sensata e consistente das constatações puramente fenomênicas. Basicamente, falta à filosofia, segundo Proudhon, a exigência clara de alguma correspondência com a objetividade dos fenômenos tal como se apresentam. Falta apoio fenomênico às observações filosóficas.

Não é raro encontrar em Proudhon, associadas às mais variadas filosofias, as expressões “delírio”, “delirante”, e outras similares. A história da filosofia parece figurar para ele como um vasto compêndio de absurdidades, que só não deve ser sumariamente destinado aos cestos de lixo por umas poucas razões. Primeiramente, porque a própria realidade, afinal, em muitas ocasiões se revela surpreendentemente absurda. Em segundo lugar porque, em meio aos absurdos da filosofia, a faculdade cognitiva humana se exerce e se exercita com alguns raros acertos, alguns focos de sensatez, e evidenciando ocasionalmente percepções sutis, mas importantes, colhidas sobretudo na vida prática e na experiência diária das pessoas comuns. E também porque formulações absurdas nem por isso são necessariamente inúteis, e ficções sem qualquer realidade fenomênica observável — a exemplo de seu próprio princípio de movimento — podem mostrar-se úteis. Ademais — e o mais importante — as pessoas se orientam por essas absurdidades em suas ações, e as ações humanas interferem nas condições fenomênicas, alterando a realidade, de modo que é preciso estar atento aos absurdos da filosofia e, principalmente, ao modo como são acolhidos e postos em prática.

169. Mas segundo Proudhon, o mal predominante em sua época, no campo filosófico, não são as filosofias mais apegadas a delírios promovidos, de um modo ou de outro, pelo legítimo (mas exagerado) espírito filosófico e questionador: são, isto sim, as filosofias mais corrompidas nessa vocação investigacionista, as mais direta e acentuadamente contaminadas e marcadas pela presença, ainda viva e ativa, de traços diretamente conservadores, absolutizantes, típicos do pensamento religioso. Principalmente porque a maioria das teorias filosóficas do período tende a fazer circular o pensamento em meio à mesma simbologia proposta pelas religiões — sobretudo a cristã — sem de fato questionar essa simbologia e suas pretensas significações de caráter extra- fenomênico.

No documento ATESE (páginas 180-185)